- Nome: Alfredo Rodrigues de Matos
- Ano nascimento: 1934
- Local do registo: Barreiro
- Data do registo vídeo: 27-01-2022
Transcrição
"Em [19]56 eu comecei a ter contactos com pessoas que eram filiadas ou eram aderentes ao MUD Juvenil - Movimento de Unidade Democrática Juvenil - que era, digamos, o sector jovem do Movimento de Unidade Democrática e, portanto, aí comecei de facto também a aderir a algumas ações de convívios no âmbito do MUD Juvenil. Convívios e ações de natureza já política, mas elementar, muito juvenil, muito insipiente. Eu lembro-me que distribuíamos alguns panfletos pelo chão, pelas ruas; fazíamos grandes piqueniques com dezenas de jovens aqui no Barreiro. Havia pinheirais que não há hoje, eucaliptais que não há hoje. Grandes eucaliptais e pinheirais, eram espaços arborizados que permitiam um convívio aberto. Deslocávamo-nos pela rua cantando aquelas heroicas do Lopes Graça «Não fiques para trás ó companheiro», todas aquelas cantigas lindíssimas que o Lopes Graça musicou e divulgou e estão também editadas.
Lembro-me que uma vez fomos colar cartazes a pedir a libertação do Doutor Agostinho Neto, que estava preso na altura. Andava assim. Fizemos uma excursão, um passeio de autocarro, muitos autocarros, três ou quatro autocarros, já não me lembro bem. Fomos centenas de pessoas do Barreiro, jovens, a Alpiarça comemorar o armistício da Guerra 14/18 [Primeira Guerra Mundial], para conviver com os jovens de Alpiarça. Aí a GNR prendeu alguns jovens. Estávamos em convívio. Um deles, do Barreiro, António Espírito Santo Silva, foi preso nessa altura. Foi mais ou menos assim, essa atividade curta que eu tive.
E a minha casa foi assaltada. Eu morava no bairro novo da CUF com os meus pais, no bloco Soure, e foi assaltada em [19]57 em janeiro. Nós não tínhamos cuidados conspirativos. Apontávamos numa agenda os passeios, tudo isso. Foi assim, fui preso em 57.
Meteram-me logo num cubo no Aljube, chamávamos nós uma gaveta, que era no fundo um cubículo, não tinha mais que 1,80 / 1,90m por 2 metros. E tinha um bailique, que era uma tarimba, uma camita. Então havia uma luta entre o preso e o bailique. Ou o bailique estava em pé e também nós estávamos em pé, ou então estava na posição horizontal e não se conseguia andar, só sentar. Foram 60 dias ali metido de uma assentada. Inesperadamente. Eu não esperava nada disso. Mas isto não deu nada, não deu em nada, porque 3 meses depois eles libertaram-me, porque a lei dizia que eles não podiam ter mais de 3 meses sem haver um processo, creio eu. No dia 17 de março, pronto, fui libertado, mas com condições. Tinha que me apresentar diariamente à GNR aqui no Barreiro. O elemento torturante foram os 60 dias isolado numa das gavetas do Aljube.
Houve na altura um evento no dia 8 de março, no Dia da Mulher, creio que em [19]58. E nessa altura sou novamente preso. Depois disso casei. Eu casei na cadeia, casei no Calhariz, porque não tinha visitas da minha namorada e para ter visitas tínhamos que casar. Quem foi fotografar, no Calhariz, foi uma pessoa a mando do meu querido amigo Augusto Cabrita, que mandou o Patacas fazer a reportagem. Mas eu percebi, a certa altura, que a polícia queria deitar a mão ao Patacas. Disse-lhe de uma forma não notada e ele zarpou, e não aconteceu nada. Há a reportagem desse casamento.
Fui novamente preso e requeri, como tinha casado e como ia a julgamento ainda, requeri a minha saída, uma liberdade condicional. E o tribunal [concedeu].
Depois fui condenado. Fui julgado, fomos julgados vários, e fomos 3 condenados. O Armando José da Cunha Santos - que já faleceu, que foi presidente do cineclube - apanhou 2 anos de prisão maior e de 6 meses a 3 anos de medidas de segurança renováveis; o Lenine Maria Sobreiro apanhou 22 meses de prisão correcional, também com medidas de segurança de 6 meses a 3 anos; e eu fui condenado em 18 meses de prisão correcional e medidas de segurança de 6 meses a 3 anos. Portanto cumpri 4 anos e meio de cadeia.
