Nome: Óscar Manuel Martins Romualdo
Ano nascimento: 1954
Local do registo: Algés
Data do registo vídeo: 06-10-2021

Transcrição

"Fui detido com 18 anos. Dezoito. Fiz os 19 na cadeia, faço os 19 em janeiro e depois saí em agosto. Portanto foi ali a meio, mais ou menos. Era um rapazinho muito jovem, cheio de boas vontades, cheio de energia. Queria fazer coisas. E as pessoas sabem que, de uma maneira geral isso é sabido, que um jovem de 18 anos não morre e nada lhe acontece. E, portanto, eu tinha 18 anos e não morria e nada me acontecia, não é?

O meu comportamento era mesmo esse. O meu e de rapaziada com quem eu me entendia e me dava. Tudo gente revoltada, tudo gente a querer fazer coisas, mas que não tinha aquele mínimo. Há aquele mínimo de respeito pelas tais regras conspirativas, não é? Que efetivamente, não se teve esse respeito. E pronto, depois pagou-se daquela maneira, como não podia deixar de ser. Isto é uma avaliação que é feita já mais para a frente - não agora - mas já muito mais para a frente percebo então que houve uma série de asneirada que foi feito e depois deu no que deu.

Eu queria realmente participar, fazer coisas, queria. Eu e os outros, não é? Posso adiantar que no meu processo estavam oito. Tirando o... eu estou a separar um que é o controleiro, não é? Que esse teve, tanto quanto eu percebi, hoje já não me recordo bem, mas eu penso que ele teve um processo à parte. Portanto, nós oito, era um bocado ali digamos, tipo ratos. Fomos apanhados todos juntos e por isso aquilo vai tudo pra dentro da cadeia. [Risos] E o outro também, o outro companheiro também.

Este meu sentir tem uma origem familiar. Eu fui criado com os meus avós maternos e havia um sentimento da parte do meu avô, digamos o homem da família - a minha referência de homem. Era um homem que não tinha formação, lia pouco, mas tinha um sentimento. E esse sentimento (...?) ele passou-mo a mim. Que era um sentimento... eu vou dizer desta maneira, para se perceber: anti-padres. Já a minha avó, a senhora que me criou também, era uma mulher temente a Deus e enfim, toda a vida dela eu lhe conheci essa devoção. Mas ele, até porque eu era jovem e interrogava-o muitas vezes e fui sempre uma pessoa que, enfim, convivi sempre com um ponto de interrogação à frente no Mundo que me rodeava. Fazia perguntas a mim próprio e às vezes não encontrava respostas, outras vezes encontrava, outras vezes perguntava - tinha essa curiosidade. E, portanto, esse meu avô de alguma maneira marcou-me com essa coisa dos Padres. Sem que ele soubesse explicar e eu também não conseguia muito bem entender, percebia que o Padre ali tinha uma função qualquer estranha que eu não entendia. Essa é uma particularidade.

A outra particularidade, a história que se contava era: o meu pai tinha uma tia, que eu conheci ainda, a minha tia Madalena - tia do meu pai, minha tia em segundo grau. Dessa tia Madalena, a história que se contava dela, que era uma história muito curiosa era que ela - como se dizia nesse tempo - casou bem. Era gente muito humilde, casou com alguém ligado ao Direito. Não sei se era advogado, se era solicitador - tinha uma função (...) que para a altura era uma função, enfim, com algum destaque. Tiveram dois filhos. Um chamado Óscar e outro chamado João. O Óscar não conheci, por razões que vou dizer a seguir, e o João ainda conheci - não sei se ainda é vivo, penso que não, já era pessoa com idade para a frente, não é? E então acontece o seguinte: o marido dela, esse senhor advogado ou ligado às leis, era uma pessoa contestatária do sistema, de tal maneira que ousou. Ousou afrontar o sistema que estava montado na altura - o Salazarismo. E ele, como muitos, teve azar. Foi preso. O filho dele, o mais velho, acompanhou-o. E, portanto, acompanhou-o, foi preso também. Na cadeia, tanto quanto sei, não foram bem tratados, antes pelo contrário. Isto é um eufemismo. Foram maltratados, francamente maltratados. A ponto de a polícia, a PIDE, os soltar já muito debilitados porque se perspetivava o seu falecimento e foi isso que veio a acontecer. Portanto, tanto o pai como o filho vieram para casa. Primeiro morreu o filho, depois morreu o pai. É assim que a história me é contada na família.

