Nome: Clemente Alves
Ano nascimento: 1952
Local do registo: Algés
Data do registo vídeo: 18-10.2021

Transcrição

"Eu passei a minha juventude numa vila predominantemente operária - Moscavide, ali perto dos Olivais. Onde a população, em geral, sofria de muitas carências. Era uma vila cercada de bairros de lata, de gente que trabalhava, mas que era miserável nas condições de vida. Eu era filho de uma família que tinha seis filhos. Os meus pais eram analfabetos, trabalharam desde que se conheceram. Esta realidade em determinado momento começou a questionar-me: se isto era assim para ser assim ou se alguma coisa tinha de mudar.

Comecei a trabalhar aos 12 anos, mal saí da escola primária, por necessidade material, de ajudar ao orçamento da minha família. Mal entrei na oficina comecei a ser politizado pelos operários, que colocavam questões já em termos de reivindicação de melhores condições de trabalho, de melhores salários, etc. Este confronto todo obrigou-me a despertar para a necessidade de, também eu, participar nestes processos, que visavam melhorar as condições materiais da vida das pessoas que trabalhavam. Mas também ia mais longe.

Havia um operário muito velhinho, já reformado, tinha trabalhado no arsenal do Alfeite, onde tinha adquirido formação política. Como se sabe, o arsenal do Alfeite tinha uma grande organização clandestina do PCP. Ele era membro do PCP, soube-o muito mais tarde, que tratou de mim, digamos, [Risos] tratou de me transmitir algumas noções básicas do que era o PCP, o que é que ele se propunha fazer.

Simultaneamente eu e um grupo de jovens frequentávamos um centro social e cultural em Moscavide, onde demos início a um conjunto de atividades. O centro estava praticamente morto em termos de atividade e um grupo de jovens, de que eu fazia parte, sentiu necessidade de criar ali alguma atividade para, por um lado nos ocuparmos e para, para outro lado, transmitirmos algum conhecimento.

Começámos por formar uma biblioteca. Cada um trouxe de sua casa os livros que tinha, eu trouxe os meus. Também havia umas salas - nós aproveitámos as salas para fazer exposições de arte, para convívios a que levámos os cantores da época - Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, o Francisco Fanhais. Esta atividade começou a dar nas vistas, porque começou a atrair muita gente para ali e, naturalmente, que os informadores da PIDE também se aperceberam disto e começaram a fazer informação para a PIDE sobre a atividade que nós - este grupo de jovens - ali realizava. Não só a PIDE, mas também os membros do PCP que havia em Moscavide. Também notaram esta atividade e aproximaram-se. Uma noite, um jovem que eu desconhecia, abordou-me para falar do Partido Comunista e para me propor que aderisse ao Partido Comunista.

Eu tinha muitas reservas, apesar das conversas que o meu [Risos] mestre operário ex-arsenalista tinha tido comigo, eu tinha algumas reservas. A minha formação era católica, na igreja ouvia dizer que os comunistas eram [Risos] parentes afastados do Diabo - eram vermelhos e o vermelho era conotado com sangue, com o Diabo, com essas coisas todas. E eu tinha as minhas reservas. No entanto, decidi aderir ao Partido Comunista, porque este jovem me disse que o Partido Comunista era a única organização que lutava contra o fascismo, que se propunha a construir uma sociedade democrática, onde todos pudéssemos falar à vontade, onde houvesse liberdade de expressão, onde pudéssemos manifestar as nossas opiniões. Isto para mim, na altura com 14 / 15 anos, era importantíssimo, porque eu não concebia que eu não pudesse falar com um amigo meu de tudo aquilo que eu e esse meu amigo quiséssemos falar.

Como se sabe, não havia liberdade de expressão em Portugal e quem fosse «apanhado» a falar de temas como a guerra colonial… por exemplo - que era uma questão bem presente, sobretudo para a juventude no meu tempo. Nós sabíamos que assim que tivéssemos 18/ 19 / 20 anos eramos incorporados no serviço militar e iriamos combater numa das três frentes de guerra que se travavam em África e isso era uma questão que nos preocupava a todos, porque eu já achava que estas guerras não eram justas. Se eram guerras contra povos naturais era porque esses povos sentiam a mesma necessidade que eu sentia, de ter coisas que eu não tinha. Esses povos também, de certeza que teriam as suas razões para fazer guerra, contra um país que era ocupante. Perante isto decidi aderir ao Partido Comunista.

