Nome: Eugénio Manuel Pacheco da Costa Ruivo
Ano nascimento: 1953
Local do registo: Algés
Data do registo vídeo: 21-10-2021

Transcrição

"Há todo um conjunto de acontecimentos históricos. Eu vivia na Rua de Entrecampos, em Lisboa. O meu pai era barbeiro. E nós, jovens, andávamos na rua, brincávamos na rua. E em 1959, junto à estátua Peninsular [Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular] de Entrecampos há um fenómeno curioso. Nós íamos brincar para o jardim do Campo Grande e deparamo-nos com uma série de carrinhas da polícia de choque, com cães. E reparei na atual Avenida das Forças Armadas, quando se desce, várias centenas de estudantes a fugirem de um lado para o outro, numa ação da repressão policial contra os estudantes. Havia ali um cordão policial, nós estávamos longe. Ficámos atónitos, sem perceber o que é que se estava a passar. Eis que à noite, em família, tentei abordar o assunto com os meus pais, mas havia um semblante carregado. Penso que o meu pai já teria alguma informação sobre o que tinha acontecido. Este é um dos primeiros elementos históricos que levam assim à preparação da consciência do regime de ditadura em que se vivia.

Depois, o segundo episódio que ocorre. Num dia, eu tinha acabado de concluir o ciclo preparatório na escola Eugénio dos Santos, com o meu irmão. Passado um, dois dias, vejo o semblante dos meus pais, a minha mãe com as lágrimas nos olhos, informarem-nos de que nós iriamos começar a trabalhar - isto com 12 anos. As dificuldades económicas eram imensas. A minha mãe arranjou um trabalho de armação de flores, onde [eu] iria buscar a um determinado armazém essas flores. Obviamente que eu começo a questionar por que razão eu não continuei a estudar, quais eram os motivos? Obviamente que os motivos eram os fatores económicos.

Ao fim desses dois anos começo a trabalhar numa oficina de automóveis, como empregado de balcão, na Electro Rápida - oficina que é a atual Médis, que se situa perto da estatua do António José de Almeida, perto da Casa da Moeda. O comportamento dos adultos, dos meus chefes, era como se nós fossemos um homúnculo, ou seja, um adulto em miniatura. Portanto, as pessoas adultas - não é a questão do ambiente oficinal - era uma relação de uma certa distância. E, por vezes, quando não cumpríamos determinado tipo de tarefas, levávamos alguma pancada por parte deles.

Por outro lado, no 5 de outubro de 1968, estando à porta da oficina, reparei numa grande concentração de pessoas junto à estátua do António José de Almeida. Reparei que algumas pessoas depunham coroas de flores e ouvi estas palavras: «Viva a República!». Senti algum ambiente estranho nas imediações, de pessoas que deviam ser bufos ou da PIDE. As pessoas que saíram dali, gritaram: «Viva à República!», encenaram uma pequena manifestação e há um carregamento da polícia junto dessas pessoas.

Entretanto, pude assistir em Vila Franca de Xira, em 1970 - onde participei numa homenagem a Albina Fernandes, mulher de Octávio Pato, dirigente político do Partido Comunista Português, que se encontrava preso - houve uma ação de solidariedade de várias centenas de pessoas. Nesse dia, saímos dali, fizemos uma pequena manifestação em Vila Franca, que foi reprimida selvaticamente pela polícia de choque. À tarde aqueles que não tinham sido presos [Risos] conseguimos estar com a escritora Maria Lamas, uma oposicionista. Estávamos numa garagem perto da estação de Vila Franca. Ela começou a fazer a sua intervenção e ouvimos um barulho, um estrondo, uns pontapés na porta - era a polícia de choque que tinha cercado toda a zona. Alguns elementos da comissão organizadora da iniciativa conversaram com a polícia e conseguimos sair daquele espaço sem sermos presos.

Estes acontecimentos começam a marcar a minha consciência política.

Em 1968, como aluno do curso de montador eletricista, surge o aumento das chamadas atividades circum-escolares. Ou seja, as designadas propinas. E foi um aumento substancial. Rapidamente os alunos se começam a organizar e a contestar aquela medida do ministério da educação - penso que nessa altura o ministro era o José Hermano Saraiva.