Um castigo que me foi aplicado, não só a mim como a todos os que foram à visita nesse dia, no Aljube, que se não tinham fato preto levaram gravata preta e uma braçadeira preta no braço. Quem tinha fato preto, levava fato todo preto: toda a gente foi de preto para a visita. Então fomos castigados, um castigo coletivo sem visitas, 3 meses ou 4 meses e sem jornais. No Aljube ou em qualquer outra cadeia para que fossemos transferidos. Toda a vida por um jornal... Por essa atitude de irmos de preto, assinalando de negro a chapelada eleitoral que o General Humberto Delgado sofreu.
Só fui para Caxias no dia 21 de outubro, depois das eleições para Presidente da República em que concorreu o General Humberto Delgado contra o Almirante Américo Tomás. O Doutor Arlindo Vicente, tinha desistido em favor do General.
Portanto fui para Caxias. Eu, mais o Lenine, sempre, porque o Armando da Cunha Santos foi para Peniche. Puseram-me logo num sítio onde estivessem pessoas perigosas do ponto de vista policial, membros do comité central do PCP ou dirigentes do PCP. Então fomos colocados junto do Rolando Santos Silva Augusto Verdial, o filho do Verdial que era arquiteto no Porto. Este senhor Verdial veio a fugir de Caxias e a trair profundamente o PCP.
Houve uma altura em que, na sala onde eu estava, estávamos oito. Íamos ao recreio logo de manhã, mas eu atrasei-me um bocadinho. A malta foi saindo por um corredor, sobe-se as escadas, tem lá o pátio de onde fugiram, o pátio interior. A certa altura eu saio, vou no corredor atrás deles, 50 metros atrás deles. Quando eles descem a escada e vêm [embora, eu perguntei]: «Então o que é que se passou?». Responderam: «Mandaram-nos vir embora. Estávamos a correr, mas só podíamos correr na vertical».
Já não fui ao recreio também. Passado 6 dias o chefe dos guardas chama-me a mim. De vez em quando ele chamava-me: «É para comunicar que foram castigados, 30 dias». Uma coisa assim bárbara, por uma infração coletiva. Disse: «Mas eu não fui ao recreio, não estive lá. Essa aludida infração eu não cometi, não posso ser castigado». «Não cometeu, mas cometia se lá fosse com eles, portanto é também castigado». A prepotência desta gente!
Estive em Caxias até 61, 22 de janeiro, e fui para o Porto. Mandaram-me para o Porto a mim e a 39 outros presos de Caxias, porque houve uma rebelião em Caxias. Essa rebelião teve origem na proibição de visitas em comum no Natal de 61. Foi por causa da fuga de Peniche que cortaram as visitas, nós depois ligamos tudo. Porque é que as visitas foram cortadas em 61? Porque antes tinha havido a fuga, portanto eles eliminaram qualquer possibilidade de contacto com a família. Havia visitas em comum no Natal e no Ano Novo, porque o resto eram visitas de meia hora, afastados 1 metro e meio dos familiares, na presença de um estranho - um estranho para a conversa, um estranho para a visita. Ou era um polícia, um PIDE, ou era um carcereiro. Em Caxias era mais ou menos sempre um carcereiro. Proibiram as visitas e as famílias, que eram dezenas de pessoas, muitas dezenas de pessoas, sobretudo mulheres e crianças. Foram corridas. Começaram aos gritos: «Quero ver os meus familiares. Quero ver o meu pai. Quero ver o meu filho. Quero ver o meu irmão». Mas gritavam! A Maria Isabel Aboim Inglês, várias mulheres… o Carlos Aboim Inglês estava preso também, aos gritos. E nós ouvíamos esses gritos, porque tínhamos grades. A fachada é voltada para o Jamor, então ouvíamos. A GNR pega nas mulheres e corre com elas a torto e a direito para a estrada do Jamor - mas isto demorou muito muito tempo, muitos minutos. E nós começámos a bater nas grades: «Bandidos! Queremos visitas!» Aos gritos. Impressionante. Então batemos nas grades, nas portas, murros em todo o lado. Todos, mas todos! Não era só a cela onde eu estava. Havia celas de oito pessoas, muitas, e havia uma de 14. O forte estava repleto, não sei quantas pessoas estavam, mas estava tudo cheio, estava lotação esgotada. Um chinfrim danado. E eles entraram nas celas com pistolas. [Reagimos]: «Então querem-nos matar ainda por cima». Um berreiro, um chinfrim danado. E aquilo não acabava.