Passei a desenvolver atividade clandestina, naturalmente, de acordo com o que o Partido me pedia. Que consistia em quê? Em fazer agitação. Em distribuir propaganda em vários locais, nomeadamente os locais de trabalho, onde passasse muita gente - obviamente não iriamos distribuir livremente: «Toma lá!», porque isso não era possível [Risos]. Mas deixar propaganda nestes locais, de forma que, quando alguém passasse, pudesse encontrar e levar. Fiz esta atividade até, aproximadamente, aos 20 anos. Poucos meses depois de ter completado 20 anos a PIDE, que tinha entretanto prendido este meu amigo que me tinha recrutado para o PCP e outros, decidiu vir ter comigo e prender-me.

Fui preso na empresa onde trabalhava. Ia-me casar num sábado e a polícia foi à empresa onde eu trabalhava, prender-me na sexta-feira anterior. Portanto, na véspera do dia do meu casamento a PIDE prendeu-me. Fui transportado para Caxias e aí fui sujeito aos interrogatórios, que já foram de certeza relatados por outros ex-presos.

Fui diretamente para Caxias, para o Reduto Sul, onde estive um dia inteiro. Fui preso às 10 horas da manhã, onde estive até por volta das 20 horas em interrogatório consecutivo. Logo no primeiro dia fui agredido, violentamente agredido, porque a PIDE entendeu que eu estaria a provocar, com uma atitude que tinha assumido.

Eu quando fui colocado dentro da [sala] fui deixado sozinho. A sala de interrogatório tinha uma mesa com um banco de um lado, outro banco do outro e eu decidi sentar-me e fiquei sozinho. Eles saíram e eu fiquei sozinho. Pensei: «Deixam-me sozinho aqui porquê? É porque devem ter por aí algum processo para me observarem o comportamento, se eu estou nervoso ou não estou, para depois me interrogarem de acordo com o perfil que eles traçarem» - este foi o meu pensamento - «então o melhor a fazer é mostrares-te calmo». Eu que tinha dormido muito mal na noite anterior, [Risos] pus a cabeça em cima do tampo da mesa e instantaneamente adormeci. Desliguei completamente do sítio onde estava, de tudo. Adormeci profundamente, não sei quantos minutos. Sei que quando acordei estava no chão e a ser pontapeado. Um PIDE tinha entrado, tinha tirado o banco com o pé - eu caí e começou a agredir-me, com outro a assistir. Foi a minha estreia na PIDE e em Caxias.

Depois fui transferido para o Reduto Norte, onde estive cerca de uma semana sem qualquer contacto.  A PIDE desinteressou-se completamente de mim - o que me levava a pensar: «O que é que eu estou aqui a fazer? Porque é que não me interrogam?» - entretanto também - «Como é que estará a minha família? Como é que estará a minha noiva?». É um desespero muito grande, o estar nesta incerteza: «Ter-se-ão esquecido de mim?» - o que era ainda pior. [Risos] Ao fim de uma semana voltaram a ir-me buscar, de novo para o Reduto Sul, para um interrogatório profundo.

O que é que procuravam saber? Que atividades é que eu desenvolvia, quem eram as pessoas com quem eu contactava, quem é que me tinha levado para o PCP. E eu recusei-me: «Chamo-me Clemente Alves, trabalho no sítio que os senhores conhecem, foram-me lá buscar. E não tenho mais nada. Não conheço essas pessoas, não conheço ninguém». [Eles]: «Mas você é do Partido Comunista?». «Não sei o que isso é», procurei fazer resistência. Entenderam de novo [Risos] que eu estaria a gozar com eles e voltaram a agredir-me, à chapada. Estive neste processo durante três dias e três noites, neste processo de interrogatório. Voltavam sempre à carga. Saiam, voltavam, saiam, voltavam.