Como disse, o filho mais velho chamava-se Óscar. Eu não era vivo ainda, ainda cá não estava nessa altura - eu apareço mais tarde. E quando apareço mais tarde, um pouco em jeito de homenagem, esse nome é-me dado em homenagem a esse Óscar. E, portanto, esta coisa foi, digamos, uma qualquer coisa que sempre me acompanhou a vida inteira. Eu nunca gostei do meu nome, se querem saber mesmo. Não posso dizer que detesto, não é o caso. Mas nunca gostei do meu nome - gostava de um Filipe, de um João, de um José - Óscar nunca gostei. Mas digo logo a seguir: não trocava o meu nome por nada, tendo eu esta história de família.

E, portanto, é aí um pouco que eu vou buscar os meus sentimentos remotos para aquilo que eu... para o caminho que eu escolhi para mim. Mantive sempre uma desconfiança em relação ao sistema, como digo, embora miúdo. Um miúdo, enfim, é miúdo - não sabe muito bem o que quer, não é? E eu também não sabia o que queria, mas o sentimento acompanhava-me. Um sentimento de repulsa.

Eu comecei a trabalhar com 14 anos na antiga Fábrica Militar de Braço Prata, ali na zona do Poço do Bispo, e lembro-me com 14 anos eu - mas isto enfim, vale o que vale - eu dentro da empresa afrontava o sistema. Não estava ligado ainda a nada. (...) Nós tínhamos um regime lá dentro - nós aprendizes, eu era aprendiz. Entrei como aprendiz e depois saí como aprendiz. Lembro-me que havia um regime lá dentro que era: Às oito horas quando entrávamos, hora normal de pegar ao serviço, tínhamos cerca de uma hora de atividade, vamos dizer assim, cultural ou desportiva e também - se quiserem, enfim, direi assim, se calhar não digo bem, mas dá pra perceber - militar. Militar no sentido de marchar. Porquê? Tudo aquilo era feito no âmbito da Mocidade Portuguesa e, portanto, vestíamos a farda, andamos lá a marchar (a certa o passo?). E depois tínhamos atividade física e atividade cultural. E lembro-me que quem controlava a Mocidade Portuguesa nessa fábrica, na Material de Guerra em Braço Prata, quem era, digamos, a pessoa que dirigia superiormente aquela miudagem que andava lá, era um senhor Capitão Gambua. Pessoa que nunca me fez mal, nada. Mas havia uma coisa que ele me embirrava. Ele era Capitão, portanto, era militar, portanto embirrava que tinha o cabelo comprido. Agora não tenho nenhum, não é? Na altura tinha. [Risos] Cabelo comprido, deixava crescer o cabelo. E ele embirrava com o cabelo comprido, um pouco ao jeito militar, não é? E eu fazia-lhe frente, respondendo-lhe e deixando estar o cabelo comprido. Eu via naquilo uma forma também de dizer que não. Era uma manifestação de recusa. Claro, depois mais tarde eles vieram a perceber isto tudo. (...) Para além de estar ligado, isto mais tarde, estar ligado ao Partido Comunista Português, havia antes disso já um sentimento que me acompanhava e que me norteava um bocado os comportamentos. Eu começo a ter esse ativismo antes de estar ligado ao Partido Comunista, antes.

Na Rua Duque de Ávila, quem vem do Saldanha entra ali na Rua Duque de Ávila. Quem desce a caminho do Campo Grande, logo à esquerda, havia aí um prédio onde funcionava um núcleo que eu nunca consegui perceber muito bem aquele núcleo. Mas, era um núcleo que eu comecei a frequentar. Já não sei... penso que foi um colega meu de trabalho, um aprendiz também, que me terá comunicado que ali nesse sítio - depois eu fui descobri-lo, fui lá saber, não é? Isto com 16 / 17 anos - não é muito normal isto. Independentemente da consciência que acho que se calhar não tinha muita, eu tinha era vontade de fazer coisas. Então nessa rua havia um prédio logo ali à entrada, como estava a dizer, penso que era num 2º ou num 3º andar que funcionava um núcleo de resistência. Digo eu assim, não me lembro como é que se chamava - francamente não me recordo. Eu aí tive oportunidade de conhecer figuras que mais tarde - já pós 25 de abril - com grande visibilidade. Aquilo é um núcleo que depois veio de alguma maneira também... toda aquela gente tinha tudo a ver com o atual PS, Partido Socialista, não é? Portanto, eu não tinha, não sabia na altura - eu nem sabia da existência do Partido Comunista, depois é que fui contactado - mas percebia que ali era um núcleo de resistência, não é? Que a polícia volta e meia invadia aquilo. Eu já tinha essa informação, mesmo miúdo, enfim, 'tava um bocado à defesa com isso. Lembro-me do Doutor Magalhães Godinho, é uma figura, não sei se o conhece - conheceu, que já faleceu. Estou-me a lembrar de um Pedro Coelho. Doutor Magalhães Godinho é uma figura com grande visibilidade, uma espécie de patriarca do Partido Socialista, tirando a figura maior que era o Mário Soares, não é? Era uma figura muito respeitada. Lembro-me do Marcelo Curto, o advogado que trabalhava muito no sector das leis do trabalho. Lembro-me do Jaime Gama. O Jaime Gama era estudante na altura! Bom e aparecia lá mais gente, que eu agora não recordo. Lembro-me destes que foram as figuras que retive (...). E então todos os sábados havia lá um colóquio. Um colóquio em que se tratava um tema, sempre no âmbito político. E, portanto, aquilo chateava a PIDE e a PIDE volta e meia fazia lá incursões. Isso eu sei. Nunca a vi lá, a PIDE, nunca a vi, mas não é difícil de imaginar que a PIDE lá ia, não é? Tratando-se de quem se trata e tratando-se das figuras que lá estavam, que depois eu percebi melhor, mais tarde. Mais tarde percebi essa coisa toda um bocadinho melhor.

