Nome: Domingos Abrantes Ferreira
Ano nascimento: 1936
Local do registo: Algés
Data do registo vídeo: 21-10-2021

Transcrição

"A fuga de Peniche andou paralela a esta. Mas nem nós sabíamos da deles, nem eles sabiam da nossa. Repare que a deles é quase um ano antes. Está bem, eles já estavam preparados - a fuga de Peniche demorou mais de um ano - mas esta demorou a preparar 19 meses, é muito tempo. É mesmo. É um tempo imenso. Até pelas incertezas, porque nunca se sabia, no dia da fuga, quem é que estava na cadeia. Até porque alguns já estavam condenados, depois mudavam-se de salas, mas quem estivesse naquela sala é que fugia. Umas vezes estávamos cinco [na sala], depois os carcereiros embaralhavam, punham-nos dez. (...) Por acaso no dia da fuga estávamos todos juntos [Risos] estávamos dez.

O problema das fugas, a questão básica é descobrir os pontos fracos da segurança da cadeia. É o princípio elementar. Na orientação do PCP os quadros funcionários clandestinos - e só podiam ser clandestinos, porque fugindo tinha de se voltar para a clandestinidade - havia uma orientação do Partido que era: tudo fazer para fugir. Mas há uma grande distância entre procurar fugir e fugir [Risos]. Procurar fugir era logo no primeiro dia [Risos]. Não, há uma distância enorme. Em muitas vezes nós descobrimos que há ali uma fragilidade na segurança, mas o preso não tem possibilidade de lá chegar. A gente sabe que ali há uma fragilidade, há um ponto fraco, mas eu não vou lá.  Claro que depois também é tentar ir.

Antes desta fuga esteve em preparação uma outra fuga, um sítio onde nós descobrimos um ponto fraco, que era o lavadouro e começámos a exigir aos carcereiros ir lavar roupa. Hoje sabemos que a fuga não ia a lado nenhum. Já sabíamos onde entravamos, que era um túnel, mas só depois do 25 de Abril é que soubemos que íamos ter aos pés da polícia, [Risos] da GNR. Porque a gente sabia, sabia que havia um túnel, mas não sabíamos onde é que estava a segurança, os postos da GNR.

Aliás, lembro a questão do preso, do António Tereso, que se fez «rachado» - porque na altura não havia carro, a gente não sabia do carro. A função dele era ganhar confiança dos carcereiros, circular pela cadeia, para descobrir os postos - porque a gente não conhecia a cadeia, a gente estava confinada num determinado sítio, aí de 50 / 60 metros, portanto da cadeia só conhecia o corredor e um retângulo. A função dele era descobrir...

Os carcereiros, ou porque acharam que havia insistência a mais em ir lavar roupa, ou porque ouviram bater na parede - porque aquilo tinha de se deitar abaixo uns tijolos para passar desse lavadouro para o túnel - e o mais certo até ouviram a fazer [bate com as mãos] prospeção de parede, e acabaram com o lavadouro. Aliás, entaiparam o próprio túnel e acabou, portanto tivemos que voltar ao princípio.

E é aqui que costumo dizer que os carcereiros deram uma ajuda - às vezes numas entrevistas ficam de olhos abertos quando digo que os carcereiros deram uma ajuda; os carcereiros não dão ajudas, mas dão ajudas involuntárias. E aqui até deram bastantes ajudas involuntárias. Involuntárias, isto é, medidas de defesa que se viraram contra eles.

E portanto, depois da fuga de Peniche criou-se ali uma paranoia securitária - viam fugas por todo o lado. Aquilo era restringir os nossos movimentos, criaram um portão, que não havia, a separar a cadeia da rua - que aquilo tem o edifício, tem portões, mas depois havia uma parada à frente que tem uns morros. Esse portão teve que ser rebentado pelo carro.

Então, separaram os presos - mandaram vários para Peniche, e separaram todos os outros que eram funcionários do partido por várias salas. Disseminar se houvesse uma fuga, tinham alguma razão, [se estivessem] dez juntos fugiam só dez, ou só oito. Portanto separaram - e foi a morte dos carcereiros. E foi a morte por duas razões: primeiro porque a organização interna começou a melhorar. Os presos mais combativos, mais desobedientes. Houve grandes lutas de presos até - Natal de [19]60, uma das grandes lutas prisionais. Com famílias cá fora, gritos, uma gritaria: «Queremos visitas em comum pelo Natal!». A polícia espancou aquela gente, arrastou famílias, uma coisa mesmo de «cheirar a bispo», como se costuma dizer. Portanto os carcereiros deram-se conta que a combatividade dos presos estava a aumentar, e a organização - então resolveram voltar à primeira forma: juntar tudo outra vez, os funcionários todos.

