Nome: Armando de Sousa Teixeira
Ano nascimento: 1949
Local do registo: Barreiro
Data do registo vídeo: 19-01-2022

Transcrição

“A minha maior escola foi o Movimento Associativo Estudantil chamado MAE, no Instituto Industrial de Lisboa, cuja associação ADAIIL [Associação Desportiva dos Alunos do Instituto Industrial de Lisboa] estive ligado desde [19]68. Entrei na escola em [19]66 para um curso médio. Sou filho de gente operária. Trabalhadores de uma classe com poucas posses económicas, muito poucas posses económicas. Eu tinha uma bolsa de estudo da Gulbenkian, desde a escola industrial. Tirei o curso industrial numa escola aqui do Barreiro muito conhecida, a Alfredo da Silva, e tinha uma bolsa da Gulbenkian. Foi essa bolsa que me permitiu ir para Lisboa, para o ensino médio, para o Instituto Industrial. Lá contactei com uma realidade diferente. Digamos que os estudantes já tinham preocupações de outra ordem cultural, reivindicativa, social. E contactei com a associação de estudantes, a chamada Associação Desportiva do Instituto Industrial de Lisboa.

Eu fiz um livro, só para mostrar [mostra o livro], foi publicado agora em dezembro com a história desta associação. A tal associação, a ADAIIL, é a minha grande escola, embora eu já tivesse participado anteriormente no Movimento de Juventude, o Movimento Democrático de Juventude. É lá que eu fui encontrar o Partido - aliás neste sítio, neste terreiro [mostra uma foto]. A contracapa é uma fotografia de uma concentração de estudantes em 1968, na altura da chamada Primavera Marcelista, que nunca passou do outono, e que já reivindicavam, com um caderno de reivindicações com uma série de pontos, junto do ministro que tinha continuado.

O Hermano Saraiva, ministro da educação de Marcelo Caetano é o mesmo que vinha já nomeado do tempo do Salazar, só que adaptou-se muito bem à chamada demagogia liberalizante, é assim que alguns chamavam, primavera marcelista como outros chamavam - que de primavera teve muito pouco.  O Hermano Saraiva tinha uma grande lata. Aliás como nós o conhecemos uns tempos depois nos teatros televisivos que fazia. Era um comunicador, não há dúvida nenhuma que era um bom comunicador, e já era assim connosco. Então nas reuniões com as associações recebia toda a gente, prometia tudo a todos: eram bolsas, eram subsídios para as cantinas… estava tudo prometido.

É nesta altura que há aqui uma concentração, porque simultaneamente nas escolas continuavam estruturas reacionárias. A nossa escola pertencia à Direção Geral do ensino técnico, o que é incrível, sendo ensino médio. Hoje já é ensino superior. Naquela altura era médio, pertencia a uma direção altamente reacionária. Queriam-nos na altura para ajudar a pagar a energia que nós gastávamos na associação. É por isso que há esta concentração, que depois vai junto do diretor e que o arranca - primeira e última vez, nunca mais caiu nessa - o arranca para a reunião lá nos pavilhões. Então ele lá tem de reconhecer, pressionado pelos estudantes, tem que reconhecer que a energia era gasta a fazer sebentas e que os estudantes não tinham que pagar energia para estudarem. Retira essa, mas depois não retirou outras e a guerra continuou e agravou-se. A Apolónia é capaz de falar mais nisso.

Este terreiro foi onde eu fui recrutado - convidado, melhor ainda - para o Partido Comunista Português. Havia uma tradição grande de comunistas no Instituto Industrial, que já vinha de trás, dos anos 1962 / 63. Houve aqui um hiato, uma solução de continuidade. Eu enterrei-me, porque os ciclos eram de quatro anos e havia para aqui uma nova célula com base em gente de Vila Franca de Xira. Curiosamente não era do Barreiro, era de Vila Franca. O principal elo de ligação chamava-se Tito Baptista Pereira, filho do grande nadador Baptista Pereira que é um dos protagonistas dos Esteiros, do livro que nós conhecemos da nossa juventude. O Baptista Pereira é um dos homens que nunca foram meninos. Um grande nadador, um grande campeão que fez o canal da mancha, também fez aqui Lisboa - Barreiro, fui vê-lo ali chegar ao clube naval. Tito Baptista Pereira é o elemento que vem, com outros, recriar em 1967 / 68 a célula comunista do PCP no Instituto.

