Nome: António Carlos da Costa Cerqueira
Ano nascimento: 1934
Local do registo: Algés
Data do registo vídeo: 22-10-2021

Transcrição

"Eu sou de Monção. Natural de Monção, uma vila raiana, do Alto Minho. No tempo em que eu nasci e até aos cinco anos vivi numa vila onde se vivia com muitas dificuldades. As pessoas andavam descalças, as pessoas tinham fome. Muitas pessoas tinham fome, não eram todas naturalmente, mas era uma miséria completa nos anos 40. Antes da guerra, um pouco, e a seguir à guerra, à II Guerra Mundial.  

Eu teria cinco anos, isto em 1943, [quando houve] o surto grevista em Portugal -antifascista, da época. Talvez por isso uma vez vi um grupo de homens e mulheres com varapaus, alfaias agrícolas, enxadas, picaretas, toda a sorte de utensílios agrícolas, em manifestação na rua gritando: «Queremos pão! Queremos pão! Temos fome! Temos fome!». Eu teria aí cinco anos e isso marcou-me para toda a vida. Até hoje! 

Outra questão que me marcou foram as ideias socialistas do meu pai. Eu e os meus irmãos crescemos ao som do hino da internacional, do hino da União Soviética, d’ A Marselhesa, que o meu pai ao fazer a barba assobiava lá na quintarola que a gente possuía. De tal modo que eu tinha 10 anos, 9,10,11, e já também assobiava esses hinos marcantes da civilização, que todos conhecemos.  

O meu pai, à noite, punha um copo de água em cima do rádio, porque dizia-se que a PIDE tinha um aparelho na mala do carro que apanhava quem estava a ouvir a Rádio Moscovo. E o meu pai ouvia a Rádio Moscovo, a BCC de Londres - na altura era o célebre locutor Fernando Peça, que falava de Londres - e era proibidíssimo, como sabem.  

A consciência social - não política, social - foi evoluindo, como eu disse, ouvindo o meu pai, apercebendo-me da miséria que havia à vista. As pessoas, como eu dizia há bocado, descalças, malvestidas, mal alimentadas. Algumas iam lá a casa, nós eramos pessoas que tínhamos uma vida razoável - o meu pai tinha um armazém de vinhos, exportava vinhos para o Brasil, para África e para Lisboa. Não sei se se lembram daquela vinha célebre, o Alvarinho. Foi o meu pai que lançou no mercado esse vinho que pouca gente conhecia. Foi o meu pai que lançou esse vinho no mercado e no mundo, que o exportou para o Brasil, para África e para vários países. Socialmente fazíamos parte da média burguesia, digamos assim, da zona. 

O gosto pela história, que eu tive sempre desde criança, o gosto pela história. Mais tarde licenciei-me na Faculdade de Letras de Lisboa em História. 

Lembro-me de, ainda criança, me chamarem para fazer discursos. Quando fazia anos um filho da burguesia lá da terra - «Convidem o Toninho Cerqueira» - que era eu, o Toninho - «convidem o Toninho Cerqueira», que eu cantava e discursava. E falava contra o governo sem grande consciência social e muito menos política, mas era aquilo que eu sentia e via: a injustiça social, o fosso que havia entre a vida de algumas pessoas que ostentavam riqueza e a miséria franciscana da maioria esmagadora das pessoas.  

É isso que me leva a cada vez mais falar, denunciar o regime fascista opressor que vivíamos nessa altura e vivemos muitos anos depois.  

Não tinha medo. Eu até tinha certo gosto em confrontar os adeptos da ditadura. Confrontava-os e ouvia: «Não faças isso António, olha que não sei quem, foi preso». «Pois se foi preso, que me prendam a mim. Mas eu não me calo». Foi assim, é mais ou menos neste registo que eu me recordo. 

