Nome: António Borges Coelho
Ano nascimento: 1928
Local do registo: Parede, Cascais
Data do registo vídeo: 13-10-2021

Transcrição

"Comecei numa vila de Trás-os-Montes, onde nasci. Uma vila, no tempo do fascismo, sem instrução. Havia a instrução primária e uma dúzia é que tinham acesso ao liceu e ao ensino superior. Fui seminarista, fui frade - fui para Franciscano. Estive 5 anos na ordem como candidato e era um crente profundo. Fui, não propriamente para me safar da vila, mas depois de uma leitura das Florinhas de São Francisco, que eram poemas do santo e que me entusiasmaram e inconscientemente, claro, também a fuga da vila.

O primeiro ano foi formidável, isto é, de alto sofrimento, porque estava habituado à montanha e à liberdade e [ali] estava enclausurado. Isto era no período da Segunda Guerra Mundial. Eu vivi no seminário no período da Segunda Guerra Mundial. Chegavam lá ecos e só no mês de férias - nem chegava a um mês, que nós devíamos evitar o contacto com a família - é que tínhamos um contacto mais direto com o que se estava a passar no mundo. No quinto ano eu quis-me ir embora. Estava cansado daquela disciplina e não me sentia realizado e acabaram por me expulsar do seminário.

E é na vila que tenho, depois com alguns amigos, uma consciência da miséria. Um dia falando com um desses amigos, eu dizia-lhe que era necessária justiça e, para isso, era necessário a justiça divina. Ele disse-me: «Olha, o inferno vivemo-lo nós na Terra e o paraíso não há». Durante um mês debati-me. Por vezes os fantasmas saiam-me debaixo da cama à noite, ao deitar. Até que eu disse assim: «Mas és um cobarde. Então tu achas que isto é impossível. Estás com medo do quê?». E a partir daí, a partir desse mês, o meu problema com a divindade ficou esclarecido. Ainda mais quando li as provas da existência dele, as 5 provas de São Tomás. As provas não provam absolutamente nada, são um amontoado de palavras.

Ainda em Murça fiz um primeiro ato político. Fui discursar, impulsionado pelos amigos, à Câmara no dia 28 de maio em que atacava o Regime do 28 de maio - mas terminava com uma frase de Salazar. Levei uma multidão de jovens. Eles ficaram, a princípio, muito agradados, ainda telefonaram para Vila Real a dizer «Foi uma sessão fantástica». Depois viram que aquilo não era nada disso e foram-me pedir o papel da conferência, eu disse que já tinha rasgado a conferência.

Fiz do 3º ao 6º ano num ano e quis fugir da vila. A família não aceitava as minhas ideias. Criei uma biblioteca popular em Murça. Os ricaços do estrangeiro diziam que os camponeses só precisavam de aprender a cavar bem a terra, não precisavam de instrução. A biblioteca depois foi assaltada pela PIDE e foi uma das acusações que me fizeram, foi ligada à biblioteca de Murça.

Vim para Lisboa, não tinha emprego, não tinha dinheiro. Vinha tirar Direito. É claro que conheci amigos de Medicina que me davam sandes - tive 3 meses desempregado - e que me matavam a fome com sandes. Dormia no quarto de um deles, onde não pagava nada. Fiz anos nesse período e o amigo quis-me fazer um bonito: levou-me aos Restauradores e deu-me um cachorro, num balcão de uma daquelas casas. Eu comecei a comer o cachorro e ele notou que havia qualquer coisa que não estava bem [Risos] e disse-lhe: «Opá. Poças! Dás-me um cachorro para comer?» - eu estava convencido que estava a comer carne de cachorro. [Risos] Isto é só para vos dar a ideia do jovem apetrechado que tinha chegado a Lisboa!

(…) Os estudantes de Medicina - um deles era da minha terra - envolveram-me no MUD Juvenil. Já antes, em Murça, um sobrinho do Militão Ribeiro me tinha dado um Avante. Portanto, a partir daí, eu faço parte do MUD Juvenil.

Rapidamente abandonei Direito nas provas orais, porque não queria aquele ensino burguês, não queria mais aquela marmelada.