É nesse entretanto que o José Magro convence o António Tereso a rachar - rachar eram os presos que se tinham passado para o lado dos carcereiros; eram uns oito, nove, dez, não são mais. Para nós rachar era descer abaixo, ao fundo do poço. Tinha-se passado para o outro lado, uma indignidade. Ninguém falava a rachados, nenhum preso. Nem bom dia, nada, zero - nem às famílias. No entanto eles tinham algumas pequenas regalias, para além de trabalhar. Para nós eram rachados, eram pessoas que tinham passado para o outro lado. A indignidade tinha atingido o limite que era possível num preso, portanto, na nossa gíria eram rachados. Racharam, portanto.

Os carcereiros, para eles, aquilo eram troféus - fazer rachar pessoas era um troféu. Claro que tinham que dar alguma coisa: visitas em comum, salas abertas, não estavam fechados e tal. Aquilo eram trocos, mas pronto, para aquela gente não.

Então o Zé Magro, convenceu o camarada António Tereso a rachar. O Tereso nem queria acreditar. Aquilo era uma tarefa que não se pede a ninguém [Risos]. O Tereso sabia que a partir dali a família dele, ele, era um patife, tinha descido ao mais fundo. E aquilo ficou completamente atordoado. O Zé Magro lá o convenceu da importância: «Não sabem eles, mas sabe o Partido. O importante é que o Partido saiba que tu és um homem sério». Quem é que entrava na cabeça do Tereso? Rachado, até à libertação, que não estava no horizonte, era um rachado. Ele depois não podia dizer: «Epá eu trabalhava para o partido. Foi o partido que me pediu isso».

Lá se convenceu da «chateza» da tarefa e aceitou. Forjou um incidente, ofereceu porrada lá a uns jovens que eram amicíssimos dele - ficou tudo de boca aberta. Foi à porta, deu uns murros na porta: «Estou farto de comunismo. Tirem-me daqui pá! Com o comunismo já estou por aqui [aponta para a garganta]», lá fez uma encenação [Risos] à maneira, mas os carcereiros não comeram.  [Acharam] que aquilo não encaixava muito no perfil, até porque ele tinha sido julgado uns tempos antes, tinha mandado vir com os juízes - havia ali qualquer coisa que para os carcereiros [não batia certo]. Mas a gula sobrepõe-se ao bom senso. E então, havia um carcereiro que ajudava o Tereso a escrever cartas para a mulher a dizer «Epá estou farto [do] partido, estes malandros, estes bandidos...». Ele é que fazia a carta, o Tereso, [mas] passava pelos carcereiros - e portanto, lá se convenceram que o Tereso estava maduro e lá o levaram. Ninguém sabia. Só sabia o camarada que falou com ele, mais um outro e ele.

Primeiras consequências: criou-se logo um problema difícil, porque para nós - para a malta que estava na sala com ele - ele era rachado, não sabiam que ele estava a cumprir uma tarefa. E a certa altura os carcereiros iam levá-lo e a malta que estava na sala dizia que não o queria lá, que ele era um rachado no meio deles. (....) O partido fez uma carta clandestina lá para toda a organização: «Desprezo. Toda a gente deve deixar de falar ao Tereso. Cortar com a família». [A mulher dele] tratada como mulher um rachado. Ele era trabalhador da CUF, os trabalhadores da CUF pagavam-lhe o ordenado - continuavam-se a quotizar [para lhe pagar o ordenado]. Acabou o ordenado. Foi um problema sério para a mulher. E o Partido não podia dizer: «toma lá o ordenado do teu marido», isso era... [Risos].