Saí então de Monção para Lisboa tinha 17 anos, vim para casa de uma irmã que eu tinha aqui em Lisboa. Houve um aspeto também muito importante da minha vida política. Comecei em Lisboa a frequentar os centros republicanos. Aí ouvi de viva-voz o professor Mário de Azevedo Gomes, o Aquilino Ribeiro… Conheci e ouvi discursar. Eram homens da primeira república. O professor Mário de Azevedo Gomes, António Sérgio… Frequentei assiduamente e empenhadamente, no tempo que conseguia retirar à minha atividade profissional - nunca tive assim atividade profissional. Porque nunca cheguei a aquecer o lugar. Ou era despedido ou era perseguido. 

Aos 18 anos aparece, em [19]58, as eleições do General [Humberto] Delgado, em que eu participei. O que é que eu fiz? [Risos] Fui à sede de candidatura, em Lisboa, do General Delgado e disse: «Estou aqui para ajudar». Ainda fiz comunicados - a escrever metia os dedos pelos buracos da máquina, porque eu escrevia muito mal, mas a minha vontade era ajudar. Demorava muito mais tempo, mas fazia. E ajudei no que pude a distribuir propaganda. Estive em Santa Apolónia à espera do senhor General quando veio do Porto. Estive ao pé dele quando a PIDE e a PSP o barraram e não o deixaram prosseguir para as dezenas, pelo menos, milhares de pessoas que ali o esperavam no Rossio. Ia sempre perto dele quando foi barrado. Ele disse [ao polícia]: «Ponha-se em sentido». Eu ouvi, eu estava ao pé dele. «Eu vou por aqui. Eu não recebo ordens do governo. E quanto a si lembre-se das minhas estrelas de General», qualquer coisa assim do género. Mas eles insistiram e o General, as pessoas chegadas a ele, convenceram-no que era melhor desviar-se e fomos pelo Alto de São João.  

Sempre me preocupei. Sempre tive a perceção de que os democratas tinham e têm, ainda hoje, de se unir. É uma necessidade que eu notei desde criança quase, adolescente pelo menos. 

Em Loures, eu vivia no concelho de Loures, que é um concelho progressista. Tínhamos uma organização democrática, mas cheirava-se o Partido Comunista Português em todo o lado. Eu nunca pertenci ao Partido Comunista Português, não tenho filiação partidária, pelo motivo de que disse há pouco. Sentia-me em melhor posição em fazer a unidade não sendo filiado em nenhum partido, sentia-me em melhor posição para levar a mensagem da unidade antifascista por uma sociedade moderna, anticolonialista. Isso pareceu-me sempre muito difícil e se nos uníssemos as coisas podiam chegar lá mais depressa. 

Depois dá-se um facto: há uma ocupação de um bairro em Odivelas. Há as cheias de 1967, em Odivelas, concelho de Loures. As cheias que ocorreram nessa época, dia 25 de novembro de 1967. Democratas, que não nos conhecíamos, juntámo-nos e criámos um núcleo de apoio aos sinistrados das cheias. Esse apoio era humanamente compreensível, mas tinha um fundo político, que era criar dificuldades ao governo e lutar contra o governo fascista. Eu consegui - eu e outros conseguiram outras coisas - arranjar médicos, enfermeiros, iam lá ver as crianças. Depois começámos a alargar o apoio com cobertores. Para evitar que a repressão caísse sobre eles, fizemos uma propaganda imensa à volta disso. Porque é um ato revolucionário ocupar um bairro em pleno fascismo - é preciso notar isso. E fizemos uma ação [risos] ainda hoje parece incrível como é que a gente conseguiu fazer isso e blindar o bairro, com pessoas de todo o lado. Até pessoas da própria situação como se chamava na altura. 