Fiz a tortura do sono, sim. Com alucinações, aí a partir do segundo dia e noite sem dormir, começamos a ter alucinações. Lembro-me que uma alucinação que eu tinha e era persistente - eu tinha acabado de ler um livro de um autor francês, o [Anatole France], que se chamava A Ilha dos Pinguins. Então ao caminhar na sala, o chão era de cimento com uma gravilha, umas pedrinhas com cor diferente, e eu olhava e aquelas pedrinhas eram pinguins. Olhava para a janela e via os pinguins a entrar e a sair da janela, uns entravam, outros saiam. Ao caminhar, porque eles também estavam no chão, levantava muito os pés para não pisar os pinguins. É a passagem da nossa consciência, ou da nossa subconsciência já, para um outro estado, quase de alucinação.

Voltei de novo para o Reduto Norte, para a cela, onde estive mais dois dias. Ao fim de dois dias chamaram-me porque tinha visitas. Era o meu pai e a minha mãe, que me iam visitar. Fui visitado, ainda estava marcado das pancadas que tinha recebido e, quando entrei no parlatório - estava o meu pai num lado, a minha mãe no outro - a minha mãe mal me viu começou num pranto a chorar: «Ai, o meu filho. Coitadinho do meu filho!». O meu pai não. O meu pai abriu um sorriso muito largo, olhou para mim, viu-me naquele estado e disse: «Estás-te a portar como um homem, fico orgulhoso de ti». Isto foi uma prenda que eu guardo até hoje. A coragem que o meu pai - que é um homem analfabeto, com uma consciência política primária, não elaborada, mas de uma dignidade muito grande - foi capaz de me transmitir num momento em que nós sentimos as nossas forças e as nossas certezas próximo de nos abandonarem. Guardo esta memória do meu pai para toda a vida. E sempre que me refiro a ela os meus olhos brilham, não podem deixar de brilhar.

Relativamente à minha noiva, soube entretanto, pelos meus pais, que ela tinha sido informada no dia em que eu fui preso. Os meus colegas tiveram a atenção de a contactar, dizendo o que é que se tinha passado. Só consegui ter visita dela cerca de um mês depois da prisão. Para ela foi extremamente doloroso, como se calcula também.

Esqueci-me de referir este pormenor: quando cheguei à cela, no Reduto Sul, logo que entrei, me disseram: «Nós sabemos que você se vai casar amanhã, de maneira que vamos lá a despachar isto. Vamos lá despachar isto. Diga-nos aquilo que nós queremos, que você daqui a bocado vai-se embora e ainda se vai casar amanhã». E pronto, eu não fui casar amanhã, [Risos] porque não lhes disse aquilo que eles pretendiam. Era uma forma de pressão.

Durante a tortura do sono, isto é importante referir também, eu ouvia gemidos de quem está a fazer amor. E eles diziam-me que era a minha noiva e eles tinham gravado, que ela estava com outro. Usavam também estes processos.

Continuei na cela sozinho até que o processo de interrogatório foi encerrado e passámos ao [que eles chamavam] regime comum, em que nós passamos a estar numa cela com outros presos. Onde fui depois encontrar um camarada de organização, também de Moscavide, e outros presos.

O julgamento começa, salvo erro, em novembro. O grupo a que eu pertencia tinha oito elementos - tinham sido presos oito elementos. 6 de nós fomos condenados - eu a 14 meses de prisão, outros dois ou três a 14 meses e dois a 18 meses de prisão.

Eu já tinha sido condenado. Caxias não era uma prisão para cumprimento de penas, era uma prisão até à instrução do processo, até à condenação. (...) Os meus camaradas tinham sido transferidos para Peniche e [pensava]: «Porque é que eu ficava ali? Porque é que eu estava aqui e não ia para Peniche?». Decidi escrever uma carta ao Diretor da prisão, dizendo que as condições da prisão não eram boas, aqui em Caxias. Eu era mantido num regime de semi-isolamento - não era completamente isolamento, via alguns presos, que eram sempre os mesmos, e geralmente antagónicos. Colocavam na mesma cela gente de outras organizações políticas para que nós nos déssemos mal e para que o estar ali fosse doloroso para todos - e acabava por ser. E eu entendia que Peniche tinha melhores condições para eu estar. O meu anseio também era poder estar em coletivo com os meus camaradas, poder conversar com eles e ler, ler livros. Foi isso que fiz, escrevi ao diretor da prisão pedindo-lhe a transferência. Passado uns dias concedeu que eu fosse para o forte de Peniche.