Mas a atividade política tem ainda outros contornos. Tem a ver com o que eu chamo aqui [lê do livro]: «Frente ao rio do nosso contentamento, a casa tremia quando passavam os tanques Patton, da segunda guerra mundial, com lagartas rangentes que acordavam cedo o sono de menino e deixavam sulcos profundos no alcatrão e na alma. Estávamos inequivocamente em vésperas do 1º de maio. Era a demonstração de forças na vila operária ocupada pela GNR desde 1943».

Eu nasci no bairro velho, à beira do rio e em menino ouvia passar e tremia a cama, como se fosse um tremor de terra, quando passavam os tanques da GNR que vinham fazer as demonstrações de força nas vésperas do 1º de maio, que na altura não era um feriado, naturalmente, mas eram datas de luta para comemorar o dia dos trabalhadores. Havia prisões na altura, sempre. Havia manifestações quase sempre, houve muitas. Agora não conto isso, já deve estar contado com certeza. E eu nasci numa família antifascista. O meu velho avô era ferroviário ainda dos tempos do anarco-sindicalismo. Era republicano com uma costela anarcossindicalista, já escrevi sobre isso também. Há um livro sobre isso que escrevi. Julgo que interessante, enfim, quem sou eu para dizer que é interessante, chamado ‘A Primeira República e o Movimento Operário no Barreiro’. Conta, entre 1910 e 1926, entre outros, as histórias dos velhos ferroviários.

Em 1969 durante a preparação para a campanha democrática para as «eleições» de outubro, quando Marcelo Caetano, na sua primavera, resolve fazer eleições. Como diria Salazar: «Mais livres do que em Inglaterra». Não foram livres, mas permitiram que o governo democrático se organizasse e trabalhasse, - aproveitasse aquele buraco de funil. Porque com a primavera fizeram um funil: tinham a boca larga, mas a saída era muito estreita, normalmente com prisões e repressão. Fui um dos organizadores da Comissão de Jovens de apoio à CDE que deu origem nessa altura ao Movimento Democrático de Juventude, que é um antecedente do MJT, Movimento Juventude Trabalhadora, que é formado em 72 / 73. Estamos a falar em 1969. Este movimento democrático de âmbito regional ainda chegou a ter reuniões locais e regionais, na Baixa da Banheira nomeadamente em Alhos Vedros e em Vila Franca. Nunca conseguiu  estruturar-se enquanto movimento nacional, mas teve um papel importante na organização da juventude. Aí nascem uma série de jovens da minha idade, alguns mais novos, outros mais velhos que integram-se no Movimento Democrático ou vão para as coletividades, vão para o cineclube, vão para o Luso, vão para a associação de estudantes da escola Alfredo da Silva, sobretudo os estudantes noturnos. São uma geração que tem ainda muita gente pela vida fora lutando até ao 25 de abril, pelo derrube, e depois do 25 de abril, na construção da democracia.

Fui preso no dia 20 de novembro de 1972, no aquartelamento de Chipera em Tete [Moçambique], o chamado perímetro de defesa próxima da Cahora Bassa. Muito longe para onde depois fui parar. No dia 20 fui detido no próprio aquartelamento, em Chipera, onde estava na altura como furriel miliciano - embora tivesse começado no COM nessa altura para furriel miliciano. Nessa altura foi a polícia militar numa avioneta. Um alferes e um soldado, armados, foram deter-me. O comandante do batalhão interino, um obscuro major, passou por lá. Poucas falas e com um comportamento pouco humano, manda-me chamar à porta do quarto - estava a dormir ainda - manda-me chamar na manhã do dia 20 e diz só: «Acompanhe este senhor alferes da polícia militar». 

Vim de avião para a cidade de Tete e em Tete passaram-me à disponibilidade - uma coisa extraordinária. Quão difícil era passar à disponibilidade na tropa, na altura, e ali bastou um carimbo a óleo num papel, metade de uma A4, que me entregaram na chamada ZOTE - Zona de Operações em Tete. Entregaram-me dizendo: «Passa nesta data à disponibilidade». Mandaram-me vestir à civil e a seguir foram-me entregar à delegação da PIDE na cidade de Tete.

Na altura o responsável da delegação era um facínora chamado Videira, conhecido da história, que no 25 de abril fugiu para África do Sul, para ir integrar a polícia do Apartheid. Era um conhecido torturador e assassino que me recebeu aos berros quando cheguei à delegação. Aos berros: «O que é que está aqui a fazer?! Se foi preso é porque fez alguma coisa!». E eu respondi mais ou menos no mesmo tom: «Diga-me o senhor o que é que eu estou aqui a fazer. Não tenho nenhuma notificação, não recebi nenhum mandado de captura, não sei o que é que estou aqui a fazer». [Ele]: «Se anda aqui é porque fez alguma coisa!». Entretanto fiquei ali um dia e tal, mandaram-me para uma pequena cela onde estava lá um guerrilheiro e um homem da junta da (…) estavam presos provavelmente por apoio à FRELIMO, não cheguei a apurar isso.