É uma decisão extremamente difícil, só uma pessoa com muita coragem, com muita disponibilidade de servir - e depois viver no meio dos bandidos. E ele revelou-se um talento. Uma pessoa talentosa para aquela tarefa. Não era só disponibilidade. Podia ter disponibilidade e não ter talento. Mas ele tinha de facto talento. Usou uma dupla personalidade, com muita rapidez e com muita convicção. Tornou-se o preso da maior confiança da direção da cadeia. E o diretor da cadeia, que era um inspetor da PIDE, tinha mais confiança nele do que em muitos carcereiros. E às vezes os carcereiros pediam-lhe a ele para pedir coisas ao diretor [Risos], tal era a confiança. Ele, aliás, era a única pessoa ali que não precisava de pedir autorização para ir ao gabinete do diretor, era «tu cá, tu lá». O diretor que era um megalómano, um fulano femeeiro, e então ele [o Tereso] dizia: «Senhor diretor…» - quando começou a ver o carro - «…quando formos ao Estoril com o carro aquelas gajas... os olhos até ficam em bico, quando virem o senhor diretor num carro destes!» [Risos] - aquilo era tudo montado. Ganhou uma confiança enorme. Aliás, há um relatório da GNR que diz que rigorosamente era o preso que circulava por toda a cadeia com a maior das confianças, com à-vontade. Ele ia a todos os lados da cadeia, exceto ao portão.

Ao fim de uns meses - porque a função dele, já disse, era fazer o reconhecimento da cadeia, que nós não conhecíamos. Nós estávamos numa sala, só saíamos meia hora por dia - e era preciso não chover para ir ao recreio que era uns metros adiante. Da cadeia sabíamos zero. Nem sabíamos onde é que estavam os postes. Era o papel dele. E ele, ao fim de uns meses, mandou-nos uma informação, que aquilo era tudo por mensagens, que não havia nenhumas hipóteses, que não havia nenhum ponto. (...) Tinha de ser entre o recreio e a sala. Eis se não quando ele descobriu o carro.

Na cadeia havia dois carros. Inicialmente julgava-se que era um Mercedes - ainda hoje se fala num Mercedes do Hitler. Havia de facto - o Salazar tinha dois carros, a questão do Mercedes não é uma ficção. Só que a manutenção do Mercedes era feita por um PIDE, que estava no lado oposto - um estava à entrada da cadeia e um outro estava [no lado] oposto - mas o PIDE quando ia lá fazer a manutenção levava sempre a chave, a ignição. Portanto o carro não servia para nada, não tinha ignição. O Chrysler tinha chave na ignição, mas não trabalhava. Trabalhava [mas] tinha um segredo, que só a PIDE é que sabia. 

E o Tereso andou ali, como ia a todo o lado, começou a ir à garagem e tal, e pediu ao diretor: «Senhor diretor eu vou tentar pôr o carro...».  «Ah você não consegue» - nem o diretor conhecia o segredo do carro - «Você não consegue...», e lá foi. Ele era motorista, não era mecânico. E foi através de uma conversa com o irmão, [acerca] de carros, sem lhe dizer nada - o irmão lá lhe deu umas dicas e ele conseguiu descobrir o segredo. Quando ele pôs o carro a trabalhar o diretor nem queria acreditar. Ganhou logo ali uma auréola [Risos]: «Ah senhor Doutor. temos de ir experimentar isto até ao Estoril»; de maneira que passou a andar, o carro…

Quando ele me disse que havia uma hipótese de fuga num carro, levantaram-se milhões de problemas, como deve calcular. Como é que se foge num carro ao qual nós não temos acesso? E é aqui que o trabalho, digamos... esta fuga é uma fuga única. Não é por eu ter fugido - a fuga de Peniche também é uma fuga espetacular e com grande redundância política. Mas esta fuga é única, não é só por ser a última.

Porque primeiro é uma fuga que ocorreu à luz do dia. Porque [n]as fugas geralmente, foge-se [e] só depois de ter fugido é que os carcereiros dão [conta]. Esta não, esta eles assistiram desde o primeiro segundo até ao último segundo. O que é uma originalidade. E uma fuga que resultou da perplexidade e de nós andarmos mais rápido do que eles. Um dos grandes problemas que se punha era: como é que se chega ao carro? Primeira questão. Não [somos] nós que chegamos ao carro, o carro é que tem de vir ter connosco [Risos]. Essa foi logo a primeira conclusão [comunicar com o Tereso e dizer]: «Tereso, só há uma solução, o carro tem de ir ter connosco». Essa ficou arrumada. Depois, como é que o carro chega onde nós parávamos? Aquilo era uma coisa, um quarto desta sala. Um morro enorme, com dois GNRs ali no sítio, mais uns tantos por cima, e um túnel que era da largura do carro. Portanto, o carro tinha que ir ter connosco e tinha que entrar de marcha-atrás porque não tinha espaço para fazer manobra. Está arrumado! O carro tem que entrar de marcha-atrás - essa ficou arrumada. Depois, como é que os GNRs vão assistir? Porque os GNRs estavam ali - para você ver, quando o carro chegou, o espaço que ficou era tão curto que eu sentia a espingarda do GNR nas costas. Foi o GNR que me empurrou para o carro, porque espaço não havia. Uma coisa que se sabia é que os GNRs iam assistir à fuga e tinham espingardas, não eram «pistolinhas», eram espingardas de guerra. Tudo isto é provado teoricamente, depois só no ato é que se pode comprovar que a teoria está certa. Ficou arrumado. Portanto, a perplexidade dos guardas [e] nós temos de andar mais depressa que os guardas.

