Nome: António Diamantino Raimundo Nabais
Ano nascimento: 1937
Local do registo: Algés
Data do registo vídeo: 21-10-2021

Transcrição

"Eu nasci em Alpedrinha. Aos 16 anos vim embora para a Póvoa de Santa Iria, sozinho. Não estava zangado com os pais, eles entendiam que eu devia fazer-me um homem, embora tivesse o apoio do diretor da fábrica para onde fui trabalhar.

Trabalhando de dia, estudando à noite na Escola Industrial Afonso Domingues. E, de facto, comecei a sentir como era difícil viver. Porque naquela altura - agora não - mas naquela altura os comboios eram raros, saía da escola às 23 horas e tinha um comboio que chegava à Póvoa às 2h da manhã - e às 7 horas tinha de me levantar para às 8h ir para o trabalho. Isto, muitos dias seguidos, acontecia.

O ambiente na empresa onde trabalhava, era um ambiente do tempo do fascismo, mas de gente que sabia o que queria - e onde o partido [PCP], em princípio, já tinha certa implementação na clandestinidade. Na Afonso Domingues também encontrei pessoas já com uma visão de esquerda. E foi assim. Fui, aqui na Póvoa de Santa Iria, habituado a um ambiente reivindicativo - na fábrica principalmente, na escola não tanto - e com todas as dificuldades que apareciam para nós nos podermos deslocar para a escola. Aconteceu naturalmente. Depois com o contacto - evidentemente que eu não inventei nada - o contacto com pessoas que me foram mentalizando.

Na escola Afonso Domingues era com amigos que me convidaram para aderir ao MUD Juvenil [Movimento de Unidade Democrática Juvenil]. No MUD Juvenil estive dois anos, até ser convidado para integrar o PCP. Portanto é aí, com responsabilidade já na empresa - porque eu fazia o contacto de organização da empresa com um funcionário do Partido. Com o qual reunia num Olival que agora é uma urbanização de 20.000 pessoas, mas que era um extenso Olival onde nos encontrávamos e onde havia transmissão de mensagens, a quotização dos que eram militantes e a entrega do Avante, que eu no outro dia distribuía, cautelosamente, pelos camaradas da empresa.

No Partido, aí sim, já foi uma coisa a sério. Já com a consciência de que corria perigo de ser preso, porque eu via o exemplo de algumas pessoas que tinham sido. Umas que eu conhecia e outras por conhecimento, por ser transmitido que tinham sido presas pela PIDE. E a PIDE, claro, não brincava em serviço.

Vou para a tropa em [19]58, em Caldas da Rainha. Depois fui tirar o curso de Sargentos Milicianos para Tavira. E em Tavira, em determinada altura, pediram voluntários para a Força Aérea. Aí bati palmas, ponham-me já. Sabia que na Força Aérea era diferente do Exército - e eu quis-me libertar. Fui convocado para a Força Aérea, para o aeródromo de Base [aérea] nº 1, no aeroporto de Lisboa. Numa situação muito agradável, que foi serviço de secretaria. Como andava a estudar... Passei assim um tempinho agradável, até chegar uma altura em que o Comandante me chama e me diz: «Tenho aqui a indicação que vais recolher ao estabelecimento prisional da Trafaria». «Então, mas porquê?». «Eu não posso dizer mais nada. Não sei». Claro que sabia que havia ali o dedo da PIDE.

Ali estive um mês. O facto de ter andado a estudar deu a possibilidade de fazer serviço na secretaria, portanto, foi um mês «bem passado» - preso, mas estava liberto, porque não estava sempre na cela.

Até que, passado um mês, regresso à unidade - passam-me à disponibilidade, como se costumava dizer. O Comandante - nós na Força Aérea podíamos usar a nossa roupa civil e quando saíssemos podíamos mudar a farda para roupa civil - mandou-me entregar a farda e [diz-me]: «Estás disponibilizado, podes ir embora». Claro que, quando vinha a sair do portão, dois agentes - que eu vi que eram da PIDE - [colocam-se] um de um lado, outro do outro [e perguntaram]: «António Nabais?». Meteram-me dentro do carro a caminho da PIDE. Pronto, o meu contacto inicial com a PIDE foi assim.

Levam-me logo para a sede da PIDE. Identificação (...) - para começar logo cinco dias e cinco noites sem dormir, sujeito a pressões, a chapadas. A exigência de eu dizer aquilo que eles queriam que eu dissesse. Havia até um fulano da PIDE com uma certa piada - piada, enfim, entre aspas – dizia: «Epá, não dizes nada? Eu estou aqui 4 horas só. Agora tu continuas eternamente por aqui fora, até resolver». [Risos] Eles até gozavam assim, desta maneira - e era verdade.