O que é curioso é que ao transitar da sede da delegação - a cidade de Tete é uma cidade muito pouco arborizada, com um aspeto assim amarelado, onde faz muito calor, uma zona muito quente, aquilo já fica para o interior de África é aquela parte de Moçambique que entra por África dentro. Uma terra amarelada, assim de uns tons acastanhados. Então quando ia a caminho da cela onde pernoitei passámos por um vale, aquilo era perto do Zambeze, a cidade de Tete fica na margem do Zambeze. Não se via o rio, mas aquilo devia estar muito perto - um planalto e surpresa, fiquei completamente surpreendido: estavam dezenas de celas, jaulas de ferro, nem cobertura tinham e estavam centenas de negros às portas das jaulas. Era fim de tarde, estávamos quase no pôr do sol - o pôr do sol é uma coisa muito rápida em África, não é como aqui (...) - e pergunto ao PIDE: «O que é isto?...» (ao agente da PIDE que me acompanhava, um agente que eu não conhecia) «… o que é isto?» e o fulano: «Isso são as turmas de reeducação, o contingente de reeducação». Quer dizer, aqueles homens estavam ali, durante o dia trabalhavam em machambas que tinham dentro do perímetro da delegação, suponho eu, e de tarde iam dormir em jaulas sem qualquer tipo de cobertura. Eram tratados como animais. Foi uma coisa que me impressionou, nunca deixei de me lembrar deste episódio.

No dia seguinte mandaram-me, sob prisão, de avião para Lourenço Marques. Em Lourenço Marques sou colocado na célebre prisão da Machava. Prisão da Machava que era célebre porque era a prisão da PIDE, embora tivesse uma prisão que era também de delitos comuns, estava dividido. A cadeia da Machava fica a uns quilómetros de Lourenço Marques, onde também havia as turmas de reeducação, que eu conheci graças à solidariedade de um guarda prisional - coisa que eu sempre recordo, já escrevi sobre isto. Já procurei a sua origem em Arcos de Valdevez, não encontrei. Fomos lá à junta, mas não encontrámos. Era guarda mesmo contratado da PIDE, do quadro - está em documentos da PIDE. Era guarda contratado. Artur Cerqueira.

Eu cheguei ao fim do dia, mandaram-me para a cela - uma cela de 3 [metros] por 1,5 metros com um beliche, com um buraco para as necessidades, um balde - e adormeci, com aquelas emoções daqueles dias, adormeci. Acordei a ouvir assobiar os vampiros [música de Zeca Afonso]. E eu achei aquilo...! De repente eram para aí, sei lá, eu não tinha relógio, tinham-me tirado o relógio, eram para aí 8h / 9h da noite, achei aquilo estranho. «Será provocação?» pensei a primeira coisa «Ou não!». Fiquei curioso. Assobiaram. Ali em baixo tinha uma rede com grades. Ainda cheguei a cama, pus-me em cima, só se conseguia ver um bocadinho mais além - eram uns pavilhões elipsoidais onde estavam as celas, havia vários pavilhões na Machava. Bati à porta, para chamar o guarda. Bati, bati, bati e o guarda prisional nunca apareceu. Também já estava com fome, ainda por cima não me deram jantar. À meia-noite ouvi barulho nos corredores, pensei: «Bom isto deve ser a mudança de turno do guarda». Bati à porta, ouvi barulho - a porta abriu. E vem um homem com uma farda, já assim de meia-idade, com bigode grisalho e eu digo assim: «Peço desculpa, mas trouxeram-me para aqui e não me deram jantar». [Ele]: «Ah não deram? Então não mandaram vir jantar para si?». Eu pelo tom vi logo que era uma pessoa diferente. [Diálogo]: «Não, nem sequer me abriram a porta, já protestei, não me deram jantar». «Então não se preocupe. Deixe estar que eu trouxe uma bucha avantajada, eu vou buscar». «Não, não». «Um café com leite e um bocadinho de pão, eu trago para si». «Não, não se esteja a incomodar».