Nós demorámos cinco segundos a entrar no carro. A GNR passou aquela gente toda a pente fino, foram todos interrogados, chegou à conclusão que nós fomos mais rápidos que o tempo de reação da GNR - que era a nossa previsão - e foi. Quando a GNR reagiu, mesmo o último GNR, ainda com a maior das calmas mandou parar o carro. [Risos] Mas vamos por partes: essa ficou arrumada. Depois: «Os GNRs vão disparar, têm espingardas. O carro é blindado ou não é blindado?» - e aí sabíamos zero. Mas era difícil que o Salazar não andasse num carro blindado [Risos]. Essa era coisa quase impossível, até porque já tinha tido o atentado, e nessa altura já era um carro blindado. Portanto, o senhor não se desloca em carro não blindado. Temos que confiar que é mesmo blindado. Porque sabíamos que o carro foi atingido com 19 balas não é brinquedo. Arruma. Portanto fomos arrumando.

Depois o carro tinha que passar um túnel e tinha que atravessar dois portões. Ora bem, então - um dos portões é daqueles portões fortaleza em ferro, não há nenhum carro que o deitasse abaixo, não adianta. Mas também soubemos que esse portão era fechado à noite a aberto de manhã. Houve um conflito entre a GNR e a direção da cadeia, a GNR queria aquele portão fechado - até porque o dormitório da GNR era ali - e a direção não o queria fechado, porque era por ali que se fazia o movimento interno da cadeia, abastecimentos e tal, e portanto, chegaram a um compromisso: fechava de noite e abria às 8h da manhã. Está arrumado. Este portão não existe.

Depois o outro portão. Sobre o outro portão sabíamos zero. Sabíamos zero, pá. Como é que é o portão? É um portão de chapa? É um portão de madeira? É um... zero pá. Porque a gente não tinha acesso ao portão - nem o Tereso. Mas aqui, a sorte - também sei bem que é sorte - e a ajuda dos carcereiros. Eu fui julgado. Fui «n» vezes ao tribunal militar, portanto passei muitas vezes ao portão e vi duas coisas: primeiro que o portão era um portão de madeira chapeado a chapa de ferro e vi que o portão tinha dois ferros que entravam pelo chão adentro, numa sapata de cimento e tinha depois ainda um outro ferro assim. Ora eu passei ali muitas vezes, e verifiquei que os GNRs por preguiça não metiam os ferros no chão. Podia, no dia da fuga, haver um maluco qualquer que tinha metido os ferros no chão - mas como por ali era o movimento dos carros, família, não estavam para fazer isto [imita o movimento de puxar os ferros]. [Risos] (...) Podia haver um maluco, mas não. Foram muitas vezes, nunca vi … os ferros estavam sempre em cima. Isto enfraquece bastante [o portão]. Mas claro, só na hora é que se sabia se o carro rebentava o portão ou o portão esmagava o carro, [Risos] isso aí só se sabia na hora. Aquilo fragilizava muito o portão. Então se fosse acertar mesmo ao meio aquilo, que estava só na fechadura [abria] - arruma.