Depois cantávamos o hino de Caxias, de noite, aquele célebre hino, lindíssimo hino da Caxias. Mas é exatamente como eu o aprendi, como eu estive lá muitos anos, alguns anos, é assim que se cantava e não é o que às vezes os coros cantam que, enfim, fazem bem em cantá-la, não seguem esta estrutura. São duas quadras, o estribilho, duas quadras, o estribilho. E acaba. Eu não tenho voz nem para falar, nem para dizer, quanto mais para cantar.
[Canta o Hino de Caxias]
«Longos corredores de trevas percorremos,
Sob o olhar feroz dos carcereiros.
Mas nem a luz dos olhos que perdemos
Nos faz perder a fé nos companheiros.
Como da noite irrompe a madrugada,
Como uma flor furando o chão de escória,
A nossa voz nas celas soterrada
Já traz no canto a estrela da vitória.
Vá, camarada, mais um passo!
Já uma estrela se levanta!
Cada fio de vontade são dois braços
E cada braço uma alavanca.
Cada fio de vontade são dois braços
E cada braço uma alavanca.
Ouço ruírem-se os muros
quebrarem-se as grades de ferro da nossa prisão.
Treme, carrasco, que a morte te espera
na aurora do fogo da libertação.
Podem cortar meu corpo à chicotada.
Podem calar o meu grito enrouquecido.
Para viver de alma ajoelhada
Vale bem mais morrer de rosto erguido.
O sol da luta aquece os nossos dias.
Para o cobrir desdobram-se as montanhas.
Quando o fascismo aguça as garras frias
Já traz a morte a arder-lhe nas entranhas.
Vá, camarada, mais um passo!
Já uma estrela se levanta!
Cada fio de vontade são dois braços
E cada braço uma alavanca.
Cada fio de vontade são dois braços
E cada braço uma alavanca.
Ouço ruírem-se os muros
quebrarem-se as grades de ferro da nossa prisão.
Treme, carrasco, que a morte te espera
na aurora do fogo da libertação.»
As pessoas não gostavam nada do hino da Caxias, não é?
Depois as coisas foram amainando e nós (…) Nós estávamos como se estivéssemos na mesma sala, porque os meios de comunicação entre nós, de dirigentes por um núcleo muito restrito de presos, sob orientação do José Alves Tavares Magro, mais conhecido pelo Zé Magro, que eram um homem delicioso, determinado.
A luta em Caxias, já em janeiro de 61, foi espetacular. Nós começámos a fazer [greve de fome]. Primeiro numa dada segunda-feira, não tomámos o pequeno-almoço. Devem ter pensado - estes gajos não comeram o pequeno-almoço, isto deve ser um levantamento simples, desarmado, não é? No dia seguinte tomámos o pequeno-almoço, almoçámos, mas não jantámos. No outro dia tomámos o pequeno-almoço, não almoçámos e jantámos. Andámos assim 4 ou 5 dias, até que eles caíram na asneira de não nos dar comer. Nós num dado dia, creio que numa sexta-feira, não tomámos pequeno-almoço e não nos deram almoço. Aquilo levantou em pé de guerra! «Não nos dão almoço, querem-nos matar à fome!». A gente desmanchava camas, batia com os ferros das camas, aquilo tinha 3 camas, era um chinfrim danado. Entrámos em pé de guerra. Depois amainou, eles voltaram a dar-nos comer. Amainou, [mas] pensámos: isto não vai ficar por aqui, a vitória não vai ficar do nosso lado. Então a certa altura, no dia 23 de janeiro de [19]61, disseram a 40 presos: «Preparem as vossas coisas, vão mudar de cadeia». Então assim fizemos. No carro onde eu fui, eramos mais 19. Gente boa, gente magnifica. Fomos um pouco perturbados, não sabíamos para onde íamos. No fundo eles atacaram-nos, castigaram-nos. Esse castigo existe, rebelião coletiva. Esse castigo foi um castigo que nos atingiu em cheio, mesmo no ponto mais querido que um preso tem: falar com a família, receber visitas da família e ver outros presos. E lá fomos para o Porto. Fomos 40 em dois carros celulares 20, 20. Vinte não sabiam que também iam mais 20.