Nessa época começam a gerar-se determinadas contestações em variadíssimas escolas. Há um episódio marcante: nós conseguimos realizar um plenário num ginásio da escola, por volta das 9h da noite. Mas nesse dia, do plenário, eu e o meu irmão não fomos trabalhar. Então arranjámos um lençol da nossa cama, um lençol branco, e durante a manhã fomos escrever: «Lutamos pelos nossos interesses!». Pusemo-lo a secar, enrolámos depois o lençol e levámos para o dito plenário. A reunião inicia-se com uma intervenção no palco por parte do diretor, os alunos estão no ginásio da escola, e o diretor tenta-nos explicar as razões e os motivos do aumento das propinas. Nós, a determinada altura começámos a dizer que não, saímos da escola industrial Afonso Domingos e à porta da escola hasteámos o pano «Lutamos pelos nossos interesses!» - havendo uma grande ovação dos presentes.

Nós tínhamos a informação de que os alunos da Patrícia Prazeres e os alunos da Nuno Gonçalves - que se encontravam ligados à nossa escola, mas os alunos da Patrícia Prazeres eram do comércio. Nós tivemos a informação que aqueles alunos se preparavam para pagar as propinas, para ceder. Daí saímos numa delegação, em direção ao Bairro do Beato e há uma cena extremamente interessante. Há duas senhoras velhotas que vêm à janela: «O que é isto? Isto é a revolução?!» - e aquilo marcou-me! Estamos a falar em 1968. Dali dirigimo-nos à escola Patrícia Prazeres, onde [com] algumas dezenas de alunos da delegação da Afonso Domingos conseguimos entabular conversação com os nossos colegas, com o firme propósito de que eles não iriam ceder. Depois dali dirigimo-nos à escola Nuno Gonçalves, entramos dentro da escola - algumas dezenas de alunos - e um contínuo da escola propositadamente parte alguns vidros numa das portas que dava para o campo exterior, onde se jogava futebol no espaço da escola. Então chamam a polícia de choque. A polícia vem, nós corremos, fugimos dali. À meia-noite eu vejo-me numa delegação de alunos na Praça Paiva Couceiro a delinear estratégias do que é que nós deveríamos fazer a seguir.

Em 1969, sensivelmente próximo de outubro, o meu pai leva-me, mais o meu irmão, à sede da Comissão Democrática Eleitoral, no Campo Pequeno. Ou seja, quando o Salazar cai da cadeira em 1968 há a chamada Primavera Marcelista. Entretanto a PIDE deixa de ser PIDE, passa para Direção Geral de Segurança - no entanto os métodos, as prisões, a repressão continua. Essa fachada eleitoral em 1969 - concorrência das eleições para a Assembleia Nacional - onde concorre também a Comissão Eleitoral Unida Democrática [CEUD] e a chamada Comissão Democrática Eleitoral [CDE].

O meu pai levou-me à sede da CDE e eis que quando começo a subir as escadas, vejo uma série de pessoas, vejo um comunicado da CDE dirigido à população da cidade de Lisboa, só consegui ler metade do A4. Entro na sede da CDE. Vejo jovens, pessoas de vários sítios. E começo-me a aperceber um determinado tipo de conversa que não era normal na sociedade. Começo a conhecer várias pessoas - a Maria Eugénia Varela Gomes, o Jorge Sampaio, João Gaspar Teixeira, o Pinto Bandeira, Joaquim Mestre, a Cecília Areosa Feio, etc. Posteriormente dá-se a criação do chamado Movimento da Juventude Democrática, que era uma estrutura juvenil, onde englobava jovens trabalhadores, jovens trabalhadores-estudantes e jovens estudantes. O movimento alarga-se, cria-se uma comissão ligada ao movimento sindical, uma comissão ligada ao trabalho das escolas e ligado às empresas.

Entretanto eu começo a escrever uns textos sobre sindicalismo. E é interessante que começa a haver uma ascensão do movimento sindical, onde várias direções sindicais começam a ser tomadas por trabalhadores que não se reviam no regime, na altura. O sindicato dos bancários, o sindicato dos escritórios, o sindicato dos caixeiros, o sindicato dos metalúrgicos, o sindicato dos técnicos de desenho, o sindicato dos eletricistas - no qual eu, em determinada altura, me vejo também envolvido com colegas do meu trabalho, em reuniões do sindicato dos eletricistas a discutir os contratos coletivos de trabalho.