Coisa mais complicadíssima: as famílias concentravam-se, para as visitas, no lado de fora junto a esse portão. Ora bem, com grande probabilidade, o carro podia levar o portão e levar as famílias. Não era um problema pequeno. Como é que isso se resolve? Porque a gente não podia dizer à família: «Vocês na segunda-feira [gesticula, como que a abrir espaço], no dia da fuga, ponham-se de lado» - a família só soube da fuga depois de cá estarmos fora. Ninguém [sabia], zero! Nem na cadeia, nem camaradas, mesmo da direção do Partido que estavam na cadeia, souberam da fuga. Ao mais pequeno deslize, qualquer frase, qualquer desleixo podia ser fatal. Como é que [se] resolveu o problema? O perigo era real. Então: as visitas começavam às 10h, e às segundas-feiras havia muito poucas visitas - porque 90% dos presos eram trabalhadores, famílias de gente operária, trabalhadora, que só vinham em grande massa aos domingos. Segunda-feira contavam-se pelos dedos, [Risos] era malta burguesa. A [fuga] tem de ser a uma segunda-feira, o risco é menor, e tinha de ser antes - à volta das 9h, porque a visita era às 10h, ninguém vai para ali às 8 horas.

Mas nós nunca sabíamos quando íamos para o recreio. Podíamos ir às 9h, podíamos ir às 10h, podíamos ir às 11h... Eles avisavam do recreio meia hora antes. Uma fuga destas não se pode... Na segunda-feira tinha de ter tudo preparado antecipadamente. As rotinas são terríveis - a gente começou a ver que as coisas voltavam sempre ao princípio: umas vezes era às 9h, depois era às 10h, depois voltava às 9:30h, depois era às 11h. Havia ali uma escala, nem podia deixar de haver. Porquê? Porque [n]a cadeia havia muitos presos e ia-se para o recreio sala a sala - não podia ser uma coisa arbitrária. Tinha que haver obrigatoriamente uma escala para toda a cadeia. Então acertamos em cheio. É assim: «Segunda-feira tal é às 9h». Ficou combinado com o Tereso que era no dia «tal», segunda-feira, se [fosse às 9h]. Às 8:30h lá vieram. Mas antes disso - aquilo tinha sido tudo [planeado] ao cronómetro, tudo em plano teórico, é um ensaio em laboratório, e sabíamos o risco. Era um risco assumido. A gente não ia fugir para morrer, mas era uma coisa que não podia estar excluída. A gente fugia para voltar à luta, ao trabalho, à vida partidária, clandestina, não era para morrer. Para morrer [Risos] tanto sacrifício para isso. Ninguém podia dizer que [iria resultar a] 100%. Isso era uma coisa assumida.

Já na véspera, mesmo na véspera, já havia um estado de tensão - não vai para um baile, quem vai fugir... sabíamos que a GNR ia assistir, que iam disparar. Tudo uma incógnita. Estava a vida em risco, sem dúvida - a vida, mais condenação. E há um camarada que diz: «Vamos morrer todos». Ele não disse assim, disse «Vamos ficar todos como paliteiro». Aquilo foi uma bomba. O que ia na cabeça de cada um era a sua cabeça - mas havia ali um camarada que exprimiu. Na cabeça dele a ideia de que íamos todos morrer. Exprimiu, ou saiu-lhe. Ficou tudo meio abananado. Isto não é uma coisa que se oiça e que não se tenha [em consideração]. Havia pelo menos um que achava que íamos morrer todos. Pelo menos um estava convicto disso. Isto é uma coisa que a gente... lá se discutiu tudo, passou-se tudo em revista. Vamos mesmo fugir. E ele também votou, votou por unanimidade. Mantém tudo na mesma.

Na segunda-feira de manhã às 8:30h eles disseram: «Preparam-se para o recreio». Foi feito um sinal ao Tereso, que tínhamos sido avisados para o recreio. O Tereso já sabia, só tinha que nos acompanhar a ir para o recreio. Estávamos na sala, faltava a confirmação que tínhamos saído da sala. E assim foi. Viu-nos sair - isso em meia hora, tínhamos meia hora, chegar ao recreio e tal - e foi a correr à garagem, sabotar os outros carros da cadeia. Passar a gasolina dos carros para aquele carro, tudo em alta velocidade. Aquilo era uma tensão calma, a gente vai ali em fila indiana pelo corredor, mas aquilo... a gente não vai para uma festa, [Risos] a gente vai para uma coisa cheia de incertezas.

