Nome: Daniel Isidoro Figueiras Cabrita
Ano nascimento: 1938
Local do registo: Barreiro
Data do registo vídeo: 27-01-2022

Transcrição

"O facto de ter nascido no Barreiro há 83 anos. O Barreiro, era uma terra essencialmente operária e era muito difícil ser insensível ao ambiente social e político que se vivia na altura. A minha juventude foi passada aqui. Eu estudei aqui no Barreiro. E talvez a primeira reação que eu tive, ainda sem qualquer conteúdo político, mas uma reação que já denotava algum sintoma de rebeldia - talvez seja o termo mais adequado - era o facto de, ainda na minha juventude, deparar-me com o policiamento. A ocupação militar e o policiamento constante que havia nas ruas do Barreiro e as histórias que iam chegando das pessoas que eram presas… de quando ficava na rua até mais tarde, a própria circulação de uma carrinha, os polícias sempre armados de espingarda. Tudo isso, em jovem, um pouco um sentimento de uma certa incomodidade por assistir a esse plano.

Por outro lado, em minha casa respirava-se um ambiente oposicionista. O meu avô tinha uma costela republicana, o meu pai tinha fortes simpatias pelo anarco-sindicalismo. Eu digo o meu pai e o meu avô, porque nós vivíamos - o meu pai, o meu avô, a minha mãe - vivíamos conjuntamente na mesma casa. Portanto o ambiente familiar era esse. E portanto, comecei a sentir isso. Ouvia as histórias das pessoas que trabalhavam na CUF [Companhia União Fabril].

Depois de fazer o liceu aqui no Barreiro, empregaram-me na Companhia União Fabril como escriturário. Essa minha entrada na Companhia União Fabril, acentuou e permitiu-me chegarem mais os testemunhos de pessoas que tinham um comportamento e um pensamento claramente contra o Regime. Eu tive o meu batismo político em [19]58 - eu entrei para a CUF em [19]56, tinha 18 anos. E eu em [19]58, com um amigo meu aqui do Barreiro fui assistir, no Teatro da Trindade em Lisboa a um comício da eleição - eleição entre aspas – da campanha do Humberto Delgado. Esse simples facto de ter assistido a um comício naquela altura. Ouvir os oradores que estiveram presentes - sobretudo isso - acentuou-me alguma coisa que eu já vinha sentido de vontade de ter uma atividade política. O que veio a acontecer, ainda estava a trabalhar na Companhia União Fabril. Acabei por ter contactos e uma ligação ao próprio Partido Comunista no início dos anos 60 - já não estou muito seguro. Sei que em [19]62 quando fui assistir em Lisboa às manifestações do 1º de maio eu já estava ligado ao Partido. Agora o ano exatamente em que me liguei, como é que foi - eu acho que foi um processo com o contacto com várias pessoas aqui na CUF e acabei por me ligar ao Partido.

Em [19]62, se eu já vinha com o vírus de ouvir o comício do Humberto Delgado, aquela manifestação do 1º de maio impressionou-me muito. Impressionou-me sobretudo pela dimensão que as manifestações do 1º de maio em [19]62 em Lisboa tiveram e pela grande participação das pessoas. Isso tudo encorajou-me muito e levou-me a pretender ter uma atividade política - comecei a ter atividade política.

Comecei ligado ao Partido a ter as chamadas atividades clandestinas e as atividades que na altura o Partido considerava atividades legais. Eu fui dirigente do cineclube do Barreiro a partir de [19]63 - de [19]63 até [19]65. Portanto há este percurso todo – [19]58, 62, 63, 65. A par das atividades que tinha como membro do Partido, com aquelas atividades que um militante tinha de fazer inscrições nas paredes, que fiz algumas, da distribuição do Avante, de contactar pessoas para aderirem ao Partido, acabei por ser dirigente do cineclube. O que também me permitiu melhorar a minha formação, a própria formação política, porque os cineclubes na altura eram de facto um centro da oposição. Tudo isso ajudou.

Mantive-me [19]63 a [19]65. E nessa altura fiz a tropa, fiz o período da tropa. Com um episódio que eu me lembro, até quando estava aqui de uma segunda chamada que eu tive depois de ter feito o período normal do serviço militar. Como não fui para as colónias, como não fui para fora, chamaram-me uma segunda vez para ir para a tropa. Estava aqui no quartel de Brancanes em Setúbal quando houve o ataque ao quartel de Beja. Na altura o Brancanes era um quartel que pertencia à arma de artilharia de costa, era a arma a que eu pertencia. Portanto era um quartel praticamente sem atividade, não era como o quartel de Infantaria 11, onde as pessoas iam lá porque depois iam para as colónias. Na altura o Comandante do Regimento, que raramente aparecia, apareceu nesse dia muito aflito mandando pôr armas na porta de armas. Acho que tive um papel muito interessante nessa altura, porque em conversa com o sargento do quadro, o cabo miliciano que estava a tirar a formação para sargento e um oficial miliciano acabámos por ter uma conversa toda, que no fundo se concluía no seguinte: é que se o quartel fosse assaltado, [Risos] porque quem assaltou o quartel de Beja, ali entraria sem qualquer problema de certeza. Foi um episódio que eu nunca mais me esqueci, porque obrigou a este contacto com pessoas, que eu conhecia de lá, mas não conhecia sequer qual era a posição ideológica deles. Teve este resultado, que não foi nada de especial, mas teve o seu significado.