E, portanto, essa foi a minha primeira busca. A minha primeira busca. Eu não diria que me sentia mal, senti-me muito bem ali. Tudo o que fosse afrontar o sistema para mim estava bem. E ali sentia-me muito bem. E de tal maneira me sentia bem que a minha frequência era assídua. A partir de determinado momento era assíduo. Assíduo no sentido em que todos os sábados lá ia. Todos os sábados havia aquilo. A ponto do próprio Doutor Magalhães Godinho de alguma maneira - ele devia achar piada, um rapaz tão jovem ali de modo próprio. A não ser que ele desconfiasse de alguma coisa, porque havia sempre o lado da desconfiança, não é? - «Quem é este fulano? Vem a mando de quem?». Portanto a PIDE 'tava em todo o lado, não é? Eu nunca percebi que fosse assim. E penso até em determinado momento o próprio Doutor Magalhães me adotou. E fiquei ali, uma figura enfim - que ele me tratava com algum carinho. Não me recordo nunca de ele me ter passado a mão pela cabeça, que ele era um pouco mais baixo que eu. [Risos] Eu já nessa altura era assim um bocado encorpado. E pronto, foi uma figura com quem eu tive sempre uma - enquanto lá estive - relação de respeito, de muito respeito, porque percebi que era uma figura perseguida. E isso percebia-se bem. Mas não era só ele, não é? Ele era a figura talvez central.

E então depois há um momento em que sou abordado pelo Luís Pais com muito jeitinho, enfim, como estas coisas se fazem sempre. Ele, um jovem como eu - ele é mais velho que eu dois anos. Eu na altura tinha 18, ele teria 20 eventualmente. Portanto eu devo ter sido aliciado aí em abril, mais coisa menos coisa. Portanto eu tinha 3 meses de partido quando fui preso. Três meses. Ora, tirando o meu ativismo e tirando a minha vontade de fazer coisas, eu não tinha mais nada. Não tive tempo para ganhar aquela bagagem que nos dá aquela sustentação do saber para onde vou e o que quero, não é?

Havia encontros com o funcionário clandestino, isto é corrente. E depois durante esse período houve realmente atividade. Houve uma forte atividade - eu participei fortemente em atividades, juntamente com os outros - mas de uma forma despreocupada. Do género de levantar às 3 da manhã para ir pôr vinhetas e papéis na estação do comboio, que as pessoas de manhã iam e apanhavam aquilo - os que apanhavam, que as pessoas tinham medo, não é? Fazendo inscrições nas paredes. Era estudante noturno e lembro-me de ter entrado eu, mais um grupo da Afonso Domingues à noite - à noite, mas à noite, de madrugada vamos dizer assim - e fazia lá umas pichagens. Depois falava-se muito no nitrato de prata, que aquilo não saia. Quer dizer, picava-se o nitrato de prata, não é? Saia o nitrato de prata, mas depois ficava lá a picada, a frase ficava na mesma. [Risos] E pronto, aquilo era tudo um gozo pegado. Sabia que podia ser preso e se calhar tinha noção, eu nem sei bem dizer sabe? Mas tudo aquilo era visto de uma forma desportiva. O que interessa é fazer coisas! Fazer, fazer, fazer.

Lembro-me que numa dessas vezes, ali em Marvila, o guarda noturno - que hoje já se vê pouco, nessa altura havia - assobia, mete o apito na boca e começa a apitar e a malta toda a abrir, porque (...) quando o guarda noturno apitava a polícia vinha, não é? E nós fugimos todos. E ali não havia só material de pichagem, havia também (...) Avantes, não é? Já não sei a que propósito é que levámos aquilo, mas levei. E fomos a correr, fomos para Moscavide - eramos de Moscavide, todos. Chegámos a Moscavide, fomos ao jardim, o jardim tinha um lago, foi tudo destruir os Avantes. Aí ganhámos medo, eu e eles. Ganhámos medo. e fizemos isso um bocado desajeitadamente.