Lá ocupámos o nosso espaço no [recreio], eramos dez e só iam fugir oito. Ficaram três de um lado e os outros quatro do outro lado. A gente tinha feito uma bola em pano, para [fazer] espaço no meio da gente. A gente mandava a bola [simula estar a jogar voleibol] como se estivéssemos a jogar, para justificar estarem uns de um lado e outros de outro. E eis que quando a gente estava à espera do carro aparece a polícia. Aparece uma carrinha da polícia no sítio onde deveria estar o Tereso com o carro. Dois e dois são quatro, a fuga... porque a gente não tinha contacto com o Tereso, a gente não via nem sequer o Tereso nem o carro - tinha ido buscar o carro. Felizmente o Tereso, quando vinha com o carro, viu chegar a polícia e já não entrou, se ele tem entrado o carro da polícia não o deixava sair. Aparece o carro da polícia. Aquela hora, na hora da fuga, num sítio que em princípio a polícia não devia estar. Uma brigada de polícia num carro [pensámos]: «Foi descoberto. A polícia deixou-nos, engodou-nos pá, deixou chegar até aqui». e ficámos sem pinga de sangue. Mas rapidamente se percebeu que o comportamento da polícia não é de quem descobriu a fuga. Se tivesse descoberto o tratamento era outro. Então disse: «Acabou o recreio, façam favor de...» - mas com urbanidade - «…façam favor de regressar à sala». Quem está a pedir para regressar não é... [Risos] [Se soubessem da] fuga metiam-nos logo na carrinha, tudo para a Maria Cardoso, não é?

Começámos a [dizer]: «Não, não, daqui a gente não sai! Nós só temos meia hora de recreio. Daqui não saímos, faltam dez minutos, um quarto de hora... E não, não saímos». E os carcereiros: «Mas têm que sair». «A gente não sai, daqui ninguém nos tira» - uma conversa de chacha ali. «Vocês têm que sair». «A gente não sai, não queremos, temos direito ao recreio, isto é um direito». Então chegámos a uma situação de compromisso: meteram-nos no tal sítio onde era o lavadouro. Porquê? O que é que se passou? Tinha havido umas centenas de presos alentejanos, a cadeia estava a abarrotar, e meteram-nos nas casamatas que era o sítio junto ao túnel - o túnel passava pelas casamatas. Então iam buscar presos para interrogatórios e não podiam levar os presos porque a gente via-os. [Disseram]: «Sim senhor, metam-se aí nesse cubículo, a gente dá-vos o tempo que falta». Lá levaram os presos, foram buscar-nos, faltavam 15 minutos, 14 minutos. Nada, zero pá.

O Tereso lá viu - aquele tempo era precioso - o Tereso lá viu sair a polícia e lá subiu, veio com o carro de marcha-atrás. Aquilo era uma manobra difícil. O carro era tão grande, é um blindado, 5000 kg, um monstro. Cinco metros de comprido, uma coisa monstra. O Tereso, com uma grande perícia, num túnel em curva, de marcha-atrás, meteu a roda na valeta - o túnel tem umas valetas. A gente a ver a hora passar e o Tereso não tirava o carro da valeta. O Tereso já num estado de nervos e não tirava o carro. Foi o GNR e o rachado que lá foi ajudar [Risos]. A gente já não jogava a bola, a gente só via se o Tereso tirava o carro ou não tirava o carro - então faltavam-nos aí dez metros. O carro estava ali mesmo! Lá conseguiram tirar o carro. O Tereso lá se pôs outra vez a guiar, chegou, meteu o carro, a gente ocupou o espaço, o Zé Magro disse «golo» e aconteceu uma coisa insólita: é que a gente só tinha visto o carro à distância e o carro parecia-nos maior do que era - já era grande, mas a nós parecia-nos um autocarro. [Risos] E, portanto, o carro não tinha uma porta que a gente tinha metido na cabeça que havia. Havia um camarada que disciplinadamente tinha que abrir uma porta que não havia, [Risos] mas isto é tudo em frações de segundo, não é? E o Tereso ficou intrigado, ainda nos disse: «Mas vocês querem fugir ou não?», não percebia porque é que não se entrava no carro. Um mais audacioso mandou o centralismo democrático às malvas e abriu a porta, e então nós estávamos a pensar ir sentados, foi tudo [bate com as mãos, uma em cima da outra, alternando, várias vezes], entrámos assim alternadamente. Fomos sete assim em cima uns dos outros, assim em pilha, mesmo. O carro pôs-se em andamento e foi nessa altura que o GNR me empurrou para o carro. [Risos] Quando o carro se pôs em andamento - com as portas abertas, nem havia tempo de fechar as portas - como eramos dez, aquele GNR que me empurrou para o carro, ficou atrapalhado e foi agarrar os outros dois que não tinham fugido, não fossem estes também fugir [Risos]. O da frente, uma displicência, aproximou-se do carro e fez assim [levanta a mão, em sinal de stop], como quem diz: «Acabem lá com a maluqueira». O Tereso apontou-lhe o guarda-lamas, o homem estatelou-se no chão, na valeta, deixou cair a espingarda. Lá se levantou feito parvo [finge disparar uma arma], mas o túnel era assim [faz uma curva com a mão] nem sequer podia atingir o carro. E o carro andava mais depressa do que ele.