Relativamente à situação do Movimento da Juventude Democrática, nos finais de 1970, elaborámos um documento de revisão à constituição. Então constituímos várias brigadas na zona oriental de Lisboa para proceder à sua distribuição. E é na Mata do Bairro da Madre de Deus que nós combinámos às 9 horas. Então de diferentes brigadas, com o responsável das brigadas, assim delineamos a distribuição desses documentos, em brigadas de três jovens, desses documentos em toda a zona oriental de Lisboa até Marvila. À meia-noite encontrámo-nos novamente na Mata do Madre de Deus para fazer o ponto da situação e há um jovem responsável de uma das brigadas que faltou. Faltou, ficámos um bocado preocupados com o que é que se tinha passado - tivemos a informação que dois jovens que se encontravam numa daquelas vilas operárias com caixas do correio, a distribuir o respetivo documento, a dada altura surge um guarda noturno. Os jovens não tiveram lucidez - aliás, o responsável já tinha acabado a sua tarefa não se manteve no grupo, abandonou o grupo - eles não tiveram destreza de fugir. O guarda noturno leu parte do comunicado e apercebeu-se que era conteúdo contra o regime, contra o presidente. Então, a certa altura, saca da pistola, prende-os e leva-os para a esquadra do Beato. A partir daqui começam a ocorrer um conjunto de prisões - o Lino de Carvalho, que foi deputado da Assembleia da República, o Cipriano Dourado, o engenheiro Fonseca Ferreira que trabalhava no Laboratório Nacional de Engenharia Civil, o campeão, o José Manuel Veríssimo, que foi preso, o Raimundo Santos, foi preso, o Fernando Gomes e outros elementos são presos.

Eu sou o último a ser preso. Aliás, eu tive a perceção, pela informação que me ia chegando. Falei com os meus pais, pedi ao meu pai para me guardar um conjunto de livros e até tinha dois rolos de fotografias - um rolo de fotografias daquele episódio da Maria Lamas em Vila Franca de Xira, que eu tinha guardado comigo - e algumas publicações. Pedi ao meu pai para me guardar, porque tive a perceção de que ia ser preso. E tomei a decisão: «Eu não vou fugir do país». Exatamente uma semana antes de ser preso vou ao escritório do Dr. Jorge Sampaio, que funcionava ali na Rua Duque de Palmela, perto do Marquês de Pombal e então contei-lhe o que é que se estava a passar. Ele rapidamente me diz: «Olha, Eugénio, tens aqui um escrito que depois passas para uma folha de papel de 25 ou 35 linhas, papel azul, e fazemos uma procuração. Se a tua prisão ocorrer serve para eu ser teu advogado».

No dia 27 de janeiro de 1971, pelas 10 horas da manhã, estava a falar com o chefe dos torneiros mecânicos, o Miranda, sobre a guerra colonial. E eis que alguns colegas meus [dizem]: «Eugénio! Estão à tua procura!». Eu, conscientemente, digo assim: «Já está!». Dirigi-me ao local da minha secção de eletricidade, perto da bancada das ferramentas e vejo uns elementos estranhos. Estava o chefe da oficina, que era o Feliz, o meu chefe que era oficial, o Marques, o sub-responsável da oficina que era o Fortuna. E vejo quatro pessoas estranhas - eram elementos da PIDE. Rapidamente dirigem-se para mim e dizem-me: «Como é que você se chama?» e obrigam-me a abrir a gaveta das ferramentas, que tinha um livro de fundamentos de economia política, uns textos de sindicalismo que eu estava a escrever para serem publicados no boletim do Movimento da Juventude Democrática e a procuração dirigida ao Jorge Sampaio. «Ai então você já sabia que ia ser preso?» - é a expressão da PIDE.

Dali colocam-me dentro de um carro preto, com dois PIDEs ao lado, o motorista e um PIDE à frente. E dali começam os empurrões e as provocações, antes de chegar à sede da PIDE, na António Maria Cardoso.

Cheguei à sede da PIDE, na António Maria Cardoso. Sou colocado numa sala de interrogatório e começam imediatamente as perguntas, os encontrões. Passado uma hora fazem-me uma acareação com um estudante da escola industrial Fonseca Benevides. Era o único estudante e era a única pessoa que sabia onde é que eu trabalhava. Fazem-me a acareação: «Você conhece este senhor aqui?» - eu disse imediatamente que não. Sou levado novamente para a sala de interrogatório e começam o processo das torturas físicas e psicológicas. Os espancamentos, com esta expressão: «Não vale a pena você estar a negar. Nós sabemos 90% das suas atividades, portanto faltam apenas 10%».