Só mais tarde é que eu vim a saber a verdadeira razão de me deixarem para trás. Na origem da minha prisão está um recrutamento que eu fiz para o Partido. Na empresa onde trabalhava - era uma grande empresa, o Casino do Estoril, cerca de 1800 trabalhadores - e também junto dos jovens da minha idade, comecei a desenvolver atividade. Deu um bocado nas vistas a um determinado individuo, que era chefe da secção de pessoal que tinha acesso à informação dos processos de todos os trabalhadores. Era agente da PIDE e formador da PIDE, altamente qualificado, com formação na escola da PIDE para detetar situações destas, que se aproximou de mim. Fez-se muito meu amigo, eu tinha por ele uma consideração sem limites, porque era um individuo muito prestável. Era ele que me levava, pela mão quase, às livrarias onde se compravam os livros que estavam clandestinos, os livros que estavam proibidos pela censura. Era um individuo que para mim estava acima de qualquer suspeita, era um homem de confiança. E sendo um homem de confiança merecia ser recrutado para o Partido e eu recrutei o informador da PIDE, altamente qualificado, para membro do Partido. Foi este homem que deu origem a todas as prisões. Eu fui o último a ser preso, propositadamente, para que não se pensasse que tinha sido aquele homem. Porque o Partido iria sempre tentar investigar o que é que estaria na origem da prisão de um grupo. Quem é que estava ligado, quem é que foi preso e não foi preso, se os primeiros presos falaram e depois foram os outros em sequência, em resultado das declarações dos presos anteriores, etc. Para que se escondesse esta fonte, eu fui o último a ser preso. Procuraram sempre, mesmo no meu interrogatório, não ir muito longe nas torturas, na pressão, para que eu não decidisse falar e falar no nome dele. Porque se eu falasse no nome dele a PIDE tinha que fazer alguma coisa, e se não fizesse estaria a deixar a descoberto, porque eu, logo que possível, transmitiria aquilo que se passou no interrogatório - quando chegasse a Peniche, por exemplo - aos meus camaradas mais velhos, que estavam encarregues de fazer passar a informação para o exterior. Esta também é a razão pela qual eu sou deixado para trás em Caxias, depois de condenado, para que não fosse a Peniche e não transmitisse a origem da minha prisão.

Fomos transferidos para Peniche, onde passámos a estar e a cumprir aí a pena. Em condições também muito duras, mas ao mesmo tempo muito realizadoras para o preso. Para quem tem uma consciência política, para quem está a adquirir uma consciência política. Nós vamos estar em contacto com presos com uma experiência de luta, com uma cultura muito grande, que nos transmitem - que fazem os possíveis para nos transmitir. Este é um processo que, para mim, foi determinante na forma como eu depois me vim a desenvolver como ser humano, até hoje. Foram exemplos muito grandes de abnegação, de amor ao próximo. Eu utilizo ainda esta expressão do amor ao próximo, que vem da minha formação cristã, mas de facto é este o sentimento que existe entre quem luta por uma sociedade mais justa. Uma sociedade mais justa não é para si, é para todos. Isto gera fraternidades muito grandes entre aqueles que se irmanam neste propósito. Estive com homens de uma grandeza inexcedível. Ouvi histórias que foram verdadeiras, que toda a vida me acompanharam.