Foi muito difícil. A tortura do sono. Aquilo é duro. Do sono e estátua - mas a estátua era variável. Eu estava sentado, chegava um tipo da PIDE: «Sentado? Vamos lá pôr de pé, vamos lá conversar de pé». «Mas eu não tenho nada para dizer». «Está bem, mas de qualquer maneira, de pé». Era capaz de estar assim umas 4, 5, 6 horas, até que chegava outro fulano da PIDE [disse]: «Vamos lá sentar e conversar». Era assim que as coisas se faziam.

Eu lembro-me até do episódio de um fulano, um individuo da PIDE, que parecia um bocado conversador. [Eu]: «Não tenho nada para dizer». [Ele]: «Não tem nada para dizer?» - esse é que dizia assim - «Eu estou aqui 4 horas, você continua por aí fora. Agora, se me dá licença, vou ler aqui», e pôs-se a ler um livrinho. Parecia ser um PIDE «sociável» - esse homem participou no assassinato do Humberto Delgado. É conhecido, o Tienza - já falecido. Um homem que, pelo menos para mim, parecia ser um PIDE menos agressivo e teve esta ação no assassinato do Humberto Delgado. Portanto era gente assim, muito esquisita.

Em determinada altura tive um ataque de tosse, que depois acentuei. Eles aí reconsideraram e mandaram-me para a cela. Foi o primeiro contacto que tive com a cela. A cela - os chamados curros. Essa cela do Aljube, 3 metros de comprimento, por 2 de largura. Agora quando penso nisso, penso que se fosse agora eu não aguentava. Eu não tenho problemas de claustrofobia, mas quando me lembro... Como é que é possível? Eu e muitos outros camaradas, estarmos naquelas condições, durante um mês. Sem comunicação com ninguém a não ser com o guarda que nos abria a porta. Sem um lápis, sem um papel, sem um contacto com a família - sem nada absolutamente. Foi horroroso. Foi um mês terrível.

Ali assim, num corredor. Essa cela dava para a Sé de Lisboa, portanto eu via a fachada da Sé, mas mais nada, porque tinha um corredor até à janela. Foi um mês terrível. Durante esse mês eram interrogatórios constantes. Com esta particularidade - reparem nisto - às 3h da manhã: «Prepare-se para ir à PIDE». E eu assim: «Mas agora?». «Sim, agora, agora». Faziam isto muita vez. Foi, de facto, um mês terrível.

Depois, passado um mês, passei para um regime mais ou menos normal, já com a companhia de outros camaradas. Um regime onde já tínhamos visitas da família- controladas, claro - já podíamos comunicar, já podíamos escrever - controlado pelo serviço da PIDE. Tínhamos direito a ter um jornal, que era lido por 12 ou 14. Então numa maneira curiosa. Aquela era a nossa vivência ali e tínhamos que superar toda aquela situação. O jornal vinha, passava para as mãos de um camarada que selecionava as notícias que considerava importantes sobre um ponto de vista político, depois o jornal passava de mão em mão. Depois disso íamos então comentar as notícias que tinham sido selecionadas - que era uma coisa formidável. Fazíamos o mesmo até com livros, livros importantes, que conseguíamos lá meter. O livro era lido por todos aqueles que queriam e depois discutíamos o livro. Esta era a nossa maneira de passar o tempo de uma forma interessante. Para além disso era ler, ler muito e fazer esta coisa formidável. E jogar xadrez. [Mostra uma imagem] Este é um diploma de um torneiro de xadrez. [Risos] Tínhamos de arranjar maneira de passar o nosso tempo da forma mais agradável.

No Aljube estive um ano. Ao fim do ano fui a julgamento. No julgamento fui condenado e passei para Caxias - os torneios de xadrez já eram em Caxias. Fui condenado em dois anos de pena maior, que implicava as medidas de segurança que prolongavam por três anos. Havia esta particularidade quando tínhamos pena maior, perdíamos metade do tempo - não sei porquê, não há explicação para isso.

Tive um advogado famoso, o Arlindo Vicente. Havia uma série de advogados que se disponibilizavam. Tínhamos o advogado oficioso, mas depois se nós arranjássemos um advogado melhor para nós, havia uma série de advogados que se disponibilizavam gratuitamente a defender-nos. O Arlindo Vicente foi um deles. Fez uma defesa boa. Tive duas testemunhas a dizerem que era bom rapaz, enfim, o costume. Eu neguei a acusação, mas isso não impediu que o Juiz, secamente, porque tinha as ordens da PIDE, condenar-me a dois anos de prisão, com medidas de segurança que concretamente passou para cinco anos e meio. Passados em Caxias.