Os PIDEs são substituídos de três em três horas. A dada altura um dos PIDEs coloca-me um bloco de notas em cima da mesa, para a dizer: «Não vale a pena você estar a negar. Você escreve aqui as suas atividades, ninguém sabe e depois é libertado». O silêncio. O silêncio. O silêncio. Até, sensivelmente, à meia-noite, [quando] sou transferido novamente através de um carro celular para a cadeia do Forte de Caxias.

Passado dois dias, estava a jantar. Eu estava virado para o lado das traseiras, não para o lado de Monsanto, mas para as traseiras. Sensivelmente por volta das seis e meia, o guarda prisional abre o postigo da cela e diz-me assim: «Prepare-se para ir à polícia!». E eu pensei: «Bom, agora elas vão doer».

Vou para a António Maria Cardoso. Os interrogatórios continuam, os espancamentos iniciam-se novamente. Eis que ao fim de estar prostrado no chão, do lado direito, na porta, surge-me o subinspetor Tinoco. Os interrogatórios eram comandados pelo chefe de brigada Santos Costa. Entretanto surge-me o subinspetor Tinoco com as mãos na cabeça: «Então o que é que lhe aconteceu? Você é do Benfica ou do Sporting? Ai a sua mãe está tão doente... você pode resolver rapidamente a situação». Este processo continua de tal forma que tive uma crise nervosa. Fiquei inconsciente, não sei o que é que se passou. Sei que sou levado para uma sala na António Maria Cardoso.

Ao fim de várias horas, não sei de quanto tempo, por volta das quatro da manhã, já na cadeia do Forte de Caxias, abro os olhos, semicerrados, e vejo dois PIDEs na cela de isolamento e o chefe dos enfermeiros. De repente os membros superiores se começam a torcer neste movimento que eu estou aqui a executar [torce os braços]. Esta situação leva a uma agitação imediata do chefe dos enfermeiros. Sei que levo uma injeção e daí só me lembro de acordar numa cela de regime normal - não sei por onde é que andei - com os dois primeiros jovens que tinham sido presos pela PIDE. Ao fim de dez dias, o guarda prisional [diz]: «Prepare-se para sair!». Sou levado num carro celular em direção à António Maria Cardoso, quase que não podia andar. Daí sou libertado com uma caução de três contos. Os meus pais vêm-me buscar. Não podia, praticamente, andar. Saí com uma caução de três contos.

Ao fim de dois meses, dois meses e meio, em março, por decisão do tribunal plenário, a caução é-me aumentada: passa de três, para 30 mil escudos.

Em 20 de novembro de 1971, sou de novo preso em casa, onde sou enviado para Caxias. Aliás os interrogatórios já não eram feitos na António Maria Cardoso, mas eram feitos já no Reduto Sul do Forte de Caxias. O chefe de brigada Santos Costa, com um objeto em cima de uma mesa diz assim: «Então, cá estamos! Você agora não vai sair daqui tão depressa!». E, de repente, afasta aquele objeto e aquele objeto cai. Aquilo era tipo carga plástica - tinha havido alguns rebentamentos. Tinha havido um rebentamento na escola prática da PIDE, salvo erro, da Ação Revolucionária Armada. No Centro Cultural da Embaixada dos Estados Unidos, na Avenida Duque Loulé; um atentado no navio Cunene; na Rádio Marconi, etc. Então [dizia]: «Então você é um dos autores..!» - esta conversa continua.

Dali vou para a cadeia de Caxias. Onde vou-me encontrar com companheiros e camaradas que estavam presos em celas de regime normal.

A prisão dura entre 20 de novembro de 1971 até ao dia 15 [de junho de 1972]. Entretanto eu venho a conhecer o José Pedro Soares - preso na cadeia. O José Pedro Soares tinha estado 20 e tal dias na tortura do sono. Eu vi as marcas dos espancamentos que ele tinha levado nas pernas, as cicatrizes nas costas, inclusivamente uma camisa branca que ele tinha ficou colada ao corpo dos maus-tratos que a PIDE lhe tinha infligido. Isto marcou-me profundamente. O José Pedro Soares também estava com o Fernando Rosas, com o Diogo Velez, com o João Camilo, com o Aureliano que era estivador, com o Raimundo, um dos meus colegas, que tinha sido preso e que estava ligado ao meu processo. Conheço vária gente. Então há aqui uma faceta interessante que tem a ver com a organização da vida dos presos enquanto cela da prisão.