Eram seis da manhã tocaram à porta, na Rua Gil Eanes em Odivelas, onde eu morava com a minha mulher e duas filhas pequenas - tinham aí dois anos uma e outra quatro. Bateram à porta. Eu tinha estado numa reunião em Moscavide e tinha alguns papéis, uns apontamentos de eleições que fazíamos lá no conselho, que tinham uns apontamentos da reunião. Quando tocaram à porta e ainda era escuro, eu levantei-me de um salto da cama e disse: «Ó Lena, é a PIDE». Tive esse pressentimento. Fui logo buscar os papéis da reunião que tinha tido nessa mesma noite em Moscavide, e cortei, meti-os na sanita, puxei o autoclismo duas vezes. Não fui abrir logo a porta. Quando eu abro a porta ele meteu logo o pé entre a porta e a ombreira e disse: «Porque é que não abriu a porta?!» e eu disse: «Quem manda aqui na minha casa sou eu. O que é que os senhores querem?». Empurraram-me, abriram a porta e entraram dois. [Gritavam]: «Onde estão as armas?» - aos berros - «Onde estão as armas?». E eu disse: «Tenho aí uma arma, mas é da caça, que sou caçador, tenho os documentos. Eu não tenho armas, sou uma pessoa pacífica». Acordaram as filhas, levantaram os colchões, cada miúda tinha uma caminha. Da minha cama. Depois foram a uma dependência da casa onde eu tinha uma estante e começaram a arrancar. Primeiro a Guernica. Tiraram a Guernica que eu tinha na parede. O Che Guevara, verde oliva, que me trouxeram de França, que eu gostava imenso. Levaram-me um poster dos direitos da criança. Tiraram-me um poster da declaração universal dos direitos do homem. E livros, alguns livros. Deixaram Os Subterrâneos da Liberdade e outros livros do Jorge Amado e levaram os do Sttau Monteiro, livros. Que eu conhecia o Sttau Monteiro muito bem. Os livros revolucionários mesmo, não levaram, o que demonstra que culturalmente eles deixavam muito a desejar.  

Estiveram até às 11 horas da manhã - 4 horas em casa, ou cinco. Houve a certa altura o chefe deles, que ainda me lembro do apelido, Martins, pegou numa máquina de escrever portátil e pôs em cima da minha mesa da sala de jantar, para escrever um auto e ia-se sentar. E eu disse: «O senhor não se senta aqui na minha casa. Faz favor, se quiser escrever, escreve, mas não se senta aqui na minha casa. Quem manda na minha casa sou eu». Ele olhou para mim e escreveu de pé. (…) [Pensei]: «Olha, esta é a minha primeira vitória com estes filhos da mãe». Depois obrigaram-me a ir com eles para a António Maria [Cardoso], para a sede da PIDE. 

Cheguei à sede da PIDE, levaram-me para o 3º andar e meteram-me numa cela com um postigo. Tinha um postigo e uma cadeira. A primeira coisa que mandaram fazer foi mandar tirar a cadeira. «Como eu não o deixei sentar na minha casa, agora também não te sentas aqui» pensei eu. Disse: «Estive a pensar e eu vou fazer greve da fome. Não vou comer em 8 dias, ainda me devo aguentar» disse cá para mim. E comecei-me a mentalizar para fazer greve da fome, isto eram aí umas 11h da manhã, ou meio-dia. 

Ao meio-dia vem um PIDE com uma travessazinha com pescada cozida, batatas e ketchup por cima, era assim uma espécie de molho vermelho. Eu disse: «Eu não como. Pode levar para trás. Enquanto estiver aqui não como, escusa de vir com comida». «Ai não quer? Mais fica!» diz o PIDE. Lá estive. Depois pedi uma água das pedras - eu é que pedi uma água das pedras, que estava um bocado maldisposto - e eles trouxeram-me a água das pedras e disse: «Quanto é que custa?». «É oferta desta polícia» [responderam]. «Eu não quero ofertas desta polícia», peguei no dinheiro, mandei assim por baixo do postigo e ouvi tilintar no chão. São pequenas coisas que a gente faz, grandes lutas a partir de pequenas ações. 