Comecei a perceber que era uma pessoa diferente, embora não tivesse experiência anterior, mas por aquilo que nós conhecíamos dos guardas prisionais que normalmente eram gente ligada à PIDE, gente carrasco - com algumas exceções naturalmente - e este era uma honrosa exceção. Entretanto eu ainda me atrevi a perguntar: «Eu, há bocado estava a dormitar, mas pareceu-me ouvir assobiar aqui perto da cela». [Ele]: «Ouviu? Está bem, não se preocupe. O senhor é militar, não é?» - começou-me a fazer perguntas - «Sou militar» [respondi]. «Pois, estava à espera. Já me tinham contado que ia chegar um militar. Mas veio da guerra?» «Vim da guerra diretamente. Olhe, vim ontem!» «Como é que está a guerra?» «Não está bem. As guerras nunca podem estar bem não é? De vez em quando somos atacados, outras vezes são os alarmes, que é como se fosse um ataque» - muitas vezes o que a FRELIMO fazia era manter aquela malta toda sob respeito, fazia parte da quadricula de defesa de Cahora Bassa. [Ele disse]: «Não esteja preocupado, que está aí mais um Furriel e um Alferes a cumprirem pena». E estavam. Eram dois militares que lá estavam e com os quais ele me pôs em contacto nos dias seguintes.

O Artur Cerqueira levou-me bananas, levou-me papel e caneta para eu escrever; eu tinha os meus cunhados, irmãos da Apolónia - ele era polícia lá em Lourenço Marques - foi à procura; tinha um casal amigo, que eu conheci desde pequenino, que estavam lá como cooperantes na altura a trabalhar, ele foi à procura. Porque ele era distribuidor durante o dia, andava com um carro de distribuição de refrigerantes e à noite, para ganhar mais uns tostões, ia fazer o turno de guarda - ou então o contrário, porque ele era mesmo guarda prisional efetivo e fazia o biscate durante o dia. Então como calcorreava e conhecia bem, foi à procura e encontrou a minha cunhada! Entregou as cartas, que a minha cunhada mandou para a Apolónia, para cá [Portugal], a contar o que é que se tinha passado. Creio que ainda recebi uma carta, que eu ainda estive 20 e tal dias - até ao dia 16 de dezembro - na Machava. 

Eu depois vim a Lourenço Marques que é a cerca de 10 km da Machava. Vínhamos na carrinha da PIDE a interrogatório. [N]esses interrogatórios disseram[-me] do que é que era acusado: de ter sido responsável de agitação durante o curso de Oficiais Milicianos em Mafra, no quarto turno de [19]71. A PIDE não inventou, isto tinha sido denunciado. Na altura não descobriram nada. Na altura da agitação ninguém descobriu nada, ninguém sabia de nada. Alguém depois denunciou, ao ser preso. Tinha sido, aliás, uma iniciativa unitária com gentes de várias orientações políticas.

No dia 16/12/1972 vim sobre prisão com um PIDE ao lado - não me algemaram, para não parecer mal - num avião da TAP. Estive sempre acompanhado pelo PIDE, a viagem toda. Um pormenor curioso, que eu conto no livro, é apenas uma questão mais da ficção, mas como diz o João Tordo, a ficção é mais verdadeira que a verdade da realidade: eu nesse dia, sob prisão no avião, dormitei, porque nós fizemos escala em Luanda e depois Luanda - Lisboa. Dormitei e tive um pesadelo. Sonhei com ataques, com coisas da guerra. O dia 16/12 é o dia dos massacres de Wiriyamu, que foi um dos motivos de grande denúncia da tropa colonial, daquilo que lá fizeram. Está testemunhado até no filme da televisão do Joaquim Furtado. E, portanto, é o massacre em que matam mais de uma centena de habitantes de duas aldeias, a propósito de uma perseguição a guerrilheiros, de forma completamente sinistra, terrorista. Inclusivamente metralharam, mandaram-nos para dentro das palhotas e deitaram fogo às palhotas.

Na chegada a Lisboa estava uma carrinha da PIDE em plena pista de aeroporto, onde me enfiaram. Ainda olhei para ver se via a companheira, mas ela não sabia. Tinha andado à procura, tinha andado de roda da PIDE para saber onde é que eu estava. Tinha posto a hipótese - ela vai falar nisso - de ir lá para Moçambique para me apoiar, porque não sabia bem o que me tinha acontecido, se eu estava bem, só sabia onde é que eu estava. Só soube quando recebeu as cartas que eu mandei através do guarda Cerqueira e da cunhada que pôs no correio, que eu estava preso na Machava. É claro que não estava [à espera no aeroporto de Lisboa].