O problema é que, depois disso, eu deixei a CUF e passei para o banco TOTTA, já como elemento do Partido. No banco TOTTA - que pertencia ao mesmo grupo da CUF, aquilo acabou por ser uma transferência - eu continuei a desenvolver as minhas atividades, mas gerou-se um movimento entre os bancários de Lisboa para ganharem a direção do Sindicato dos Bancários de Lisboa. Na altura houve contatos comigo e eu acabei por incorporar a lista que se candidatou para a direção do sindicato. Ganhámos as eleições, por uma margem relativamente pequena - porque na altura concorríamos com o antigo presidente, o presidente que lá estava. Mas ganhámos as eleições, embora estivéssemos que estar um ano à espera antes de poder tomar posse. Quem conhecia a situação anterior ao 25 de abril, percebe o porquê: as direções que ganhavam as eleições tinham de esperar por uma homologação pelo Ministério das Corporações, que era feita debaixo de informação da PIDE. O que aconteceu foi que, na lista da qual eu fazia parte, houve dois elementos que foram cortados, portanto, o Ministérios das Corporações não autorizou que lhes fosse dado posse - porque a informação da PIDE era no sentido de que eram elementos suspeitos. Aliás, eu mais tarde vim a ver o despacho da PIDE e o que lá se escrevia era exatamente isso: eram indivíduos suspeitos e não podiam.

Curiosamente eu, que mesmo já depois de ter ganho as eleições, fui detido pela PIDE no 1º de maio de 1968. Vieram aqui a minha casa onde eu morava no Barreiro, com um aparato muito grande, com um GNR. Entraram-me em casa dois funcionários da PIDE com um GNR, durante a madrugada, prenderam-me, levaram-me para a António Maria Cardoso - na véspera do 1º de maio de [19]68. Estive lá uma noite, fizeram aqueles procedimentos normais, as fotografias, um interrogatório bem breve e no dia seguinte libertaram-me. É curioso que embora tenha acontecido este facto, eu que já tinha concorrido no mesmo ano às eleições de [19]68, eu não fui cortado da lista, foram outras duas pessoas. 

Foi uma coisa que me deixou sempre alguma interrogação, eventualmente a PIDE saberá porquê. Talvez pensando numa tática que era vulgar: «Um tipo referenciado, deixa cá ver com quem é que ele contacta», essa pode ter sido [a tática], mas não sei se foi essa se não.

A partir do momento em que acabei de tomar posse em [19]69, praticamente deixei de ter as chamadas atividades clandestinas. Aquilo que eu fazia, distribuições de Avantes, inscrições nas paredes, a mobilização, participação, agitação - tudo isso acabou por uma questão de segurança, quer para mim quer para as pessoas que me acompanhavam na direção do sindicato. Portanto a minha vida passou a ser feita em função das atividades do próprio sindicato, que acabou por ter uma grande importância política, na altura antes do 25 de abril, na medida em que se gerou nessa situação (...) uma orientação do Partido Comunista que era: as direções dos sindicatos corporativos serem ganhos por direções, por pessoas da confiança dos trabalhadores. Isso gerou um movimento que levou a que vários sindicatos fossem ganhos por pessoas ligadas à oposição democrática. Aliás, as «eleições» de [19]69 da oposição democrática, onde se constituíram as comissões socioprofissionais, acabou por ter um grande efeito na dinamização desse movimento para ganhar as direções dos sindicatos corporativos.

A partir do momento em que se ganhou as direções dos sindicatos corporativos, passou a haver uma atuação claramente política que foi marcadamente no sentido de: por um lado, tentar entrar no campo das reivindicações, obrigando as entidades patronais a cederem perante as propostas que eram apresentadas pelas direções sindicais; mas simultaneamente colocou-se uma outra questão, mais política, que ultrapassava o plano reivindicativo que era uma luta pela liberdade e pelos direitos sindicais.