Vieram-me buscar para o meu interrogatório. Eles pensavam que eu era um peixe mais graúdo. Na sede da PIDE o interrogatório foi feito pelo inspetor Adelino da Silva Tinoco. Nunca mais me esqueci deste nome, nunca! Adelino da Silva Tinoco. Era um individuo magro, estatura abaixo da média, era pequenote, avermelhado, com olhos amarelos. Eu até pensei: «Parece uma cobra, este gajo!». Lá me interrogou, sempre com a perspetiva do Partido, era uma obsessão. Fizeram-me interrogatórios em Caxias e em Odivelas - que eu já lá chego, no posto da GNR - sempre com uma obsessão do Partido. [Diziam]: «Você é do Partido e não é de agora. Está-nos a enganar. Escusa de nos enganar, que nós vamos saber», e ameaças. Nunca me bateram. Fisicamente não fui torturado. Fui torturado é psicologicamente e [com] isolamento. Estar 15 dias numa cela pequenina, virado para uma barreira, 15 dias e 15 noites, mexeu comigo.  

De madrugada soltaram-me. Decidiram-me soltar e eu vim embora para casa. Foi a primeira vez que fui incomodado. 

A seguir a esta, eu fui notificado para me apresentar no quartel da GNR em Odivelas. E eu não fui, não me apresentei, porque achei logo que podiam ter ligações à PIDE então não fui. Estava na minha rua a falar com um jovem, que se reunia connosco num café que havia em Odivelas chamado Café Pato, na cave. O rapaz que se reunia connosco estava sentado num banco de pedra, na rua, quando veio um jipe da GNR. Parou, saíram GNR lá de dentro, agarraram-me e atiraram comigo para dentro do jipe. Levaram-me para o posto e meteram-me numa cela pequeníssima que tinha uma tábua que me permitia deitar se quisesse, e uma pia para as necessidades, uma coisa incrível. Puseram-me lá dentro e eu: «Mas estou aqui porquê?». «São ordens!». Passei lá a noite. No outro dia de manhã levaram-me para uma sala, quem é que estava à minha espera? O chefe de brigada Capela. Estava o Capela, um individuo alto, magro, numa sala. Olhou para mim, cruzou os braços e disse assim, com um ar de tristeza: «Ó homem, mas porque é que você se mete nisto? Você até é de boas famílias!» [Risos] disse o Capela. «Você até é filho de boas famílias, porque é que você se mete nisto?». Eu claro, não lhe respondi. Lá esteve ali a interrogar-me, sempre, como eu disse há bocado, o papão, o Partido Comunista. Até que acabou, deixaram-me ir embora sem me levarem para outro lado. Foi a segunda vez que me prenderam e fui interrogado por um PIDE. 

A seguir foi em [19]73, houve o congresso democrático de Aveiro. Eu apresentei lá uma tese coletiva de democratas do concelho de Loures. Emocionadíssimo, apresentei ao congresso essa tese. Ao sairmos, como se sabe, fomos encurralados numa rua sem saída. Eu, ao tentar ajudar uma advogada que conhecia da CDE - Lucília dos Santos, advogada de Torres Vedras - eles estavam a bater na gente com pingalins. (…) era o Maltês, um filho da mãe da pior espécie. Eles com bastões, os guardas. Eu estava a ajudar a Lucília quando o Maltês, que me conhecia de ginjeira, veio molhar a sopa com o pingalim. Fiquei de um lado negro, sangue pisado desde o ombro até à perna do meu lado esquerdo. Andei assim semanas. Depois fui levado por dois polícias para ser identificado e solto.

Em [19]73 concorremos às eleições. Eu levava numa carrinha cartazes e outras coisas mais. Fomos intercetados em Loures e daí fomos sob escolta para o Governo Civil e do Governo Civil fomos para Caxias.  