Poderei dizer que foi a primeira vez que aprendi a jogar xadrez. [Foi] onde fiz o aprofundamento dos meus estudos em História, em Matemática - cada um dos presos que tinha a sua experiência e a sua formação, nós organizávamo-nos com sessões de explicações, passo a expressão. Isto foi um elemento importante do ponto de vista do trabalho e da organização coletiva da cadeia. Fazíamos vários campeonatos relativamente aos jogos de xadrez.

Sou libertado em 15 de Junho de 1972, prisão remível a dinheiro - 15 escudos diários. Vinte meses de prisão remível a dinheiro. Entretanto conseguiu-se solidariedade e então sou libertado.

No dia 1º de maio de 1973 sou novamente preso. Eu, o meu irmão e o meu pai. O meu irmão é apanhado nas traseiras do quintal, pela PIDE, com uma pistola. A minha mãe lavada em lágrimas. Somos colocados em carros da PIDE e dali fomos para o Reduto Sul do Forte de Caxias. Somos interrogados várias vezes, durante vários dias.

Eu vou para uma sala de interrogatório e estava o Vítor Agostinho, que é um dos dirigentes da Voz do Operário. Estava na sala do interrogatório. Eu conhecia-o - fingi que não o conhecia, obviamente. Entretanto o PIDE ausentou-se por breves momentos da sala e rapidamente o Vítor coloca as mãos em concha e eu coloco um pé lá em cima - porque no topo da parede havia um objeto estranho. Levantámos aquele objeto e o que é que nós descobrimos? Descobrimos um microgravador, que estava envolvido numa esponja. «Olha isto. Estás a ver? Eles gravam tudo aquilo que se passa aqui dentro». Então - eu aqui faço um parenteses - 15 dias após o 25 de abril pude ver a sala dos gravadores e então tive consciência de que a sala dos gravadores estava diretamente ligada com cada uma das salas dos interrogatórios.

Entretanto, há um episódio muito interessante que ocorre numa sala de interrogatório, ainda em 1973. Estava eu a comer e eis que olho para uma colher e começo a observar a colher. A colher era uma colher diferente de todas as colheres que eu alguma vez tinha visto. Essa colher estava escrita, escrita! Dizia: «Coragem. Firmeza. Resiste. Não fales». Isto em letras tão pequeninas. Isso, de facto, encheu-me de uma grande alegria e de uma grande coragem. Este facto desta colher foi marcante.

O meu pai é libertado ao fim de 15 dias. O meu irmão teve a tortura do sono [durante] quatro dias e três noites - não falou, como eu e como outros companheiros. Eu e o meu irmão somos libertados ao fim de 27 dias.

Volto à prisão a última vez no dia 6 de abril de 1974, durante a tarde. Estava juntamente com cerca de 43 companheiros, rapazes, raparigas, numa reunião da oposição na chamada Cooperativa Forja - que era uma cooperativa de livros que estava em formação, situada próximo do cemitério de Benfica. Próximo das 3h sensivelmente, 3:30 h da tarde, batem à porta de uma forma violenta e então deparámo-nos com várias carrinhas da polícia. Com o Capitão Pereira a dizer que não era o Capitão Maltês - que era o famigerado comandante da polícia de choque. «Eu não sou o Capitão Maltês!». Entretanto somos presos. Dali fomos enviados para o Governo Civil. E há um episódio muito interessante que ocorre durante o nosso trajeto para o Governo Civil.

Próximo da pastelaria Riviera, em Benfica, na parte lateral do Jardim Zoológico, eu vejo o jornalista José João Louro - muito amigo. E o jornalista, que salvo erro, era jornalista do Diário de Lisboa na altura, olha e fica espantado, porque começa a ver pessoas conhecidas. E eu faço um pequeno sinal. Passando as carrinhas da polícia, ele dá uma volta e rapidamente corre em direção a Sete Rios e vai fazer alguns telefonemas. Quando nós chegamos ao Governo Civil há já uma pessoa ou duas da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos que se apercebeu, por informações do João José Louro, o que é que se estava a passar. Então começam a questionar o que é que estava a ocorrer.