Passámos o primeiro portão e aí era a situação dramática, entretanto já havia fogo por todo o lado. Os GNRs que tinham visto a fuga já estavam a disparar, os debaixo só sabiam que havia fogo mas não sabiam porquê - tudo a correr cá para baixo. Mas o carro não podia ir direito ao portão - você já andou de avião ou já viu aeroportos, sabe que os aviões fazem-se à pista para ganhar balanço - ora o carro teve de fazer exatamente [o mesmo]. O carro em vez de ir para a rua meteu-se para o interior da cadeia, para fazer [pista]. Aquilo são segundos horrorosos, porque a gente em vez de se aproximar do portão, está-se a afastar do portão. [Risos] Cada vez mais GNRs [finge disparar armas várias vezes] e o carro em vez de ir para a rua vai para o interior da cadeia.

Lá fez [faz uma curva com a mão] e embicou, direito ao portão. E o GNR que estava à porta ainda se levantou para abrir o portão. [Risos] Conhecia o carro. Depois viu que o carro vinha a uma velocidade e teve o bom senso de atirar para o ar. Então, o portão, quando a gente viu o portão ir pelo ar - mas repare que metade do portão ficou intacto. O carro ficou desenhado no portão. Vocês se virem o portão está lá o recortado do carro. Metade dele não foi abaixo, a outra parte é que... lá nos pusemos em andamento.

Depois era a parte mais perigosa, que era passar um morro. Porque a cadeia é ladeada, a frente da cadeia é separada por uma parada - eles chamam-lhe um fosso, nós chamamos parada - depois tem um morro, e o morro que vem assim até à estrada [faz um movimento a descer com o braço]. A única coisa que não era blindada eram as rodas. Mas as rodas, para nossa sorte, tinham feito o morro assim [faz gesto a descer a pique] e depois cortado assim. Se vocês virem as fotografias, metade do carro [a metade inferior] está fora do alcance. Além de que, o GNR que esteve mais perto do carro foram 15 metros. Mas as balas não são assim [faz um ângulo reto com as mãos] é sempre assim [mostra com as mãos o ângulo das balas em relação ao carro, em diagonal] Ora um carro em alta velocidade, com balas aquilo [Risos, enquanto faz o movimento de uma bala a resvalar no carro]. Assim [faz um ângulo reto com as mãos] era difícil, não sei se não entravam, que aquilo são armas de guerra (...).

E pronto lá chegaram. A fuga demorou 60 segundos. Sessenta segundos parece uma eternidade. Um segundo é mesmo uma eternidade, parece que nunca mais se deixa de ver a cadeia. É uma coisa... e viu-se que o carro era mesmo blindado. Eles correram para a garagem para ir buscar os carros para nos perseguir, estavam sabotados [Risos, enquanto simula as tentativas de ignição dos carros]. Não trabalhavam! Então vieram para a estrada, nacionalizaram os carros que passavam com as espingardas, roubaram os carros às pessoas, puseram as pessoas na rua, mas também não sabiam para onde a gente tinha ido. Imaginaram que o mais lógico é que fossemos pela autoestrada [Risos] e a gente veio por dentro do Alvito direito a Alcântara, só encontraram o carro ao fim do dia. Cada um para seu lado, fomos dois a dois, para casas de camaradas que conhecíamos, ficou tudo arregalado! Quando começaram a bater à porta nem queriam [acreditar]. Gajos que estavam presos apareciam às 9h da manhã a bater à porta [Risos]. Enfim, lá conquistámos a liberdade".

[A fuga da prisão de Caxias foi em dezembro de 1961. Domingos Abrantes esteve fugido 4 anos, é novamente preso em 1965. Ver vídeo Domingos Abrantes 1].