A prisão ia a sair de manhã. Ia a sair de manhã para o trabalho, o que fazia todos os dias, e às 7:30 - o comboio era às 7:35 mais coisa, menos coisa - aquilo 'tava tudo já afinado em termos de rotina diária, não é? E penso que foi às 7:30 mesmo, mais minuto menos minuto. 'Tava a sair de casa, porque a estação era perto, mais 5 minutos e estava no comboio. E, portanto, estavam dois - eu penso até que três - mas dois abordaram-me. Um agarra-me de um lado, o outro agarra-me do outro e sou avisado imediatamente: «Se tentares alguma coisa levas um tiro, que eu tenho aqui uma arma». E o que é que eu faço? [Risos] Não faço nada! Deixei-me estar sossegadinho, quietinho. Percebi tudo, não é? Percebi tudo.

Depois foram lá a casa. Lá tinha uns Avantes e uns materiais guardados, lá foram dar com aquilo. Foram dar com aquilo, levaram, pronto. Penso eu que aquilo também constou no processo. Penso, não sei, não me recordo já. Nunca tive essa curiosidade de ir à (… ?) pedir o meu processo. Já tive essa oportunidade, mas nunca o fiz.

Depois levaram-me para a António Maria Cardoso. Mas, na António Maria Cardoso foi de passagem - foi absolutamente de passagem. Não sei porque é que foi. Sei que entrei, sentei-me lá num banco, trataram do que tinham a tratar e depois fomos para Caxias.

Quando chego a Caxias entro no espaço da prisão, encaminham-me lá para dentro, para um hall grande. Um banco redondo de um lado, um banco redondo do outro. E agora não recordo se quando lá chego se o Luís Pais já lá estava, se chegou depois de mim. Eu sei que nós estivemos frente a frente. E então - ingenuidade nossa, não é? - [fizemos] pequenos sinais um para o outro, mas aquilo era... [Risos] Eu hoje rio-me disto tudo, não é? Eu hoje rio-me disto. A olhar um para o outro e tal. Sinais? Sinais o quê? Olha estás cá dentro, tens de te aguentar agora! E, pronto, foi essa a coisa! Entrámos, estivemos ali, depois pronto, fomos colocados nas celas de isolamento.

Há volta de dois meses e meio, não chegou a três meses. Normalmente o isolamento era três meses o máximo. Embora eles pudessem não respeitar essa norma - que era deles, que eles é que a inventaram - eu penso que era três meses. Eu tive cerca de dois meses e meio. Não tanto por aquilo que eu tinha a dizer, porque não tinha muito. Como já se vê três meses de partido o que é que há para contar? Nada, ou muito pouco.

 A rotina era estar fechado num espaço pequeno e inventar. Ou dar comida aos pardais, porque eu estava virado para trás ainda por cima. Quer dizer, se tivesse ficado virado numa cela para a frente ainda podia ver ali a Foz do Tejo (...), esticar a vista. Não. Para as traseiras, com um muro em frente. Os pardais poisavam ali, [dava] um bocadinho de pão aos pardais - era uma forma de entreter. E escrever, escrever algumas coisas. Só escrita. Até há autorização para ter jornal, portanto, para se ter imprensa lá tinha que estar autorizado pelo diretor. Na fase de investigação não há nada, não pode ser. Eu sei que já tinha terminado a investigação deles e, portanto, a partir daí eles autorizaram-me. Eu fiz o pedido, como sempre se fazia, e passei a ter jornal na cela.

Havia o Reduto Norte e o Reduto Sul. O Reduto Norte era onde estavam as celas - era o estabelecimento prisional. E o Reduto Sul era onde 'tava a PIDE. Onde a PIDE trabalhava dentro dos seus gabinetes, nos gabinetes de tortura - tortura digo eu, eles davam outro nome áquilo. Os gabinetes de investigação. Portanto, cá em baixo no Reduto Sul era só PIDE. No Reduto Norte era mesmo a prisão. Os carros que iam buscar os presos chegavam - penso que até entravam de frente e depois lá dentro conseguiam dar a volta - e nós descíamos por ali, entrávamos dentro do carro e íamos lá abaixo. Íamos lá abaixo e... (fase?) de investigação.