No Governo Civil somos separados - rapazes para um lado, raparigas para o outro. Dali somos enviados diretamente para Caxias, onde chegámos sensivelmente por volta da meia-noite. Quando entrámos dentro da cadeia, do lado esquerdo, entrámos num túnel e dali vamos para umas casamatas, que não eram utilizadas desde os anos 60. Uma coisa indescritível. Descemos umas escadas e entrámos em duas grandes salas. Com tarimbas, com cobertor. E deparámo-nos com um ar pouco respirável, a água escorria pelas paredes, com uma humidade brutal. O Ruben de Carvalho e o Ezequiel, que sofriam de asma, tinham dificuldades em respirar. Eles tinham que de meia em meia hora pedir ao guarda prisional para se dirigirem próximo das grades para poderem respirar.

Permanecemos durante alguns dias naquela situação e então começaram-nos a separar. A dada altura sou enviado para uma cela, daquelas de regime normal, onde estão três presos: o Ruben de Carvalho, mais dois presos que eu não conhecia. A dada altura, próximo das grades, o Ruben de Carvalho diz-me em voz baixa: «Não fales. Resiste». E foi extremamente importante e significativo estas palavras que eles nos disseram.

 Dali sou levado para uma cela de isolamento onde está um dirigente associativo - o Pedro Ferreira, de económicas. Nós, rapidamente, para quebrar o isolamento, porque ouvíamos vários passos no teto [dissemos]: «Olha, vamos tentar falar com quem está aqui», porque tínhamos a perceção que seriam as mulheres que na hora do recreio andavam ali a passear. Então combinámos a seguinte situação: com um pau de vassoura, na casa de banho, tentar contactar com as presas que estavam em cima. E ficava um de fora da casa de banho para vigiar qualquer movimento esquisito do guarda prisional. Assim começa a ocorrer a nossa conversação com uma rapariga chamada Fátima - que também foi libertada no dia 27 de abril à meia-noite. E então começámos a saber de uma série de prisões.

Ao lado da minha cela conseguimos saber quem é que estava preso - o Pedro Fernandes, que posteriormente ao 25 de abril veio a ser o Presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Torres Vedras - e do outro lado o escritor Mário Ventura Henriques, que veio depois a ser o diretor do Diário Popular.

O Pedro Ferreira é libertado no dia 23. E no dia 24 de abril vejo um semblante esquisito. E no dia 25 de abril ainda mais.

No dia 25 de abril o guarda prisional abre o postigo e diz-me o seguinte: «Você não vai ter o recreio». Entretanto, eu como estava virado para Monsanto, apercebo-me do movimento ininterrupto de PIDEs a andarem de um lado para o outro e eu achei aquilo estranho. Deitei-me. No dia 25 de abril eu não me apercebi - quer dizer, apercebi-me que havia qualquer coisa - do que se estava a passar no país. Por volta das quatro da manhã oiço um grito dado por um preso que estava em regime normal. Eu não me apercebi o que é que se tinha passado, não consegui perceber. Já não dormi e assim me mantive. Por volta das sete da manhã sento-me numa cadeira, no topo. Estava virado para o lado de Monsanto e do lado esquerdo começo a reparar [n]uns pontos negros.

Acho estranho, porque já não era a GNR que guardava a prisão. Era um corpo de paraquedistas, que depois mais tarde, vim a saber que era o comandante Marques Serra. Esses pontos negros começam a aumentar - e eu acho estranho, [penso]: «Mas o que é que se está a passar?!». Isto é indescritível – nós… aperceber de que algo estava a acontecer. Nós ficámos numa grande tensão - já no dia 25 havia uma grande tensão no ar, não sabia o que é que se estava a passar. Então esses pontos negros começam a aumentar, a aumentar. Eis que, sensivelmente por volta das nove e meia eu oiço do exterior da cadeia o som dum cláxon de um automóvel. Começo a perceber que era uma mensagem que estava a ser transmitida, que depois mais tarde vim a saber que tinha sido esse meu companheiro de prisão - o Pedro Ferreira - que do seu cláxon do automóvel no exterior da cadeia estava a comunicar para dentro da cadeia. Então apercebemo-nos que tinha havido um golpe.