Então os estudantes de Medicina matricularam-me em Histórico-Filosóficas. Andei no primeiro ano e, no segundo, abandonei os estudos e tive de fugir do emprego, que a PIDE foi à minha procura.

Tive dois anos como funcionário não pago do MUD Juvenil. Depois fui convidado para funcionário do Partido Comunista, onde estive meio ano - estava ligado à imprensa: ao Jovem Trabalhador e ao Juventude, que era o órgão central. Estive ligado a zonas operárias: à Marinha Grande, ao Baixo Ribatejo, ao Alentejo e ao Algarve. E, com as prisões da Direção do MUD Juvenil, eu fui o único que ficou em liberdade, também estive a controlar a universidade. Portanto tive um período muito intenso de atividade política total e foi o período mais entusiasmante da minha vida. O resto da vida, comparado com isto, é difícil. Foi uma entrega total.

Na juventude, no MUD Juvenil, um dia disseram-me que havia uma luta das enfermeiras em torno do casamento. O Salazar não deixava que as enfermeiras casassem e foram expulsas várias por terem casado. Eu pedi que me trouxessem a uma reunião a enfermeira que dirigia. E foi um encontro, o chamado encontro à primeira vista. Ela continuou como enfermeira. Qual era o trabalho da enfermeira? Eram horários de 8 a 12 horas, por vezes eram três velas seguidas, três e quatro. Recebiam o almoço, o jantar e a dormida, não tinham salário. Era uma situação extrema.

Ela, claro, participou no MUD Juvenil. Houve eleições - pseudoeleições - em [19]53. O MUD Juvenil abriu uma sede próxima da Almirante Reis. Houve um jantar de mulheres e ela ia discursar nesse jantar, mas decidiu ir à sede do MUD Juvenil. Eu disse-lhe: «Não vás, que a PIDE deve lá estar a assaltar a sede». E, de facto, quando ela chegou a sede foi assaltada e descobriram que era ela que estava à frente do Movimento e detiveram-na em Caxias.

Sofreu tortura, agressões físicas. Foi um advogado para a defender. Houve um grande movimento entre os jovens, havia cartazes, inscrições nas paredes: «Libertem a Isaura Silva!». Foi julgada e o Juiz considerou que ela era comunista - e não era. Foi condenada a dois anos de prisão maior e esteve lá 4 anos. Portanto ela foi presa em novembro de [19]53, eu fui preso em janeiro de [19]56. Havia bilhetes clandestinos trocados na prisão cá e lá. Depois fui eu.

Estivemos nove anos cada um para o seu lado. Vimo-nos uma vez quando eu estava a ser julgado no Porto e ela, violando a regra que não podia sair, foi ao julgamento ao Porto e vimo-nos por momentos durante o julgamento. Só quando eu saí em [19]62 é que recomeçamos a nossa vida, porque já tínhamos tido vida em comum. 

De maneira que foi uma luta de vários anos, até que, finalmente, me deram autorização para casar. A mim e ao Carlos Costa. No dia aprazado a noiva aparece com um grande acompanhamento de Lisboa - no dia 4 de janeiro de 1959, um ano antes da fuga de Peniche. Foi o notário ao Forte, as minhas testemunhas foi o Alexandre O’Neill e a Maria Alçada Padez e da minha mulher foi a irmã e o cunhado - o Campos Lima e a Hortênsia. Os meus sogros estiveram presentes e ficaram indignados, porque a noiva e os assistentes estavam de um lado e eu estava do outro lado, fora das boxes. Então o meu sogro começa a andar todo indignado [a dizer] que não havia direito e lá deixaram passar a Isaura para o meu lado - os outros continuaram. Eu levava um fato que tinha vindo do exterior - um colega da cela ao lado, que era alfaiate, arranjou-me as calças, porque as calças eram muito curtas e prolongou-me o fato. [Risos] E lá fui eu com um fato de noivo, fiquei com um fato para o casamento.

Acabou a cerimónia. Ela foi-se embora para um lado e eu fui novamente para a cela - fiz um poema, por acaso nessa altura. Os presos que davam para o largo fizeram «Adeus» à comitiva. Um deles era um irmão do Carlos Monjardino (…).