Nós tínhamos celas que eram comuns. Haviam presos que viviam isolados, estavam em isolamento, mas estava num outro pavilhão. Os presos de maior responsabilidade, os dirigentes do Partido. Eu estava numa cela onde estavam mais oito presos, que durante a noite era fechada com um gradeamento, de manhã abria. Abriam as celas todas e nós, naquele pavilhão, circulávamos. Podíamos circular, falar uns com os outros. Tínhamos um refeitório em comum. Discutíamos uns com os outros. Já podíamos jogar xadrez, que era uma coisa que, noutro tempo, foi considerada subversiva e deu origem até a uma célebre fuga de Peniche, do António Dias Lourenço. O xadrez foi proibido durante muitos anos nas prisões, porque permitia uma libertação do espírito muito grande - para quem sabe jogar xadrez, sabe que é assim. Nós definíamos, em Peniche, o xadrez como demasiada ciência para ser jogo e demasiado jogo para ser ciência. É um jogo muito evolvente que nos permite a evasão do espírito. Nós não estávamos presos quando estávamos a jogar xadrez - e isto era proibido.

Nós fazíamos os tabuleiros de xadrez com um cartão, desenhávamos os quadrados, fazíamos peças com o miolo de pão: amassávamos o miolo de pão e esculpíamos as peças: as torres, os cavalos, os bispos, os peões. Éramos nós que fazíamos as peças. E fazíamos jogos de xadrez. No tempo em que não era permitido, o Dias Lourenço decidiu - estava proibido, já tinha sido castigado por ser apanhado a jogar xadrez - decidiu um dia, no recreio, desenhar um tabuleiro no chão e com umas pedrinhas brancas e umas pretas pôs-se a jogar sozinho. Os guardas apanharam-no. [Diálogo]: «Você está proibido de jogar xadrez». «Mas não estou a jogar xadrez, você não vê que isto não é xadrez?». «Isto é xadrez! Você estava aí a dizer Xeque-mate!». [Risos]. Ele foi levado para o isolamento, que é um torreão no forte de Peniche, de onde depois - ele já estava preparado para isso - de onde depois se evadiu, atirou-se ao mar, nadou - ele era um nadador exímio - nadou até ao pontão e depois escapou.

Eu, em Peniche, sofria muito da garganta, tinha infeções recorrentes nas vias respiratórias, sobretudo na garganta, com as mudanças de temperatura constantes. Peniche era muito frio no Inverno. Não tinha condições nenhumas em termos de conforto, nenhumas mesmo. Nós muitas vezes tínhamos que apanhar água do mar que entrava dentro das celas, quando batiam as ondas, se nós não tínhamos as janelas bem fechadas a água entrava lá dentro. Era difícil e isso afetava-me a minha saúde. Fiquei com uma infeção muito grande, a ponto de eles se terem preocupado - não fosse eu, se não fosse tratado, ter um problema muito sério que depois lhes causasse problemas. Então transferiram-me, um mês e meio antes de expirar a pena, para o hospital-prisão de Caxias. Onde estive com outros presos, que estavam aí a receber tratamento. E fui libertado. Quando fui libertado, fui libertado já no hospital-prisão de Caxias.

O ato da libertação é um deslumbramento. Parece que nascemos de novo para a vida. Quando estamos presos e confinados, sobretudo quando estamos sozinhos, o tempo dói-nos.

Recordo-me que quando passei o portão de entrada do hospital-prisão - de entrada e saída, neste caso era de saída - tinha cá fora, à minha espera, a minha noiva, os meus pais e corri para eles. Atravessei a estrada, corri para eles, dei-lhes um abraço. Mas lembro-me perfeitamente da primeira golfada de ar que eu respirei quando passei o portão. E achei que o ar era uma coisa magnifica, era extasiante: foi este o sentimento da liberdade. A liberdade tinha sabor, tinha cheiros a que eu já me tinha desabituado. E aqueles abraços. Foram uma sensação maravilhosa: estou vivo, estou cá e estou forte - era este o sentimento que tinha.