Não cheguei propriamente a ser torturado, porque vamos lá ver. Nós estamos a lidar com uma polícia que sabe à partida quem tem à frente. A polícia já sabe, à partida, quem tem à frente. Naturalmente que houve coisas que eles me disseram que eu confirmei e outras até que disse. Mas aquilo, mesmo se eu dissesse... ou dissesse ou não dissesse, não teria assim grande efeito. Eles não sabiam, julgo eu, que eu tinha entrado com os outros dentro da Afonso Domingues pra sujar aquilo tudo, não é? Ficaram a saber, eu disse-lhes isso. Não me parece que isso acrescentasse mais ou menos. Confirmei todo o meu trabalho naqueles 3 meses de atividade partidária. Confirmei tudo isso. Mas essa confirmação era uma confirmação natural, quer dizer, não parece que houvesse aí nada de mais. O que nem acrescentava nem tirava, só por uma razão: o que a PIDE queria realmente não era isso. Isso eles já sabiam. O que a PIDE queria era aquilo que não tinha. O que é que queria e não tinha? Era as casas do partido, era as tipografias, era como é o peso político do partido - isso eles não tinham. Não tinham e não podiam ter. Eles sabiam que não tinham.

Eu não era muito respeitador das tais regras conspirativas, não é? Mas quem está por cima anda há muito anos naquilo. E essas regras norteiam toda a ação. E, portanto, jamais eu seria informado de uma casa do partido, jamais! Eu ou outro qualquer da minha condição. Quando se diz que a PIDE é que ditava as sentenças, formalmente eram os juízes, mas isso era na formalidade, quer dizer, eram eles que davam a sentença, mas era a PIDE que as decidia. De certeza absoluta, quer dizer, não podia ser de outra maneira. Não podia ser de outra maneira.

Lembro-me de um advogado, da nossa praça dessa altura, que era o Dr. Macaísta Malheiros que era advogado. Eu não me lembro do meu, nem sei quem era. Não me recordo quem era o meu advogado. Mas o advogado do Jorge Gomes, que era um dos nossos - um dos integrantes no processo - que era o Dr. Macaísta Malheiros, eu lembro-me do Dr. Macaísta Malheiros gritar com o Juiz!  E ouve realmente uma frase que eu não esqueci. Ele ao gritar com o Juiz, o Juiz advertiu-o. Pá, ele 'tá a gritar com um Juiz e disse qualquer coisa como isto, que eu achei um piadão: «Eu não estou a gritar, estou-me a fazer ouvir». [Risos] Aquelas formas habilidosas que os advogados tinham de se movimentarem.

O que é que eu notei? Fiquei com essa convicção. É que todos aqueles advogados que nos defendiam eram advogados ligados à Missão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, que era uma estrutura que existia na altura, que foi criada para os dar apoio - a nós, aos presos políticos - apoio jurídico. E, portanto, de certeza que um advogado de Direita não estava lá, toda aquela gente era de Esquerda ou tinha conotações, ou tinha uma proximidade muito grande com o pessoal de Esquerda e sensibilidade nesse sentido. De modo que, o que é que eu via? O que é que eu sentia, ali no meu caso, no meu processo? Senti que os advogados... nós estávamos a ser julgados, portanto não podíamos dizer nada - o que é que nós íamos dizer? Nada. E eles faziam o papel deles, que era também digamos, um pouco ao jeito deles e à maneira deles e dentro do que podiam também manifestar ali. Então havia estas tiradas, o advogado a gritar com o juiz. Era o que podiam fazer. Percebia-se que aquilo também era uma contestação. E a coisa funcionava assim.

Nós saímos do isolamento e passámos ao regime normal. Era assim a designação. O que é que é o regime normal? O processo já está instruído e, portanto, agora só falta a pena, não é? Se fica, se vai. Então passamos ao regime normal, ou seja, o que é que é o regime normal? É o convívio com os outros presos. Portanto, eles preenchem as celas, a que chamam salas. E lembro-me de um camarada meu que era o José António Esteves Louçã, ainda me lembro do nome dele, estar deitado na cama com um livro à frente. Há coisa curiosas, não é? Estar deitado naquelas camas com uma cama por cima, outra cama por baixo - ele está na cama de baixo. E eu estou sentado na mesa. E estou a vê-lo e ele com o livro à frente. Ele baixa o livro e diz assim: «Epá, estamos mesmo presos, pá». O senhor está a imaginar o que é que é isto? Isto é a constatação. Porque até ali foi uma aventura! (...) Nós sentíamos um pouco isso, todos nós - jovens - sentíamos um pouco. Ele materializa este sentimento desta maneira. Que raio, que coisa curiosa ele dizer isto desta maneira. Estamos mesmo presos. Portanto, já estava a entrar numa fase de saturação em que a realidade era aquela, não era outra.