Esta é a história do meu casamento. A história da Isaura é mais comprida.

O Partido pôs-me na casa de um homem que já tinha sido preso e que dava para os dois lados. Estive lá meio ano, até que duas brigadas da PIDE entraram, de repente e subitamente em casa. A dona da casa nada sabia, ia-lhe dando um ataque. Eu dei três gritos, os gritos maiores da minha vida: «Viva a Liberdade! Abaixo o PIDE!». As pessoas que iam na rua começaram a fugir para o outro lado com medo e eu fiquei calmo como um passarinho.

Quando me levaram para a PIDE, eu subi as escadas. O bolso das calças estava roto e o lenço caiu-me pelas pernas abaixo. Eu baixei-me para apanhar o lenço e os PIDEs deram um salto [e perguntaram]: «Onde é que está a pistola?!». Eu nunca usei pistola na minha vida, nem nunca tive pistola na minha vida. E cheguei acima.

O primeiro interrogatório: «Quem é? Identifique-se». [Respondi]: «Não tenho nada a dizer a esta polícia», não me identifiquei. Levaram-me até a um Juiz e eu exigi ao Juiz que pusesse o PIDE no olho da rua, que não tinha nada que estar a assistir ao interrogatório. Aplicara-me mais um X e lá me levaram.

No ato de prisão fui para o Aljube. No Aljube vi à volta de 30 traços numa porta e pensei: «Epá, 30 dias é impossível. Eu estar aqui metido nesta gaiola», que tinha esta largura [abre os braços], tinha uma altura mais razoável e o comprimento pouco mais era que o comprimento de um corpo. A luz era baça. Havia duas portas que davam para o corredor, havia o guarda permanente no corredor e a vigiar. Só havia uma saída da cela para o balde - para despejar o balde. O bailique ficava pendurado na parede - um dia ele caiu e ia-me atingindo na cabeça, mas ainda me apanhou.

Passou um dia, passaram vários. Não tinha visitas, não tinha correspondência e a dada altura - a alimentação era o horroroso que vocês possam imaginar - fiz greve de fome. Fiz greve de fome e os gajos tiveram medo, estava com uma pulsação horrorosa tiveram medo e levaram-me para a enfermaria.

Na enfermaria eram janelas em guilhotina e davam para o pátio do Aljube. Eu levava aparos de lápis e consegui, com papel higiénico, escrever uma mensagem para o exterior: «Estou preso há tantos dias». E gerou-se, eram 3 raparigas, gerou-se um diálogo durante vários dias com o papel higiénico. Elas deitadas no chão da janela - porque em frente ficava o chefe do Aljube. Até que um dia um militar, que era namorado de uma delas, fez uma grande agitação na janela e entram-me os guardas, o chefe - vinham aos gritos - e taparam, pregaram a janela.

Mudaram-me para uma cela, onde estive 14 dias, onde não se acompanhava nem o dia, nem a noite, porque era a escuridão total. Ao cabo desses 14 dias voltei outra vez para a cela. Ao cabo de 6 meses levaram-me o Diário Popular que trazia o relatório do (...) do vigésimo Congresso. Foi um relatório que deu um grande brado e em mim próprio teve um grande efeito. Eles julgavam que me abatiam, mas eu fiquei na mesma.

Fui para Caxias. Em Caxias, em altura da Guerra do Suez, houve a hipótese de nos mandarem para o Tarrafal - ainda sem julgamento, sem nada - mas não fomos.

Entretanto a direção do MUD Juvenil tinha sido presa. Eu tinha controlado no Partido o MUD Juvenil, portanto, a juventude. E a PIDE ligou-me ao processo do MUD Juvenil, que era julgado no Porto. Eram 51 jovens que iam ser julgados. Fui transferido de Caxias para o Porto, em dezembro. Ia com outros presos, mas eu era o mais acusado. Tinha dirigido uma espécie de congresso do MUD Juvenil.