Fui levado imediatamente para o Reduto Norte da prisão de Caxias, onde começaram logo as humilhações. Primeiro são as fotografias do costume, tirar o registo fotográfico. Logo acompanhado por um PIDE que me puxou - eu tinha na altura um fiozinho - que me puxou violentamente, (...) porque queria saber se eu tinha pendurado no fio uma cruz. Nós conhecíamo-lo pelo Católico. Fez parte de várias torturas. Às duas por três a gente começava a transmitir, era «O Católico». Eu tinha uma estrelazinha com o nome da companheira, as iniciais, uma estrelazinha de cinco pontas pendurada no fio e ele começou logo a interrogar se eu era católico, se não era católico, se era batizado, se não era batizado. E eu fui respondendo: «Batizado sou, mas isso não é uma questão importante, cada um tem a sua fé». 

Meteram-me logo na sala de torturas ainda no dia 16, ao fim da tarde do dia 16, onde estive até ao dia 23, vésperas de Natal, sob tortura do sono, tortura da estátua. Tiravam-me a cadeira, empurrões contra a parede. É o período das alucinações, as paredes caem. Os gritos que eles punham em gravações, de propósito, parecia que estar a ouvir os gritos da família. As ameaças sobre a família. Uma violência continuada sem poder dormir, com consequências terríveis. Já estava ofegante, as arritmias estavam a aumentar. Eu pedi apoio médico dizendo que, se não, morria ali.

Depois havia, num moinho de quatro em quatro horas, os ‘PIDEs bons’ e os ‘PIDEs maus’. Os PIDEs bons vinham: «Diga o que tem a dizer para ir ter com a sua família. Está aqui...». Depois chegava outro aos pontapés e aos empurrões: «Ainda aqui está, seu filho da puta?! Ainda continua aqui?! Vai ter já de vomitar tudo!».

Ao fim de sete dias decidi confirmar a minha participação na tal agitação, que tinha ficado como um osso atravessado, porque eles nunca tinham sabido quem é que tinha sido a não ser da denúncia de um outro fulano que tinha participado e tinha sido preso e que não tinha nada a ver comigo politicamente - aliás, de uma outra formação política, mas tinha sido uma ação unitária, em que tinham participado, [como] eu há bocado referi.

Essa agitação contra a guerra colonial. Colocámos vinhetas, fizemos documentos. «7500 mortos já bastam. 30.000 filhos estropiados. Fim da guerra colonial», e depois numa segunda fase: «Não jures, camarada» - essa foi a mais célebre. Portanto, na preparação para o juramento de bandeira pusemos a circular a palavra de ordem e espetámos nos corredores de mármore de Mafra. Aquilo era só pôr o mínimo cuspe, espetava ali, ficava uma maravilha. «Não jures, camarada». E de facto no juramento de bandeira, que era feito ali à frente, tinha uns jardinzitos - continua a ser, tem ali aquela escadaria em frente da entrada do convento. Tinha PIDEs alinhados para cada linha dos cadetes para ver quem é que mexia os lábios, então a malta mexia os lábios a dizer: «Filhos da puta, cabrões». Só juravam os prontos que estavam postos de propósito à frente dos soldados, que era para se ouvir. Aquela coisa do juramento que os militares preservam muito, mas era miliciano… nunca tive espírito de militar. Respeito alguns milicianos, alguns homens do quadro que foram extraordinários; tenho toda a consideração pelos militares que fizeram o 25 de abril, mas estas ações também ajudaram à consciência dos militares de carreira em relação ao papel [que tinham] e em relação àquilo que depois desencadeou o levantamento militar no dia 25 de abril.

Esta confirmação que eu fiz da participação enquanto militante do Partido Comunista Português, nessa condição eu tinha participado nessa ação, procurou apesar de tudo, não sendo uma atitude muito corajosa nem recomendável - eu já tinha lido o «Se fores preso, camarada». Apesar de tudo eu socorri-me da existência de pessoas que eu conhecia que tinham desertado, que tinham fugido para não irem à guerra e estavam fora do país. De tal maneira que num dos casos, já depois de me terem mandado dormir no fim do dia 23, no dia 24 voltei lá outra vez para me interrogarem a propósito de uma coisa que eu tinha dito e porque tinham ido bater à porta de uma das pessoas que eu tinha referido e não tinham encontrado. Dizia nessa altura o Tinoco: «O senhor está aqui a gozar com a gente, não é? Só fala em fantasmas» - não eram fantasmas, não estavam e eu sabia que não estavam. Portanto mais ninguém foi preso por minha causa. Não é uma coroa de glória de que eu me orgulhe. A prisão e estes acontecimentos marcam-me para o resto da vida. São traumas que não se perdem.