A passagem do Aljube para Caxias foi assim desta forma. Tínhamos assim outra possibilidade de contactar com outras pessoas, com a família até. Com um sistema, os chamados parlatórios: rede de um lado, rede do outro, afastados um metro - assim comunicávamos com a família. Mas não era só um, eramos uma série deles a falar. Imagine a falarmos, era uma barulheira. Ainda com mais uma particularidade, parecia que estávamos a fazer algum mal a alguém, com um guarda a circular no intervalo entre as duas vedações.

Na prisão era diferente. Havia uma solidariedade bastante grande. Quando recebíamos um lanche da família era distribuído por todos. Um exemplo: nós podíamos estar 12 numa sala e havia alguém da família que levava seis laranjas - era metade a cada um. Isto é um exemplo que não seria exatamente assim, mas era assim que funcionava. Tínhamos sempre um responsável pela cantina. Os lanches que vinham da família, depois ele é que distribuía equitativamente por todos, depois da refeição. Eram umas coisas assim, uns mimos, umas bolachinhas ou uns bolos. Eu quando saí não encontrei isso cá fora, aquela amizade, aquela solidariedade.

Como eu dizia, portanto, presos injustamente por uma causa justa. Nós tínhamos um processo de passar o tempo, estudando. Eu dava lições a camaradas com menos preparação. Eu recebia lições, nomeadamente lembro-me de um camarada que vivia em França e ensinou-me francês. Estudávamos, não era de qualquer maneira - depois da leitura do jornal vinha o estudo. Uma mesa grande. De tal modo que, quando eram as 7 horas, dizia o responsável lá para chamar da cantina: «Camaradas! Levantar a mesa! São 7 horas». [Risos] E havia sempre alguém que dizia: «Já 7 horas?!». Vejam o que isto quer dizer, para alguém dizer «Já 7 horas», parece que não queriam que passasse o tempo, imbuídos como estávamos. Depois da refeição do jantar eram estas brincadeiras, o xadrez, as leituras, as conversas, etc.

Lembro-me de certas situações. Em Caxias tínhamos o hábito de comemorar, por exemplo, a Implantação da República. Então às 9 horas da manhã, no render da guarda, todas as salas - não era preciso combinarmos, que aquilo já se sabia que era assim - cantávamos A Portuguesa. Sabendo que íamos ser castigados - 15 dias ou um mês sem visitas, ou sem nos podermos corresponder, escrever. Lá íamos para o castigo. Há o episódio de um camarada, que era mais velho, que quando foi aplicado o castigo - o guarda veio indicar-nos, abriu a porta e disse: «O castigo tal» - [Risos] e ele dizia: «Mas eu não cantei! Quero falar com o chefe dos guardas». Foi falar com os chefes dos guardas: «Fulano, eu não cantei». [Responderam]: «Se não cantou, cantasse!». Isto parece ficção. Na próxima oportunidade era o que cantava com mais força [Risos] Eu dizia ao Mário Augusto, já velhote: «Epá, não é preciso tanto» [Risos]. [Ele]: «Está bem, mas eu da outra vez não cantei, fui castigado. Agora vão pagar».

Não deixávamos de fazer exigências de mais tempo de recreio. O recreio que deu a possibilidade daquela fuga famosa de Caxias. Nós quase que presenciámos isso, porque foi naquela altura. Nós ouvimos e apercebemo-nos, com os tiros que se sentiam, que havia qualquer coisa. Depois ouvimos a conversa de um guarda com o outro: «Epá, fugiram seis gajos!» - seis ou sete - «Até o mais velho!» - o mais velho era o Chico Miguel. [Risos] Ficámos aí a saber. Foi, de facto, um momento de euforia e de entusiasmo formidável.

Uma história, o famoso Tereso, um camarada que esteve preso. Em determinada altura o Tereso passou-se para o inimigo. Dizendo que não queria estar com os comunistas, que queria estar numa situação favorável, afastado. Aquilo foi uma sensação, para nós, desagradável. Ele era motorista da Carris e começou a mexer nos carros dos funcionários, nomeadamente no carro blindado do Salazar. Punha-o a trabalhar de vez em quando, para não ficar sempre paralisado. Quando ele passava no carro até se ria para nós - a gente chamava-lhe todos os nomes. Até que, em determinada altura, quando sai essa fuga, foi conduzido pelo Tereso. [Risos] Portanto aquilo tinha sido combinado, previsto, muito tempo antes. Ele conseguiu convencer os tipos da cadeia e da PIDE - porque os guardas e os PIDEs eram maus, mas também eram burros. Então convenceu-os que estava feito com o inimigo. Conseguiu aquela proeza, mesmo uma proeza.