Na PIDE do Porto, na Rua do Heroísmo, juntaram-me aos rapazes que eram da Comissão Diretiva do MUD Juvenil - de que eu tinha sido vários anos. O julgamento durou quase seis meses - de meados de dezembro a 12 de junho - com sessões de manhã, de tarde e, por vezes, à noite. Participaram advogados do Porto e alguns de Lisboa. Foram testemunhas o Ferreira de Castro, o Vieira de Almeida.

No final os juízes pediram aos réus se alguém queria dizer alguma coisa e eu fui o único que fui falar. Disse que nunca compreenderia - eles tinham pedido compreensão - e eu disse que não compreenderia se fosse condenado - se fossemos condenados - por defender a paz, por defender a juventude. Eles a mandarem-me calar e eu a falar. Na altura sai um assistente e vem abraçar-se a mim, a soluçar. (…)

Também recebemos durante o julgamento milhares e milhares de assinaturas, que vieram de França, encabeçadas pelo Sartre - dos intelectuais de esquerda em França.

Fui condenado em dois anos e nove meses. Os outros réus em dois anos. A grande parte foi libertada.

Vamos para Peniche, parámos na PIDE de Coimbra e chegamos ao pátio. Era o Veloso, o Pedro Ramos de Almeida, o Hernâni Silva do [Futebol Clube do] Porto e era eu. O Veloso começou aos gritos, dizendo que a paisagem era lindíssima - a chamar por mim aos berros. Os PIDEs logo de metralhadora. Enfim, fomos metidos nas celas e às 5 horas saíram os dois presos que lá estavam: era o Cunhal e era um outro fugitivo, que agora não me vem o nome.

Havia um período de uma hora em que podíamos escrever à família juntos - cada um estava na sua cela. Nesse período podíamos fazer uma pergunta por intermédio do guarda. Mas é claro, o Cunhal foi a sensação para os quatro. Já estava um pouco grisalho. Apertou-nos a mão, passou pelas celas.

E começou o martírio dos quase cinco anos e meio que eu passei. Não há vida, os dias são iguais. É o apito para levantar, é o balde das fezes, na altura. Não havia secretária, havia a cama, não havia mais nada. Não se podia escrever na cama. Não se podia estar deitado durante o dia. Havia uma hora de recreio, quando não estávamos castigados. Por vezes havia a descasca da batata e havia os quatro presos da faxina - que lavavam a louça e iam despejar os restos à muralha para o oceano. 

A fuga foi um momento extremamente dramático. Tinha havido um movimento internacional favorável a defender os presos políticos. Vieram de França e de outros países e visitaram o Forte de Peniche. Então deram autorização para entrar um gira-discos. Entrou um gira-discos e pudemos falar durante as refeições e naquela hora de escrever à família. Só que um mês depois dá-se a fuga e o gira-discos ficou a tocar no vazio.

A primeira vez que ligamos o gira-discos era uma música esquisita à brava. E nós (…) [dissemos] que era uma música chinesa. O que era? O disco não estava nas rotações que devia estar [Risos] e, de facto, era música de Tchaikovsky, creio eu.

Os Avantes chegavam a Peniche! Eu tive a confirmação. Não os recebia pessoalmente, mas sabia que chegavam. E a fuga foi combinada por fora e dentro clandestinamente. Eu apercebi-me que estava em preparação a fuga. (...) Os líderes era o Cunhal, era o Jaime Serra - que era o rei da fuga. Eu não quis fugir, embora estivesse já quase no final da pena, mas não quis, queria levar outra vida. E ficamos quatro - saíram dez.