Isto num quadro corporativo em que os sindicatos faziam parte do aparelho - aliás, não é por acaso que o Estado se chamava Estado Corporativo. Os sindicatos eram uma criação do próprio Regime. Os sindicatos criados pelos trabalhadores tinham sido todos extintos, com a constituição de [19]33. A célebre história do 18 de janeiro de [19]34, que ainda tentou haver uma resistência contra o encerramento dos sindicatos - não foi possível perante a correlação de forças que existia. O próprio facto destes serem os sindicatos oficiais, controlados pelo Regime, faziam parte do aparelho da estrutura corporativa. Fazia parte, era uma parte do Estado.

Esta luta pela liberdade sindical e pelos direitos sindicais assume uma importância muito grande e um significado político muito grande, que levou no desenvolvimento desta ação à constituição daquilo que foi as reuniões intersindicais - foram já em 1970. É uma coisa que alguns historiadores não, com exceção de alguns mais ligados às questões do trabalho, deem importância. Mas teve uma grande importância, pelo objetivo que perseguiu - estar a lutar pela liberdade e pelos direitos sindicais num quadro, num regime que não coabitava com as liberdades - isto por um lado. E por outro com a mobilização que isso gerou entre os trabalhadores, com a sua participação muito numerosa ao nível das assembleias gerais.

Os sindicatos corporativos eram uma coisa morta. A partir dessa dinamização os sindicatos passaram a ser um instrumento mobilizador da capacidade reivindicativa dos trabalhadores, com grandes concentrações no plano das assembleias gerais dos sindicatos, que reclamavam, reivindicavam - coisa que nas características daquele regime era sempre uma coisa não estava de acordo com a própria natureza do regime. Colidia, digamos assim, com o regime.

O direito de serem os sindicatos que estavam agrupados na Intersindical a designarem os representantes dos trabalhadores para a Conferência Anual do Trabalho, indicando concretamente os nomes que tinham sido eleitos na própria reunião. E foram comunicados ao Ministério das Corporações. Claro que Ministério não aceitou. Nomeou, como era habitual, alguns dirigentes de sindicatos que o próprio regime continuava a controlar - mas isto permitiu que houvesse da parte das direções que faziam parte das reuniões intersindicais uma queixa direta ao Secretário-Geral da Organização Internacional do Trabalho [OIT]. Que levou a que este respondesse ao próprio governo acentuando a necessidade, no fundo fazendo uma critica ao próprio governo no sentido de que o governo deveria respeitar os princípios inerentes à constituição da OIT. Isto levado para o plano internacional criou um incómodo muito grande.

Por outro lado, o desenvolvimento destas reuniões intersindicais levou à aprovação de um documento em que se reivindicava claramente, neste plano dos direitos e liberdades sindicais, o direito à greve. Isso era uma coisa que não podia ser aceite pelo próprio governo. Estes dois factos conjugados levou o governo… que, se até aí, já se vinha verificando alguma repressão com a chamada de dirigentes sindicais à PIDE, com proibição de reuniões, com destituição de uma própria direção - a direção do sindicato dos metalúrgicos de Lisboa foi destituída. O aumento da contestação originou, como era esperado, um aumento da repressão. Essa repressão vem acentuar-se com a minha prisão, já em [19]71, e a prisão do António Santos do sindicato dos jornalistas.

Era lógico ou virem-me prender ao sindicato, ou virem-me prender aqui a casa. Mas não! Foram-me prender a Sesimbra, onde eu estava a iniciar as minhas férias - é verdade. Prenderam-me a mim, o António Santos, o Manuel Candeias - que era do Sindicato dos Metalúrgicos, o Manuel Maria Candeias, que depois esteve preso comigo. Fui preso em 30 junho de [19]71. [Vou para a] António Maria Cardoso, onde começam os interrogatórios e passam-me para Caxias, onde continuam os interrogatórios.

Durante 22 dias eu sou sujeito a interrogatórios em Caxias. Com a chamada tortura física e psicológica que resultava de uma prisão feita pela PIDE. Durante 22 dias estive sujeito a essa repressão, aos interrogatórios. Depois estive em regime de isolamento completo praticamente dois meses e meio, até que finalmente, já no final acabei por estar numa cela com o jornalista, o António Santos - era jornalista d'A Capital. Foi o primeiro companheiro de prisão, foi o António Santos. Depois ainda ficámos em Caxias algum tempo e depois passámos para Peniche.

Eu fui libertado com medidas de segurança, o que significava que a prisão podia ser prolongada, que era prática na altura.

Aliás, há um episódio curioso. A minha prisão suscitou um movimento internacional muito grande, criou grande incómodos aqui ao governo. Porque as três centrais sindicais mundiais enviaram cá observadores ao meu julgamento, além de organizações internacionais, o comité internacional, juristas internacionais, comité dos direitos humanos. A imprensa internacional noticiou, fez um noticiário muito grande. Porque na altura havia uma atenção muito grande por causa das guerras coloniais - as guerras coloniais favoreciam muito este apoio internacional. Na minha prisão - na minha e na do Candeias, que também foi dirigente sindical - suscitaram da parte da imprensa internacional, dos organismos internacionais e particularmente das organizações sindicais internacionais - a CMT [Confederação Mundial do Trabalho], a CISL [Confederação Internacional dos Sindicatos Livres] e a CGT [Confederação Geral dos Trabalhadores] francesa, que teve cá um representante permanente, que ficou cá muito tempo.