Casei-me passado uns dias. Uma semana depois de ter sido libertado fui incorporado no serviço militar, já no regime especial. Eu deveria ter sido incorporado antes, em julho, salvo erro, e como não tinha comparecido à incorporação sou considerado refratário - um individuo que aparece tarde a uma coisa qualquer. Sou colocado numa companhia de instrução, onde rapidamente sou objeto de discriminação. Tenho um tratamento diferente daquele que é dado aos outros recrutas. Eles tinham a informação da PIDE, que eu tinha estado preso e, portanto, seria um elemento a ter um tratamento especial em termos da instrução militar. Por exemplo, nos exercícios de tiro - é suposto um soldado saber disparar uma arma, não é? Isto é das primeiras coisas que transmitem ao soldado: primeiro é ensiná-lo a marchar, a obedecer, e depois, a disparar. Eu disparei dois ou quatro tiros. Quando estava a fazer tiro, a determinada altura, o sargento veio-me bater no ombro a dizer para eu parar e para recuar. Quando recuei estava um oficial com um papel na mão, com instruções da PIDE, a dizer-me: «Você já não dispara mais». Durante o período de instrução davam-me uma arma, porque não era bonito ver um soldado, no meio de 50 soldados, num pelotão, ou 30, todos com uma arma para mostrar e eu não ter arma - então a minha arma não tinha culatra, não tinha a peça que faz disparar a bala. Tinha uma coisa que fazia de conta que era, porque eu ter uma arma na mão que disparasse era perigoso. [Risos] Foi assim a minha tropa, até a um determinado ponto.

Num momento em que já não estou na fase da instrução, fui enviado para um curso. Eu tinha habilitação para poder ir para um curso de sargentos milicianos - fui impedido de o fazer. Fui para amanuense do exército, fazer a especialidade de amanuense, ainda em Leiria. A meio da especialidade, com mil e tantos soldados na parada, veio um oficial, também com dois soldados de G3, e chamaram pelo meu número. Eu avancei. No momento em que avancei, os soldados já tinham instruções - algemaram-me. Algemaram-me em plena parada, levaram-me à caserna, tiraram as minha coisas, sou metido numa carrinha e levado para uma Companhia disciplinar em Penamacor. Transferido para Penamacor, onde fui colocado no meio de outros soldados que também estavam em regime - não prisional, mas pós-prisional, pelo cometimento das mais diversas faltas, alguns até crimes de sangue. Gente que nas guerras em África tinha perdido juízo e matado outros soldados, gente que na vida civil eram carteiristas, eram ladrões de qualquer coisa - e apenas estava eu mais dois ex-presos políticos.

Foi uma experiência interessante. Assim que chego a Penamacor os outros presos reúnem-se todos para interrogar o novato, para saber qual era a nossa especialidade. [Risos e reproduz diálogo]: «Qual é a tua especialidade?» «Especialidade em quê? Eu estava como amanuense...». «Não é nada disso! A tua especialidade, o que é que roubas?». E eu lá tive que lhes explicar que não roubava nada [Risos] não estava ali por isso. Estava ali porque era membro do Partido Comunista, tinha estado preso em Caxias e em Peniche. E há um que em determinada altura me pergunta: «Partido Comunista? Mas isso dá?». [Risos] Foi interessante a relação com aquela gente diferente, com vidas completamente fora do meu mundo, mas ao mesmo tempo também humanos. Tinham um fundo de humanidade muito grande. Eles sabiam que eu era diferente. Eles roubavam-se todos uns aos outros - os relógios, as peças de fardamento, tudo aquilo que eles vissem que podia render qualquer coisa num mercado qualquer, eles tratavam de arrebanhar isso para si - a mim nunca me tiraram coisa nenhuma. (...)

Penamacor fica próximo da Serra da Estrela, é muito frio no Inverno. Uma caserna que não tinha a mínima condição, com vidros partidos. Entrava o vento por todo o lado, o frio por todo o lado. Nós estávamos constantemente a tremer. Fazia-se uma fogueira no meio da caserna - eles arranjavam lenha para isso - e havia dois ou três que saiam para ir roubar galinhas e assavam as galinhas ali, na lata. [Risos] Eu tinha sempre direito a uma perninha ou uma asa de galinha.

Ao fim de estar três meses em Penamacor sou chamado ao Comandante, que, sem ter dado um tiro sequer - porque isso era proibido para mim - me disse que tinha sido classificado como atirador de primeira [e refere]: «E digo-lhe já, vai estar mobilizado para a Guiné, e se não apanhar um tiro pela frente, apanha pelas costas de certeza». Ele não me disse isto para me alertar, disse-me isto para me acusar: «Você é um criminoso!». Eu era o mais criminoso que ali estava, para ele, porque eu combatia o Estado que lhe tinha permitido chegar de soldado a capitão. Ele sentia que era um dos poderosos do Regime e, portanto, ele tinha de defender o regime contra os seus inimigos - e eu era o inimigo. Portanto, ele transmitiu-me que «Lá ajustamos contas. Apanha um tiro pelas costas, de certeza absoluta». Eu sabia mais ou menos que as coisas se iam passar assim e tinha já tratado de saber o circuito para poder sair do país. E fui para França.