No dia aprazado tinha vindo a comida - eles fugiram no dia 3 de janeiro do ano [19]60. E tínhamos comida vinda de fora. O jantar estava a prolongar-se, o guarda prisional estava impaciente, começou a bater com os pés cá fora. O guarda prisional que estava a dar-nos o jantar, que estava meio bêbedo - tinha havido um jogo de futebol do Benfica com o Peniche - ficou assim atrapalhado e então o jantar acabou abruptamente. O Guilherme da Costa Carvalho, que era o mais alto - não, foi o Carlos Costa, perguntou ao guarda: «Ó senhor guarda!». E o Guilherme pôs-lhe o lenço com clorofórmio no guarda. O guarda, desculpem o termo, mas fez uma borrada monumental até à primeira cela e lá ficou, coitado. E foi saindo preso a preso pela porta. O guarda levava-o debaixo da farda. Mas ele julgava que era só o Cunhal e mais um ou dois. Quando ele viu que eram 10 que iam - fugiu, foi-se embora e ia entregar-se. O Guilherme ao cair magoou-se seriamente, porque a malta fez uma corda com lençóis e os lençóis não chegavam ao fundo. E claro que a dada altura, só duas horas depois, há um dos presos que vai buscar o guarda republicano, a caminho, já próximo da esquadra da GNR. Disse: «Ó homem, vais prejudicar a vida toda?». E conseguiu trazê-lo.

Os carros saíram, um dos carros era de um ator, o Rogério Paulo, que foi quem deu o sinal que a operação ia fazer-se. E nós fomos fechados os quatro nas celas. E toda a noite carros a entrarem, carros a saírem, carros a baterem lá ao fundo. E nós apercebemo-nos que a fuga tinha resultado.

Na manhã seguinte fui eu e o Saboga fazer a faxina. E o Saboga disse ao guarda: «Senhor guarda, a faxina são quatro, não são dois» (estávamos lá quatro). E o guarda disse: «Olhe, vocês ontem tiveram mais trabalho e não se cansaram». O Saboga dá um grito enorme - mas isto foi dito, estava o chefe dos guardas republicanos, o chefe da PIDE, cães a cheirarem as celas. Deu um grande grito, disse: «Eu não admito que que me faltem ao respeito». Deu um berro: «Eu sou um homem!» (uma coisa assim). O Saboga era um homem excecional.

Depois, dos que ficaram, dois foram para as celas do Aljube. Fui eu e foi um advogado de Estarreja. Primeiro foi o advogado para a estátua e depois fui eu para a estátua. Mas é claro, a minha mulher não sabia o que era feito de mim. Nós estivemos para ir para Izeda, para Bragança, para a prisão dos presos comuns. E ela mandou um lanche para o Aljube sem saber se eu estava lá ou não, mas o lanche foi aceite de maneira que ela ficou a saber que eu estava lá. Fez um grande (…)  por toda a parte. Chegou a Murça. E o meu pai aparece estava eu a fazer estátua. (...) 

Levaram-me de noite para a PIDE. Estava de pé, não podia dormir. Batiam com réguas na... Por acaso não estive dias, porque com a ida do meu pai os gajos mandaram-me novamente para o Aljube. Já na primeira vez, quando tinha estado no Aljube da primeira vez, eu cheguei lá acima. Uma sala, uma cadeira - e eu fui sentar-me na cadeira. E o PIDE: «Não pode sentar-se na cadeira!». [Eu]: «Só se me arrancarem dela, porque eu daqui não saio». Foi sempre esta a minha atitude. Nem me identifiquei, nem assinei, durante muito tempo, os autos. Depois assinei os autos. Aí os autos o que é que tinham? «Não presta declarações a esta polícia».

Depois voltei novamente para o Aljube e do Aljube fui para Peniche outra vez. Fui para uma sala do rés-de-chão com presos do Baixo-Ribatejo - de Alhandra, de Póvoa de Santa Iria. Metidos na cela com um guarda permanente no gradeamento dos cinco presos e outro lá mais atrás. Portanto eramos vigiados de dia, de noite, sonhos… O passeio de uma hora, um dia era daqui ali, noutro dia era daqui aqui. As provocações eram absolutamente constantes.