No dia 28 de junho de 1973, eu tinha saído há pouco tempo, nos finais de maio, princípios de junho tinha saído da cadeia de Caxias. Condenado já, mas com 18 meses de prisão correcional remível a multa, portanto fiquei em liberdade. Nesse dia a minha filha Sofia Catarina fazia um ano e nós combinamos que faríamos um piquenique no monte sobranceiro [á prisão de Caxias], que também se via do Reduto Sul, para assinalar esse dia e para saudar os que tinham ficado.

Eu estava numa sala com mais dois companheiros, dois camaradas que ficaram entretanto à espera de julgamento. E lá fomos. Fomos as famílias dos que estavam e a minha, com a Sofia Catarina ainda num carrinho, e fomos fazer um piquenique. Fomos acampar num monte em frente, muito próximo, aquilo ficava a menos de 1 km do Reduto Sul. (...) Lá fomos e lá sentamos. E a dada altura, como combinado, começámos a acenar. Começámos a acenar para o Forte. O João Pedro e o Carlos Domingos já sabiam do acontecimento, estavam à janela, da parte de dentro das grades, a assistir e também começaram a acenar. Não é que de repente estavam todas as janelas do Reduto Sul, do primeiro e do segundo andar a acenar para nós? Foi uma festa, foi um momento... É claro que daí a um bocadinho ouvimos os apitos da GNR, que fazia a guarda da cadeia, e saíram dois jipes com os GNRs armados para virem reprimir ou impedir aquilo que estava a acontecer. Nós tínhamos combinado já a saída, aquilo ainda ficava um bocadinho longe, sobretudo porque ainda tinham que dar uma volta, portanto levantámos o bivaque e fomos andando a caminho da estação por aquelas ruelas, afastados uns dos outros. Quando o jipe nos abordou, quando o Comandante nos abordou a perguntar se tínhamos visto alguém que tinha estado ali no monte, [dissemos]: «Não, não vimos ninguém. [Risos] Viemos aqui de passeio, não vimos ninguém». Pusemos o Forte de Caxias em polvorosa.

Isto, no fundo, para transmitir duas ideias: da prisão nunca se sai. Apesar de eu nessa altura ter saído em liberdade, fica sempre algo de nós ligado a um período - como sabe quem lá passou e os que não sabem irão contar - fica sempre algo de nós, ficamos sempre muito ligados aquela situação tremenda de privação de liberdade.

O dia 25 de abril é uma data, para todos os antifascistas, para todos aqueles que lutaram contra o Regime, não só histórica, como gloriosa. É o início da libertação da pátria e de todos aqueles que foram ofendidos, humilhados e perseguidos, torturados e alguns mortos de que nos resta a memória.

Estes documentos têm o carimbo do dia 25 e têm o carimbo da PIDE. Porque a minha companheira, a Apolónia Teixeira que vai também fazer um depoimento, tinha sido presa aqui no continente no dia 4 de abril, numa reunião da CDE em Lisboa. A CDE na altura estava muito ativa - tinha ficado desde [19]69, também irei referir um bocadinho isso. Tinha ficado muito ativa e estava na altura a aproximar-se o período em que ia haver, novamente, ‘eleições para a assembleia nacional’, promovidas pelo Marcelismo - nós chamávamos demagogia liberalizante, muito demagógica e pouco liberalizante. [A Apolónia] estava detida também. Enviei um telegrama lá de Nangade que chegou a Caxias no dia 25 - e tem aqui o carimbo da cadeia. E escrevi uma carta que foi enviada por avião no dia 22 de abril e que tem aqui uma nota escrita por um PIDE: «Já não se encontra nesta cadeia. 25/04/1974» - também é curioso. Não se encontrava porquê? Porque saiu no dia 24 à noite. A Apolónia saiu com uma fiança, depois de interrogatórios durante vários dias. Foi das últimas a sair. Tinham sido presos 50 e tal nessa reunião. Tinha sido ali para Benfica, estavam a formar uma cooperativa - não estavam nada, estavam a estruturar o trabalho da CDE para o período eleitoral que viria a seguir.

Há aqui um outro documento, também um telex do dia 25/04, também histórico. Eu tinha feito uma exposição lá onde estava, na guerra, no aquartelamento, dirigida ao Diretor Geral de Segurança, que era o Major Silva Pais, meu conterrâneo de triste memória - ele era natural aqui do Barreiro. Era na altura diretor da PIDE, foi até ao 25 de abril desde 1962. E ao Presidente do Conselho, o Professor Marcelo Caetano. Uma exposição em que solicitava / quase exigia a libertação da Apolónia, porque tínhamos uma filha com um ano e ela era o único amparo que tinha. Eu estava na guerra, lá no cu de judas, como dizia o nosso escritor que também esteve na guerra e também fala muito sobre isso, também teve a sua experiência. A minha foi mais prolongada. Portanto estávamos numa situação muito complicada. Os meus pais já eram idosos e achava que por uma questão de justiça e também de direito que a deviam libertar.