Estes pontos negros começam a aumentar, a aumentar e por volta das dez da manhã olho para baixo e então vejo uma delegação de advogados, de elementos da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, o Jorge Sampaio, o Francisco Sousa Tavares, o Miguel Sousa Tavares, o advogado Manuel João da Palma Carlos, a Maria Eugénia Varela Gomes, a Cecília Areosa Feio, o José Francisco, aquele meu amigo José João Louro, jornalista que também estava nessa delegação e que nos tinha visto sermos presos no dia seis de abril, perto da sua casa, em Benfica, o Joaquim Mestre, o José Cardoso Pires, a Maria Sophia de Mello Breyner - a escritora. Há aqui um momento de grande explosão. Alguma coisa estava a acontecer. Então começa a haver gritos de presos, da prisão.

A dada altura, creio que o Comandante Xavier, delegado da Junta de Salvação Nacional, abre o postigo da cela de isolamento e pergunta-me como é que eu me chamava e do que é que eu era acusado. Disse-lhe o meu nome, Eugénio Ruivo, e que era acusado de ser membro do Partido Comunista Português. Abre a porta e começa a abrir as outras portas - e eu começo a ver outros companheiros. Há uma situação que me marca. Há um preso, alto, forte, que depois mais tarde vim a saber que era o José Carlos de Almeida, ex-funcionário do PCP - estava em tortura do sono há quatro dias, tinha sido preso no Porto. Não diz quem era, do que é que era acusado - e manteve a sua postura até à libertação, porque ele não sabia exatamente o que é que estava a acontecer.

Vamos para o hall da prisão. Os abraços... Abraço o Álvaro Pato [Comove-se] o João Pedro, o Pedro Fernandes - que vejo o José João Louro a correr para ele, a abraçá-lo. A Elvira Nereu, a Helena Neves. E muitos outros presos. O Vítor Dias, o Manso Pinheiro, o Fernando Correia. Foi uma explosão de grande alegria.

A dada altura o Comandante Xavier - estávamos todos reunidos - dá a informação de que tinha havido um golpe de estado. De que era Spínola que estava à frente das coisas. Mas alguém acha esquisito este desenvolvimento. Ele dá-nos a informação e, de repente, há uma ordem do General Spínola dizendo que nem todos os presos iriam ser libertados. Então regressámos novamente à cela da prisão. Aqui gritávamos pelas grades a exigir a nossa libertação. Ouvíamos, do exterior, milhares de pessoas que exigiam a imediata libertação de todos os presos políticos.

Há um grande período de tensão. O porquê do recuar, o porquê não sermos imediatamente libertados? Por volta das três, quatro horas de novo sou libertado da cela de isolamento. Os presos que se encontravam nas celas de isolamento começámos a conversar sobre aquilo que se estava a passar. Obviamente há grandes interrogações. Ao fim da tarde tomámos uma posição. Creio que havia contactos com os presos políticos que se encontravam em Peniche, onde alguns oficiais do Movimento das Forças Armadas ligados à Força Aérea e ao Corpo de Fuzileiros - creio que o Corpo e Fuzileiros era comandado pelo Comandante Xavier, era um outro corpo que fazia guarda à cadeia. Havia os paraquedistas e havia o Corpo de Fuzileiros. De vez em quando as informações vêm nos sendo transmitidas e tomámos a posição inequívoca: ou saem todos, ou não sai ninguém.

À meia-noite começámos a sair da prisão. Corro em direção ao meu pai, à minha mãe. Vejo a Helena Pato, vejo o Orlando Pauleta, vejo o José Francisco e vejo a Maria Eugénia Varela Gomes, a Cecília Areosa Feio - que estiveram no processo de negociação para exigir a nossa libertação aquando da delegação que reuniu juntamente com os responsáveis da prisão.

É indescritível todo o ambiente e todo o clima que nós vimos no exterior. Dali fui até ao Rossio e vi as milhares de pessoas [Comove-se] na rua. Foi uma alegria impressionante, ver todo aquele povo na rua. Foi de um grande clima e de uma grande solidariedade - e lembrei-me de todos os ex-presos políticos, que pelas cadeias e que por este país não tiveram a oportunidade de ver o seu trabalho, que fizeram… uns na clandestinidade, outros na prisão, outros organizados em várias vertentes".