Eles libertaram-me. Estava em Caxias e entregaram-me à rua. Venho por ali abaixo, apanhar o comboio. Fui para Lisboa - que eu morava em Póvoa de Santa Iria, mas tinha família em Lisboa. A minha namorada esperava-me em casa de uma tia. Imaginem, esta mulher, que agora somos casados, tínhamos 21 anos. [comove-se] Acompanhou-me cinco anos e meio a visitar-me todas as semanas. Exceto nos primeiros tempos, que não havia autorização. Claro, era ela que me estava à espera, que os meus pais viviam em Alpedrinha. Foi aquele encontro... imagina-se. Politicamente não estava envolvida como eu estava, mas tinha uma consciência política que a levava a esperar por mim cinco anos e meio.

Eu, para além da atividade política - claro, com todos os cuidados que mantive - recorri muito às coletividades. Uma coletividade, que é o Grupo de Trabalho Povoense, da Póvoa de Santa Iria, dedicado a convívios, à cultura. (...) Nessa altura constituíram-me uma comissão cultural. Dizíamos comissão cultural, mas agora podemos dizer comissão politico-cultural. Todas as atividades que desenvolvíamos legalmente eram com esse fito. Nós, quando convidávamos para fazer palestras naquela coletividade o Alves Redol, o Igrejas Caeiro, o Bernardo Santareno… Portanto, era gente assim de esquerda. Representávamos e fazíamos sessões de poesia, por exemplo: o José Carlos Vasconcelos com o Carlos Paredes. Uma sessão formidável. De tal maneira que passado um mês tive de os convidar e convencer para voltarem outra vez. Recorria muito a isso e ao teatro. E com esta idade a mania do teatro continua. Ontem tive ensaio.

Depois tive dificuldade a arranjar emprego, porque a empresa onde eu trabalhava, a Companhia Industrial Portuguesa, que agora já não funciona, foi comprada pela CUF. E quando eu procurei, naturalmente foi-me dito que não. A administração da CUF não consentia. E depois recorri à PIDE, [e eles]: «Nós não temos nada com isso. Você está liberto, agora já não é connosco». Resumindo e concluindo, não consegui ir para aquela fábrica. Então, passado relativamente pouco tempo, arranjei emprego na MEC, empresa onde trabalhava o Jerónimo de Sousa. Aí é que estive empregado até ser reformado. Foi aí que passei o 25 de abril, estava nessa empresa.

Nós soubemos que havia qualquer coisa, qualquer movimento. Havia assim uns rádios pequeninos e eu levei o rádio para a secção, para ir acompanhando. As trabalhadoras - era uma seção só de senhoras, umas 15 ou 18, - com aquela situação que iam relatando, choravam. «O que é vai acontecer?». [Risos] A determinada altura eu ouço uma canção do Zeca Afonso e digo: «Pessoal, isto é nosso! Vamos lá parar com o choro e vamos rir, que isto é nosso!» - a confirmação. Claro, foi um alvoroço naquela fábrica, com 150 pessoas - metade pessoal feminino, metade masculino. Um desassossego que já ninguém tinha sentido. Nessa altura tínhamos constituído, ainda no tempo do fascismo, com o Jerónimo de Sousa e o Cartaxo, uma comissão de unidade - que agora são comissões de trabalhadores - naquela altura comissão de unidade, que era aceite pelo patrão. Porque ele pensava e muito bem, que era preferível reunir com a comissão de trabalhadores, do que estar sujeito a ser interpelado por um trabalhador ou outro em relação a isto ou aquilo. Então resolvemos: «Isto não há maneira de trabalhar». E fomos falar com o patrão: «Olhe que aconteceu isto assim e assim. O pessoal não está...». [Ele]: «Então vamos fechar a fábrica e até amanhã». Foi assim [Risos]. Depois saímos e cada um foi à sua vida. Eu já não vim para Lisboa, passei foi para Vila Franca, na zona onde eu vivi. Depois imagina-se o que é. Foi logo um comício que organizámos e depois foi a liberdade.

Inicialmente foi um golpe militar heroico, no tempo do fascismo não era para brincar. Mas claro, só o golpe militar não chegava. Foi este povo que aderiu de uma maneira extraordinária, de norte a sul do país, a apoiar. E que transformou, repito, o golpe militar numa revolução a sério, porque transformou toda a estrutura do país".