A primeira vez que estive em Caxias foi nessa altura. Mandaram-me tirar os atacadores e o cinto e dar ao individuo, enorme, que lá estava. Depois disseram: «Tu vais para a cela tal». «Falta outro». E disse eu «Pode ser aquele?» - apontei o Tengarrinha, porque eramos amigos. Eramos muitos e eu fui com o Tengarrinha para uma cela, onde passámos uma semana a ser interrogados. Então íamos numa Ramona - nunca tinha experimentado isso - iam-nos buscar à cela e íamos para o Reduto Sul. Uma vez era uma sala branca, toda branca, com uma mesinha muito pequenina e uma cadeira. Às vezes eram doces: «Você é uma pessoa nova, não se meta nisso», outras vezes «Você é um filho da mãe!». Jogavam assim de maus e de bons. 

Eu vou contar uma coisa. Na minha terra, no dia de Páscoa, há um grande almoço e há um borrego no forno, lá no Alto Minho. Come-se o borrego no forno e faz-se uma grande festa. Eu passei lá a Páscoa, nessa altura, com o Tengarrinha. Quando, no dia de Páscoa, veio uma cabeça de chicharro frita com um arroz vermelho, uma porcaria completa, e eu chorei. Vieram-me as lágrimas aos olhos, comovi-me ao lembrar-me da minha terra. Lembro-me que o Tengarrinha foi à casinha de banho, com dois copinhos de água, e pôs um alka-seltzer em cada copo e disse: «Vamos brindar pelo fim do fascismo, António! Isto qualquer dia vai cair, isto está podre! Viva a revolução!». E fizemos uma festa com o «champanhe» que foi a efervescência do alka-seltzer.  

O que me mais ficou dessa primeira vez foi as chaves da cela, o eco. Junto à porta, acordava com aquele [barulho] das chaves. Andei meses com aquilo na cabeça. Não me bateram. Insultaram-me. Fui várias vezes interrogado de noite, outras vezes de madrugada, outras vezes de dia - é quando lhes apetecia. Até que nos soltaram a todos. 

Estávamos reunidos em Benfica, naquilo que julgo que era uma garagem desativada, grande. estávamos lá todos dentro e (...) tínhamos um alibi. Se a polícia aparecesse dizíamos que estávamos a discutir os estatutos da cooperativa, futura livreira, A Forja. E assim foi. Estávamos a meio da nossa reunião quando deram murros nas portas. Olhámos uns para os outros e sabíamos que só podia ser a PIDE. Éramos muitos, éramos 70 e tal ou 80. Eu estava numa cadeira perto da mesa, dei um salto para cima da mesa, peguei nos papéis todos - já tinha aprendido isso em minha casa, na primeira vez que tive contacto com a PIDE - fui rasgar esses papéis e fui à casa de banho pôr na sanita esses papéis. Puxei o autoclismo, não tinha água. Havia ali uma vassoura e estive ali a inutilizar aquilo. 

Levaram-nos a todos em carrinhas Mercedes, as chamadas Ramonas. Eles já tinham cinco ou seis carrinhas Mercedes na rua. Consoante saíamos da garagem íamos para dentro das carrinhas. Fomos para o Governo Civil. Dizíamos nós assim: «Despejam-nos em Algés e depois nós, cada qual arranja um táxi e vai para casa». E disse eu: «Ai é? Vais daqui direito a Caxias que é um sonho, é um consolo!». E assim foi, fomos direitos a Caxias. Como éramos muitos, fomos metidos numas naves subterrâneas que, quando se levantava uma manta, era um pó de dezenas de anos acumulado ali. Até que o Ruben de Carvalho, que sofria um bocado de asma, por causa disso teve que sair, porque sentiu-se mal. O Ruben foi preso nessa altura também. 

Dali fomos para outros lados. Mandaram-me para uma cela muito pequenina, virada para uma barreira, muito pequenina. Sozinho estive lá 15 dias. Aí, nessa última prisão, levavam-me muitas vezes para interrogatório. De noite, de dia, talvez para me cansarem. Vinham os bons, vinham os maus, ameaçavam-me, chamavam-me nomes, e não sei quê, que eu era do Partido… Um enervava-se [e dizia]: «Você não sai daqui com vida, que eu dou cabo de ti!». À volta disso, não me bateram. 