Depois, em Caxias eu peço para ir para Peniche. Com a condenação, no processo são oito, tirando o controleiro que é um caso que eu entendo que é mais... entendo, porque não se mistura connosco. Depois do julgamento, fomos todos condenados. Todos condenados. O Luís Pais a dois anos de pena maior. Eu há bocado estive a olhar para o livro que tenho lá da relação dos presos e das penas. E há uma coisa que eu não sabia: é que há dois meses, desculpem, dois anos em 24 meses. Dois anos de pena maior é uma coisa, 24 meses não é pena maior - é pena correcional. Não sabia disto. Veja lá, depois destes anos todos acabo por descobrir isto. Depois havia o Clemente. O Clemente foi condenado a 18 meses. E eu a 14. (...) E mais três a 13 meses de pena suspensa. E um último, que era o Fernando Gonçalves, a 12 meses de pena suspensa. Portanto, quem lá ficou a cumprir a pena foi o Luís Pais, foi o Clemente e fui eu. Neste grupo de três a minha era a mais baixinha. O Clemente tinha 18 meses e o Luís Pais tinha 2 anos de pena maior - direitos políticos suspensos por 15 anos.

Eu peço então para ir para Peniche. Porque é assim: já que estou preso, já que tenho de cumprir pena, quero ir ver como é que é aquilo. Eu ouvia falar de Peniche e Peniche era assim uma coisa que me despertava um interesse na minha curiosidade jovem - e não só, muita gente pedia para ir para Peniche, para saber. E vou. Pedi para ir, autorizaram-me, fui. Aliás, Peniche era uma prisão de cumprimento de pena, não era de investigação. Ali era só para cumprir pena. Portanto, eu como tinha de a cumprir eles, enfim, aceitaram e lá fui eu. Eu, o Clemente e o Luís Pais.

Faço anos em janeiro, eu fiz os 19 anos já em Peniche. E lembro-me de ter passado lá o ano, sim. Concretizei, digamos assim, um sonho que era meu. Olhar para aquela gente de frente e ver lá alguns ícones da nossa resistência. José Magro, Dinis Miranda, Canais Rocha, Dias Lourenço, António Gervásio. Talvez de todos estes o Dinis Miranda seja o menos conhecido, talvez, mas era uma figura com bastante peso. Tudo gente da direção do partido que estavam lá. O Daniel, o célebre Daniel Cabrita, um dos fundadores tal como o Canais Rocha, penso eu, da CGTP. Fundadores, gente que trabalhou na fundação. E, portanto, tudo isso foi um vislumbre pra mim. Conviver com aquela gente. E olhar para eles e ver que são pessoas como eu, mas são pessoas com uma determinação que me impressiona. Eu sentia-me muito pequenino. Acredita que é mesmo assim? Sentia-me mesmo pequenino ao pé daquela gente com um passado francamente heroico. Eles não gostavam muito deste tratamento, eu acho que é mesmo, é de justiça. 18 anos, é-se um jovem e quando se está no meio daquela gente para mim é um deslumbre. Para eles não. Eles têm muitos anos de cadeia. [Risos] Eles até me diziam uma coisa, a mim especialmente e aos outros também, ao Luís Pais e ao [Clemente]: «Vocês vêm cá urinar, depois vão-se embora». [Risos] Eles estavam lá 6 anos de cadeia, 7 anos de cadeia, 8, 10. Alguns já com 20 anos de cadeia para trás. Aos bocados, mas tudo somado daria 20 / 20 e qualquer coisa. Portanto, eu sentia-me, como digo, sentia-me muito pequenino.