Eu estive dois anos e tal, até que um dia, foram-me lá chamar e disseram-me: «Vais sair em liberdade». Tiveram de me dizer três vezes, porque eu só ouvi à terceira. Eles disseram, de facto, mas só à terceira é que eu ouvi. E disse assim: «Epá, parece que me querem pôr em liberdade». Eu estava tão longe de uma afirmação daquelas… há dois anos que não saía nenhum preso de Peniche. Estava tão longe, que foi preciso repetirem três vezes para eu acreditar que devia ser verdade afinal! Mas quando me disseram e eu ouvi, disseram: «Daqui não sai nada do que você escreveu». E eu disse: «Ai sim? Eu também não saio. Têm que mover outro processo, que eu não saio daqui». E estivemos ali num «vai não vai» até que eles disseram: «Bem, economia política não sai nada». Economia política o que era? Era um livro que tinha vindo traduzido de economia política, mas que para mim não tinha importância nenhuma - em liberdade, faltavam lá livros de economia política… O que me interessavam eram os papéis, que eu tinha uma série de cadernos - ainda tenho. Só era permitido a entrada de um livro de cada vez e para entrar um novo livro tinha de sair o livro que tinha entrado. É claro que eu comecei a estudar e a aprofundar a história de Portugal, a Idade Média - em Peniche. E os dois primeiros livros que publiquei são em boa parte resultado desse trabalho preparatório e foi isso que me levou a não fugir. Eu queria seguir outra vida. Queria seguir a vida que acabei por seguir.

Enfim, deram-me os papéis que tinha, poemas e tudo. Vim até à sala - estava numa sala nessa altura - que estava vazia para não me despedir dos presos. Mandaram-me despir para ver se eu não levava nenhuma mensagem. Recusei-me a despir-me. E o guarda, que era dos mais ferozes: «Mas é do regulamento!». [Eu]: «Não sei se é do regulamento, se não é do regulamento, eu não me dispo!», e não me despi.

À saída passei por uma zona onde estava o Américo de Sousa, que me tinha levado a funcionário do Partido. Tinha sido preso novamente e estava sozinho a passear de um lado para o outro. Eu dei um grito e disse: «Adeus Américo!» e ele estremeceu da cabeça até aos pés. E ele disse: «Adeus Borges Coelho!».

E pronto, ao atravessar aquela ponte da fortaleza uma mulher de Peniche aproxima-se de mim e diz-me: «Está a sair da prisão, não está?». Estava o chefe dos guardas atrás, mais uma série de guardas atrás. [Respondi]: «Estou, estou». Eu levava duas malas. [Ela]: «Deixe-me dar-lhe um abraço», e abraçou-me nas barbas daqueles gajos. Eu atrevi-me, custou-me a levar as malas. Ela indicou-me para onde é que eram as camionetes. Tinha uma dificuldade enorme em atravessar um largo, mas um largo que não tinha referências, sentia-me a cair. Aqueles seis anos e tal praticamente sem sair, sem ver a rua, um largo era uma confusão na minha cabeça. A minha mulher não sabia de nada e eu fui ter com ela. Eu sabia dos tempos, que ela ia almoçar a um café ali na rua próximo do Marquês Saldanha, do Duque de Ávila. Havia ali um café. Eu entrei no café e ela estava, de facto, a almoçar com uma colega. Eu olhei para ela e ela olhou para mim. Olhou para mim e ficou assim com um ar estranho. Eu virei costas e saí para a rua. E ela dá um grito: «Epá! Aquele gajo!». E veio atrás de mim [Risos] (…?) E abraçamo-nos cá fora na rua. E vivemos até ela morrer, coitadita.

Nunca mais fui dirigente, mas fui militante toda a vida - durante toda a vida não, até a um certo passo da minha vida. Mas fiquei sempre ligado. Tenho um poema: «Nem a vida nem a morte nos podem mais separar. Foram anos que nos ligaram profundamente».

O que eu quero destacar a isto é que as pessoas que entraram na clandestinidade, que lutaram - e os que cá fora não lutaram na clandestinidade e que eram continuamente presos, que era uma vida de um raio - não lutavam por benesses, não lutavam para serem recompensados. A recompensa era a prisão, podia ser a morte e se não quisessem trair tinham que estar preparados para morrer. Sem isso acabavam por não resistir e entregar-se ao inimigo. Era isso que eu queria dizer. Era gente especial e muitos dos que traíram eu compreendia-os. Porque não se tinham preparado, isto é, eram apanhados de choque. Muitos recuperaram e muitos depois sofreram ainda mais".