Em [19]77 / 78 participei no julgamento como testemunha de acusação do inspetor adjunto da PIDE - DGS como nós chamávamos. Era DGS na altura, mas nós, o povo português, antifascistas, conheciam há tantos anos a PIDE que começaram a chamar à PIDE DGS. Sobretudo porque a DGS não mudou nada em relação ao que era a polícia política e o que era a PIDE. Pelo contrário, acho até que pela parte final antes do 25 de abril refinaram a atuação. O senhor Adelino Tinoco era inspetor adjunto e era o chefe da brigada que me interrogou e torturou em Caxias. Era um mangas de alpaca, vestido com pele de cordeiro - dos poucos que foi julgado apesar de tudo e que tinha estado preso. Teve uma pena de prisão maior, de 4 anos, a maior parte já tinha cumprido. Era no tribunal militar de Santa Clara e as testemunhas de acusação eram os presos que tinham estados ligados à brigada, ao moinho, era como nós chamávamos. Lá em Caxias, moinho era forma como de quatro em quatro horas eles iam substituindo os agentes. O preso é que é sempre o mesmo, eles é que se iam substituindo. O Tinoco ia todos os dias, muito referenciado pelos agentes, com falinhas mansas do tipo: «Nós sabemos, o senhor está aqui a perder tempo. É melhor ir ter com a sua família». Pediu um médico - eu na altura senti-me muito mal, já tinha arritmias e incharam-me os pés, ao fim de não sei quantos dias e pedi assistência médica e o cínico do Tinoco, do Adelino «O senhor diga o que tem a dizer e depois logo o mandamos ao médico».

Curiosamente o Tenente-Coronel que era um militar de carreira, aprumado, fardado - depois tinha mais dois Juízes assessores - estava à frente. Eu estava de perna cruzada, a primeira coisa que fez foi mandar-me, aos berros, descruzar a perna. Eu estava sentado e ao meu lado estava sentado o Tinoco. Duas cadeiras, não tinha separação nenhuma - naquela altura não havia Covid - ao meu lado. Reconheci-o e ele também me reconheceu. Eu tinha estado numa sala próximo, onde estavam os fuzileiros a tomar conta, onde estavam todas as testemunhas que iam sendo chamadas uma a uma. Vindo à porta nós ouvíamos perfeitamente o que é que se passava na sala do tribunal. Antes de eu ser sido chamado, foi chamado um comunista conhecido, antifascista, Blanqui Teixeira, um homem formado em engenharia química. Depois esteve aqui no Barreiro a trabalhar muito tempo, que tinha estado preso muitos anos e um homem que tinha vindo da clandestinidade. Era um alto dirigente, na altura, do Partido Comunista Português. Tinha-me enervado porque a dado altura o Juiz Presidente interrogava as testemunhas como se fossem ainda presos! Nomeadamente porque é que tinha estado na clandestinidade, se tinha ou não tinha documentos falsificados, que falsificação era crime. Estava a interrogar, estava a amesquinhar, no fundo a humilhar as testemunhas de acusação. Eu enervei-me e quando lá cheguei ia em ponto de rebuçado.

O advogado de defesa do PIDE, do Adelino Tinoco, era o Anselmo. O doutor Anselmo fazia as perguntas às testemunhas. Então perguntou-me se tinha estado preso, o que é que tinha [feito] e se tinha a certeza que era aquele o responsável. [Diálogo]: «Está no processo do tribunal, está lá o nome das pessoas, dos agentes e do inspetor, isso não há qualquer dúvida». «Mas o senhor alguma vez lhe bateu, alguma vez o violentou?». «Não vale a pena estarmos aqui a fingir. O senhor esteve lá alguma vez preso?». «Não». «Então se estivesse, devia saber como é que era. É claro que o inspetor não batia. Alguns até bateram, neste caso ele ia lá apenas para aprofundar o trabalho dos outros. Batiam os outros que estavam na vigilância. Portanto este homem é o responsável pela tortura, é o responsável máximo e foi ele que acompanhou e orientou essa violência que eu sofri durante sete dias». O Juiz a seguir pergunta-lhe se ele me conhecia e ele caiu na asneira de dizer que se lembrava de mim: «Eu lembro-me que na altura esteve lá um militar, que tinha vindo das colónias, tinha vindo da guerra. Passou por lá, mas que não foi maltratado». Depois o Juiz perguntou-me a mim, se eu o conhecia. Aí eu falei com voz grossa em relação aos crimes da PIDE - daquele e de muitos outros que ficaram por julgar e por condenar. Neste caso eram muitas testemunhas, eram mais de 30, o Adelino Tinoco foi condenado a quatro anos de prisão maior.