A PIDE chamava a Peniche «A Universidade». E chamava a universidade com razão. Eu adquiri franca formação lá dentro. Quando se fala em Marxismo, eu não sou Marxista dos pés à cabeça, acho que ainda me falta muita coisa para ser um Marxista. Acho que aquilo é quase um curso superior ou dois cursos superiores. Que eu não tenho nenhum curso superior. Mas pronto, aqueles aspetos mais simples, mais acessíveis eram tratados lá regularmente, em pequenos cursilhos que aconteciam. Lembro-me que eu frequentei dois cursos lá. Cursos pequeninos, que tratavam as questões essenciais das dialéticas (...). Tudo às escondidas. Mas na altura a coisa estava um bocado apaziguada, quer dizer às escondidas na medida em que não se expunha, mas enfim, até tínhamos lá literatura dentro. Alguma literatura que foi conseguida. Tínhamos lá filosofia dum tal Politzer e uns de economia, um livrinho pequenino com as questões básicas essenciais do Jean Baby. Trabalhando na base dos capítulos: hoje dá-se um capítulo que trata deste tema, outro tema, outro tema. E cada um, semanalmente - já não me recordo, mas penso que era semanalmente - fazia a sua exposição em relação a um capítulo. Quando nós temos lá esses livros, eu lembro-me de ter havido uma conversa de um preso, um camarada lá, com alguém da direção da cadeia - não recordo bem isto, já não sei montar bem isto - em que há uma argumentação que vai neste sentido. Quer dizer, não é possível esconder aquelas figuras centrais da Filosofia e das Economias, quer dizer, nós não somos economistas, mas não é possível esconder aquilo, toda a gente acaba por... Não é possível. E com as lutas conseguiram-se que alguns destes livros acabassem por entrar. Era um bocado o apaziguar: «Tá bem, tomem lá, calem-se». Isto é a minha interpretação, não sei se a coisa funcionava assim, não é? De uma certa cedência - eu quando digo cedência não é cedência, cedência, (...) tem luta por trás, luta forte. Quando há a cedência - chamo eu cedência - daquele lado, houve uma atitude forte, uma luta forte e às vezes difícil e bem suada, não é? Bem suada. E, portanto, as coisas não caiem de bandeja. Foram conquistadas.

Dentro da prisão tínhamos uma forma comunitária de funcionar. Se a minha família me dava, por exemplo, 100 escudos os 100 escudos ficavam na minha conta, mas alguém tomava o apontamento que eu tenho 100 escudos na minha conta. O fulano, a família dava-lhe 200 escudos - punha 200 escudos na conta. E alguém fazia estas contas e somava: existe tanto. Ele não tinha o dinheiro, não podia comprar nada. [Com] estes 100 escudos pedia aos funcionários da cadeia para comprar qualquer coisa, às vezes é necessário comprar qualquer coisa. (...) Uma revista, sei lá, agora não me ocorre mais do que isso. Os jornais, tinham de ser pagos. E tudo aquilo saia daquela contabilidade central. Alguém dizia: «Agora compras tu isso? Pronto». Existe tanto no total, com a participação comunitária. Qualquer coisa que entrasse, género de comida, bolos, qualquer coisa, era tudo para uma banca comum - quem quisesse servir. Não havia nada pessoal ali dentro, nada. Tirando as coisas pessoais, o relógio, a roupa, não havia mais nada.

Tínhamos regularmente, mensalmente, uma revista de imprensa. Uma revista de imprensa era um apanhado político da realidade do momento. Eu, como calculará, não tinha grande preparação para fazer esse trabalho, mas acompanhava e participava nas reuniões em que as questões eram tratadas. Portanto, um conjunto de toda a imprensa que era sendo recolhida, ia-se tomando apontamentos sobre ela e depois alguém faria, digamos, a exposição da revista de imprensa. (...)Tudo aquilo numa deriva formativa. A ideia era formar, era que as pessoas ficassem mais informadas, não é?

Tínhamos higiene todas as semanas. Todas as semanas aquilo era integralmente lavado por nós, o espaço, o nosso espaço. E lembro-me que havia à noite, isto para finalizar, uma coisa que era o petisco. Portanto, as celas fechavam às 11, entravamos dentro das celas, o guarda ia lá e fechava aquilo tudo. Cortava-se a comunicação. E penso que às 10, penso que estou a dizer bem, às 10 havia o petisco. O petisco era qualquer coisa que se punha para lá, um bocado de queijo, umas fatias, uma coisa. A rapaziada juntava-se à volta daquilo e ia conversando, petiscando. Portanto, todos os dias isto era uma prática regular.

E lembro-me que - eu 'tava lá nessa altura - há uma altura em que vai um deputado da Ala Liberal. Faz uma visita ao Forte de Peniche. Digamos, o regime estava um bocado acossado, um bocadão. Dentro e fora. E a Ala Liberal não lhes facilitava a vida. O Sá Carneiro, o Miller Guerra, o Balsemão, o Magalhães Mota, eram os quatro da Ala Liberal. E esses quatro deputados (...) se por um lado chateavam o sistema e o sistema não simpatizava muito com eles, por outro lado o Marcelo Caetano precisava daqueles homens lá para dizer: «Mas nós temos aqui uma oposição». Ao Mundo, para dizer ao Mundo, não é? E então nesta condição eu lembro-me que houve uma ocasião, uma visita do Pinto Balsemão a Peniche nessa altura, eu 'tava lá. E lembro-me que ele recebeu dentro da cadeia - ele fez a visita porque foi autorizado pelo Marcelo Caetano e por quem mandava, não é? Embora sendo deputado (...) o poder era estar na assembleia e chatear. E lembro-me que ele teve lá e quem foi do nosso - ele recebeu um preso político, não sei se foi só um, mas pelo menos um recebeu - e esse preso político era uma figura, enfim, conhecida que é o José Magro. Já não está entre nós, já faleceu há muitos anos. Isto traduz o quê? Traduz uma cedência do próprio sistema.