A meio do caminho ainda fui preso, fui detido na passagem de fronteira de Irún para Hendaia, salvo erro. Sou colocado num comboio para voltar para trás. Entretanto o agente da DGS espanhola que me tinha detido - porque na passagem era suposto as coisas terem corrido bem e estar do lado de cá um espanhol que deveria facilitar a passagem e, do lado francês, estar um francês que estaria no sistema de passagem destes clandestinos. O francês falhou. Eu sou devolvido e então a DGS espanhola meteu-me no comboio, que entretanto nunca mais arrancava. Então [o agente] da DGS espanhola lá me convenceu que quando chegasse a Paris lhe enviaria 10.000 francos, porque de outra maneira ele mandava-me para trás. [Eu]: «Juro-lhe que lhe mando os 10.000 francos! Assim que lá chegar. Tenho lá amigos que têm dinheiro». [Ele]: «Então dê-me lá a morada para onde vai». Eu dei-lhe uma morada que não era [Risos]. «Olhe que eu tenho os seus dados, se você não me mandar os 10.000 francos, eu tenho maneira de chegar ao sítio para onde você vai e depois ajustamos contas». Até hoje não ajustámos. [Risos]

Estou em França. Um mundo completamente diferente do de cá, mas ainda assim onde se sente opressão. Opressão sobretudo sobre os emigrantes. Comecei a ver muita gente de manhã, em Paris, gente cinzenta a passar. Gente meã de tamanho, como os portugueses eram aqui na altura - nós agora já somos mais altos, porque as farinhas que comemos e a alimentação já nos dá mais proteína e nós crescemos. Naquele tempo não. Nós eramos atarracados e eramos acabrunhados. O Regime acabrunhava-nos. Quem estava a trabalhar em França tinha, geralmente, família aqui. Tinha filhos, tinha mulher. Tinha aqui uma vida desgraçada e lá trabalhava desgraçadamente para poupar e enviar para aqui. Os portugueses viviam, como se sabe, em bidonvilles - bairros de lata gigantescos em Paris, nos arredores de Paris. E de manhã víamos este [cenário]. Era a segunda cidade com maior população de portugueses, na altura, em [19]73. Calculava-se que residiam à volta de Paris cerca de 250.000 portugueses. O Porto tinha menos habitantes do que portugueses em Paris. Estes seres cinzentos víamo-los de manhã, víamo-los depois à noite, a regressarem. Não se ouvia falar português nas ruas de Paris.

No dia 25 de abril - eu apercebi-me do 25 de abril porque procurávamos ouvir as notícias. Ouvia-se um fiozinho de português e de música portuguesa no Rádio Clube Português e na emissora nacional da altura. Eu apercebi-me de que havia um movimento de tropas em Portugal e ouvi o primeiro comunicado do MFA [Movimento das Forças Armadas] - ouvi-o em Paris - e fiquei numa excitação tremenda. Lembro-me que vim muito cedo para a rua e já via gente a abraçar-se na rua, já ouvia falar português. Ouvia-se falar mais português do que francês naquela altura - os escravos estavam a sair dos seus tugúrios e a falar uns com os outros: «Já sabes o que é que aconteceu?». «Houve um golpe em Lisboa!». «É o Spínola!». Isto é um deslumbramento, como calculam. Foi o dia mais feliz da minha vida.

O 25 de abril foi o dia mais feliz da minha vida, vivido ali, em Paris. Com gente a abraçar-se, com gente a festejar a liberdade de que eles tinham tanta falta. Passavam a sentir naquele dia que já eram gente, que já podiam mostrar que eram gente, porque também em Portugal ia haver liberdade. Era esta a esperança, logo nas primeiras horas, mesmo no estrangeiro".