Até que, eu escrevia para a minha família, e marcámos o dia para a minha visita. Chegaram a visita do meu irmão do Porto, uma irmã de Viana do Castelo, a minha mulher, as minhas filhas, pessoas, o meu cunhado, juntaram-se lá no outro lado do parlatório. E fui enervadíssimo, porque estava há 15 dias [à espera] - eu sou um bocado nervoso - e cinco minutos depois acabou a visita. Chamei-lhes bandidos, assassinos. Eu chamei-lhes tudo quanto pode haver de pior! E estava preparado para eles me baterem. A minha família pensava: «Eles agora vão bater ao António». Nem me recordo, [dizem] que eu ia a gritar e que se ouvia os gritos lá para dentro, mas eu não me lembro. Estava num estado... sentia uma excitação terrível. 

Dois dias depois sou chamado ao Tinoco - o Tinoco foi outra vez a Caxias para me interrogar. Houve um dia que me apresentaram um papel azul de 25 linhas ou 35 linhas onde eu fazia um depoimento que era do Partido, para eu assinar. [Disse]: «Eu assinar isto? Isto é mentira!». E o Tinoco, nunca mais me esqueci, disse-me assim entre outras coisas: «Senhor Cerqueira. Este dedinho nunca me enganou» - a expressão que ele foi buscar - «… este dedinho nunca me enganou. Você é do Partido e não é de agora. Este dedinho nunca me enganou. Você vai sair» (hoje ou amanhã, não me lembro, sei que foi no dia 17 de abril) «… vai sair, mas quero-lhe dizer uma coisa. Vou-me despedir de si até ao dia 1º de maio». Portanto a ameaçar-me que sabia que eu e outros comemorávamos o 1º de maio. 

Claro que no dia 1º de maio estava lá ele, em vez de ser eu, estava lá ele na cadeia. E é aos militares que devemos isso e aos antifascistas. Alguns deram a vida, outros a liberdade, outros tudo, para abrir as avenidas da liberdade e da democracia. 

Depois do 25 de abril incorporei brigadas de esclarecimento, um pouco por todo o país. Houve uma reunião em que eu não estive, não pude, nos Olivais, onde se juntaram centenas e centenas de pessoas para escolherem uma comissão administrativa para a Câmara Municipal de Loures e o meu nome foi um dos mais votados para pertencer a essa comissão administrativa para a Câmara Municipal de Loures. Eu, o José Gouveia - meu querido amigo - veio ter comigo e disse: «Cerqueira, tu foste um dos mais votados para a comissão administrativa da Câmara de Loures. Não podemos fazer o 25 de abril e deixar nas Câmaras Municipais, em contacto com o povo, os fascistas. Nós ainda fomos eleitos em assembleia popular, numa altura revolucionária em Portugal. Eles foram nomeados. De maneira que nós vamos aceitar e preparar eleições democráticas e quem ganhar, ganhou. Mas não vamos consentir fazer a revolução e deixar os fascistas no poder, isso nunca». De maneira que fui para a Câmara, reparti o gabinete da presidência com o José Gouveia por proposta dele. Estive lá, substituía-o quando era necessário, 2 anos e 9 meses. 

Preparámos eleições democráticas, que foram ganhas pelo Partido Socialista. As primeiras eleições democráticas em Loures. Andei por todo o país com o Zeca, nas cantigas, na política - aí a fazer política - um pouco por todo o país, sobretudo no norte e Minho. Na minha zona e Loures e na parte do Vimeiro, que é o Oeste. Fiz a campanha com militares de abril e com democratas, mas sempre, como eu disse inicialmente, com a ideia central da unidade dos democratas portugueses. Para fazermos a descolonização, para criarmos um regime democrático, solidário, moderno…"