A saída da prisão foi, se quiser posso-lhe dizer assim e às vezes ser até incompreensível, foi um bocado nostálgica. Saí com um sentimento de: «Saio, mas eles ficam». Epá, uma coisa que realmente mexeu um bocadinho comigo. Eu queria sair, realmente e saí. Pronto, cumpri e saí. Mas fico assim com um sentimento um bocado doentio, não é? E esse sentimento acompanhou-me algum tempo. Claro, depois foi o 25 de abril. Foi o explodir, foi a bomba, não é? Posso-lhe dizer que notava dentro das pessoas com quem eu me dava - para mim foi uma alegria voltar a ver as pessoas, a família em casa, os sítios. Eu sou muito territorial, quer dizer, se eu nasci aqui eu tenho de cá voltar frequentemente porque eu gosto, quero reviver aqui os espaços, ver as coisas, ver aquele prédio. Cresci aqui, até 'tava lá (ao perto?), quer vê-lo? Portanto eu funciono muito assim. E ali fui ver as pessoas, enfim, e conviver de novo com aquela rapaziada, alguns estiveram presos comigo e depois tive a oportunidade de... Mas notava sempre alguma reserva, não desta gente que eram jovens como eu - partilhavam do mesmo sentir que eu, sentir de jovem - notava que algumas pessoas, falando-me, convivendo comigo, tinham alguma reserva. Porque eu tinha sido preso político, não é? Enfim, posso ser preso por outras razões, mas preso político é assim uma coisa muito chata. [Risos] Notava algumas reservas de algumas pessoas, que depois se desfez, se foi desfazendo, ainda antes do 25 de Abril se foi desfazendo.

O lance que eu faço é assim: eu diria que se conquistou a democracia, era a grande luta não é? Se conquistou a democracia. Eu sendo do Partido Comunista almejo uma sociedade mais igualitária, mais... enfim. Não tenho dúvidas que no momento em que estamos, no momento humano em que estamos eu não tenho dúvidas que isso é um bocado utópico, não tenho dúvidas nenhumas. Mas eu gosto de viver nesta utopia, gosto de viver nela. Não sendo uma pessoa de utopismos, gosto desta utopia. Porque é uma utopia um bocado como a do artista, sabe? Portanto o artista é livre, faz o que entende e não pede licença a ninguém, faz o que entende. O que é que eu fiz? Fiz isto. «Ah, é bonito / é feio». Foi o que eu fiz. Portanto eu penso assim, penso que neste momento vivemos uma realidade de democracia - é assim que eu entendo, francamente - é uma democracia que que tem de ser entendida na sua pluralidade. Isto é o meio Democrata-Cristão, isto é só Democrata, isto é Socialista, isto é Comunista, isto é, enfim, doutra coisa. Agora temos o Chega, enfim. Mais à direita, mais à esquerda, eu acho que toda a gente tem direito à vida. (...) E isto foi uma coisa que se conquistou. Conquistou-se, que bom, conquistou-se! Aqui não tenho dúvidas nenhumas, quer dizer, embora eu tenha referido a questão do utopismo, não tenho dúvidas nenhumas. Esta conquista é a grande conquista. O Partido Comunista não quer o Socialismo para amanhã e sabe que não o vai ter. [Risos] Embora lute por ele, naturalmente. Não o vai ter que isto, a humanidade movimenta-se a um ritmo próprio, não é? Não o vai ter. Mas terá e dará, com certeza, contributos. E o próprio 25 de Abril tem muito de contributo do próprio Partido Comunista. Isto eu não tenho dúvidas nenhumas sobre isto, nenhumas mesmo. Mas não só do Partido Comunista, não só. De muita gente, de muitas forças políticas. De muita gente que aos poucos foram participando, contribuindo. E é assim um bocado que eu vejo e que eu convivo com esta realidade. Não há muito tempo tive esta frase e tenho-a repetido francamente: «Nós vivemos no melhor país do mundo». Há quem diga: «Isto é um país de um raio, pá, isto nada acontece». Não, acontece pá. Mas olha que não acontece até agora que eu desse por isso. Epá, os atentados, essas coisas todas que há por aí, que afronta as pessoas, 100 mortes tipo lá o Bataclan em França. Até agora não temos. Epá, as coisas aqui funcionam. Com alguma limitação, não somos um país rico. Eu estou muito feliz de ser português, sabe?". [Risos]