A atitude dos bancários perante a minha prisão foi uma coisa nunca vista em Portugal, porque além das manifestações que houve na Rua do Ouro, em plena sede da finança portuguesa. Tem maior significado - na altura estava tudo concentrado ali na baixa, hoje já não está. Houve manifestações permanentes com repercussão policial, mas muito concorridas. Houve manifestações interessantíssimas de gravata preta - todos os bancários andavam de gravata preta, as mulheres de lenço preto. No Porto foi rezada uma missa por graça dos presos.

A situação política em [19]71, quando eu fui preso, em que havia já uma contestação muito ampla ao regime, em que as eleições de [19]69 e [19]71, o Congresso de Aveiro - tudo isso tinha mobilizado muita gente. Tinha-se perdido muito medo. Um dos grandes méritos que eu acho que teve esta situação de termos ganho as direções dos sindicatos e fazer as assembleias gerais foi: muitos bancários perderam o medo de participar em coisas públicas, coisas que lhes interessava diretamente. Perdeu-se o medo.

Nessa altura havia muita gente ligada à oposição democrática, já acompanhavam de perto. A oposição ao próprio Regime tinha crescido muito. E, portanto, tudo isso dava animo às pessoas.

Acho que da parte da própria direção do sindicato, até ao sindicato ser encerrado - porque na decorrência das manifestações que foram feitas a pedir a minha libertação o regime encerrou o sindicato dos bancários de Lisboa e do Porto, eu tinha-me esquecido desse pormenor que é muito importante - mas enquanto isso não aconteceu, da parte da direção houve uma atitude muito corajosa de todos os meus colegas, que diariamente informavam, conseguiam chegar a todos os locais do banco com informação escrita sobre a situação em que eu estava. Isso criava nas pessoas uma informação completa e uma revolta muito grande, porque entendiam que tinha sido preso um dirigente sindical, porque nós tínhamos estado na direção a obter bons resultados na contratação coletiva.

Portanto, tínhamos feito um bom trabalho, que tinha resultado em benefícios para as pessoas e as pessoas não entendiam porque é que se prendia uma pessoa que tinha estado a trabalhar a favor delas, tinha conseguido [resultados] e depois era preso. Essa informação da parte dos meus colegas, foi uma coisa muito bem feita e da parte deles foi muito corajosa, levou a criar este ambiente e depois estas coisas são contagiantes - o problema é esse. Quando alguém começa e as coisas começam bem, o resto vem tudo atrás. A história das gravatas: não havia ninguém que não quisesse pôr gravata - isto não fui eu que vi, é o testemunho dos meus colegas - não havia ninguém que não pusesse gravata, e quem não pusesse... era muito mal visto. Aqui as coisas viraram-se já ao contrário. O ambiente político na altura, a boa condução feita enquanto sindicato e mesmo depois do sindicato encerrado - porque houve um trabalho muito bem feito da parte das pessoas que tinham sido retiradas dos cargos de direção, mas continuaram a exigir ir ao sindicato e reunir, mantiveram a contestação. Da parte deles, houve um trabalho exemplar.

No dia em que eu fui libertado um grupo de bancários, numeroso, deslocou-se a Peniche para me receber. Só que na noite anterior a PIDE trouxe-me aqui para Caxias. Eu já não saí de Peniche, acabei por sair aqui sozinho de Caxias - quando ali deveria ter saído com uma receção dos bancários. E pronto, foi assim. Saí em [19]73, felizmente passado muito pouco tempo apareceu o 25 de abril.

Regressar à atividade sindical não podia, porque a lei não [permitia]. A perda de direitos políticos decorrente da sentença do tribunal plenário implicava também a não possibilidade de concorrer a cargos sindicais. O banco TOTTA admitiu-me sem qualquer reserva, da parte da administração da altura houve essa demonstração clara de compreensão. Uma posição que não se identificava com os propósitos do regime, de certeza, embora da parte do regime também desconheço se houve alguma pressão na administração, mas julgo que não - não sei, devem ter deixado ao critério da [administração]. Porque naquela altura também já se acentuavam as dificuldades do Marcelismo, acho que estas coisas também se explicam percebendo qual é o momento político em que as coisas ocorrem. Regressei à atividade bancária. A ligação ao Partido passou a ser feita praticamente sem militância, digamos assim, até chegar o 25 de abril".