Em 2017 o Barreiro atribuiu-me a medalha ‘Barreiro – reconhecido na área da resistência antifascista e na democracia’. Portanto, vale o que vale, nunca estive muito preocupado em relação a essa distinção, mas creio que vale a pena a passagem pela cadeia, uma experiência traumatizante em relação à tortura e aos métodos que, na altura, a PIDE DGS utilizava e que deverão ser lembrados. E que esses tipos de distinções sirvam também para que isso não se esqueça, para que se possa trazer essas questões à luz do dia. Eu escrevi parte dessas memórias em 2009 num livro que conta isto em pormenor, além de contar também a passagem pela Guerra Colonial. O livro chama-se “Guerra Colonial, a memória maior que o pensamento”. Sendo como pano de fundo a questão da passagem na Guerra, também se conta aqui, em pormenor, a passagem pela prisão porque foi nesse período.

Um episódio em 2010 / 2011 que eu acho interessante também relatar. Fui consultar o meu processo à Torre do Tombo, onde estão depositados os processos individuais. Tive duas surpresas desagradáveis. Uma, que o processo estava aparentemente incompleto, com rasuras e omissões em relação a nomes de vários denunciantes, de gente que tinha estado connosco e que trabalhava para a PIDE. Ou estavam riscados, os nomes, ou faltavam páginas - faltava qualquer coisa para jogar a bota com a perdigota. Eu sei que houve essa preocupação, isso foi anunciado. Que no estudo, no trabalho que foi feito na Torre do Tombo, omitiram determinadas coisas. Mas eu creio que isto é castrar um pouco a verdade, porque isto omite uma parte da história e nós ficamos na dúvida: «Porque é que isto aconteceu? Quem é que denunciou? Quem é que foi? Quem não foi?». Muitas coisas se souberam depois do 25 de abril. No meu caso eu não consultei o meu processo essa altura, não fiquei a saber de nada.

Outra questão interessante é que eu fui lá também com o intuito de pedir um certificado, ia pedir daí a pouco tempo a apresentação da reforma, então pedi um documento que atestasse o tempo de prisão - convencido de que o tempo de prisão contava para a reforma. Curiosamente o documento que me entregaram dizia ipsis verbis: «Condenado a 18 meses de prisão correcional, com 10 anos de perda dos direitos políticos por atividades subversivas contra a segurança do estado». Eu achei aquilo muito interessante, quer dizer: criminoso uma vez, criminoso para a vida toda. Fiquei com o labéu de ter atividades contra a segurança do estado. Isto foi amnistiado, portanto não devia ser escrito nesta forma e creio que hoje já não é assim que isso é feito.

Ainda nessa altura, um outro episódio - está tudo relacionado. Apesar de existir legislação, nomeadamente o decreto de lei 173/74 sobre reintegração na função pública dos que tinham sido afastados por razões políticas; o decreto 180/64, que amnistia os crimes por deserção; o 656/75 que regulariza a situação dos refratários, daqueles que não cumpriram o serviço militar, ou que se afastaram; o 171/77, este é muito interessante, que depois foi revogado por 189/2003, sobre a pensão por méritos excecionais na defesa da liberdade e da democracia. Alguns camaradas da época na altura solicitaram, com todo o direito, e até me telefonaram a chamar à atenção. Eu decidi não fazer isso, porque eu na altura quando fui preso já tinha uma formatura, era agente técnico de engenharia no ensino médio, porque queria uma carreira profissional, mais tarde de licenciatura. Estive no ensino, estive na vida profissional, digamos que adquiri um estatuto que me permite ter uma pensão hoje, acho que não tenho necessidade de recorrer a essa pensão - que de resto é muito complicada. Obriga a ter dez testemunhas, tem que ter uma requisição ao Ministério, antigo, do Interior que é hoje da Administração [Interna], mais ao Ministério das Finanças, depois mete mais um parecer do Presidente da Câmara - uma coisa complicada, acho que demasiado complicada. Acho que o estado devia, que se achasse que as pessoas tinham esse direito, reparar isso. Não são assim tantos, não fazer percorrer esta via-sacra. Entendi que não tinha paciência para isso, embora tivesse provavelmente direito também".