Fomos para o Porto, mas não sabíamos que íamos para o Porto. Fomos para o Porto pensando que íamos para o Bié - o Tarrafal não, que já tinha encerrado - mas que íamos para qualquer colónia portuguesa onde tinham cadeias. Chegámos ao Porto, entrámos na sede da subdiretoria da PIDE no Porto, na Rua do Heroísmo, Largo Soares dos Reis. E nós fomos colocados 20 presos numa casamata. Eu já fui lá depois disso, as casamatas existem ainda. Agora são arrecadações. São construções quadrangulares em betão armado, com a cobertura também de betão. Aquilo era uma frigideira de Verão, um calor insuportável. Estive lá 11 meses.
O arejamento era inteiramente insalubre. Tinha uma porta de entrada que tinha um postigo! Vinte pessoas estiveram ali meses e meses. O ser humano adapta-se a tudo. Uma vez fizemos uma peçazinha de teatro, que uma vez eu vi mais o Lenine. Ele era bom declamador, o Lenine. Já desapareceu, coitado. Nós tínhamos as nossas conversas, ocupávamos o nosso tempo.
A esta distância, a crueza, o crime refinado, a desumanidade está muito esbatida, tudo está muito esbatido.
Ao fim de 11 meses, no fim de dezembro, eu tinha de sair no dia de 21 de janeiro de [19]62, portanto fui outra vez para Caxias.
E assisti à fuga de Caxias. Assisti, estava lá. Eu ia para o recreio sozinho, [no] pátio superior. Caxias tinha dois pátios. Um pátio intermédio, para o qual se acedia por um túnel, donde saiu o carro [da fuga], e por uma escadaria (…), e acima desse pátio havia um outro pátio dividido em dois. Eu ia para o recreio num desses meios-pátios, em frente lá estavam os sete ou oito, que eu conhecia.
Houve a fuga de Caxias. Eu no dia 1 saí. Foi interessante, porque eu saí e não disse à família, porque queria sentir a liberdade. Saí com a minha sacola e fui por aí por essa vereda e desci para a estrada, para a marginal. E daí fui apanhar um autocarro.
A terceira prisão deu-se em 3 de maio de 1970 e sucedeu a um evento extraordinariamente comemorado, que foi o 1º de maio. No largo frente ao cemitério do Lavradio, que é o início da Baixa da Banheira. A Moita e o Barreiro estavam aí representados aos milhares. Um camião de caixa aberta cheio de brita foi bloqueado no meio da multidão, em frente ao cemitério, na estrada que aí havia que hoje é uma estrada nacional. E inesperadamente apareceu a polícia de choque e a GNR, logo ao ataque e aos tiros. Aquelas pedras que estavam em cima do camião, começaram a ser arredadas. Aquela malta jovem em cima do camião com as pedras, defendia-se à pedrada. Começou um cerco, começaram a disparar. Depois a malta começou a debandar, mas a debandar de uma forma desordenada, como é evidente.
Dois dias depois (…) 3 de maio, assaltam oito casas no distrito. Quatro em Setúbal, uma em Alhos Vedros, uma na Moita e duas no Barreiro. Um deles, no Barreiro, fui eu. Fomos oito presos.
Morava no centro do Barreiro, na Rua Salvador Correia de Sá. Por acaso íamos à praia nessa manhã e estava lá o Jorge do Carmo, que era um prisioneiro. O Jorge do Carmo mais a Vitória, também estavam lá para nós irmos para a praia esse dia, creio que foi um sábado ou um domingo. Fomos levados todos os oito para Coina, onde entramos num carro celular, em Coina. Foi aí que nós nos vimos, que já nos conhecíamos. Foi esta a prisão de 70, depois do 1º de maio.
Nesta prisão não fomos para Caxias, nem para o Aljube, fomos para o Porto. Porque o Barreiro estava cheio, estava para rebentar. Pouco depois de [sermos] presos houve uma manifestação no Barreiro com milhares de pessoas contra as prisões, para pedir a libertação. Também deu GNR, deu invasões de cafés… Isto no dia 3 de maio. Porque nós fomos presos de madrugada, isto deu-se a partir de contactos com o Presidente da Câmara a pedir a libertação, marchas a aumentar de volume, milhares de pessoas. [Eu] já não estava lá, já estava no Porto.
Passámos pela António Maria Cardoso para identificar. Não sabíamos que íamos para o Porto, mas a certa altura começamos a dizer: Ah, isto deve ser Porto. Tiraram-nos do Barreiro, tiraram-nos de ao pé das famílias, tiraram-nos do [nosso] ambiente. Isto foi depois de 69, em que o Barreiro ganhou as eleições à União Nacional, com fiscalização. O delegado da CDE era eu, da Câmara, e o (…) Madeira, não havia hipótese nenhuma, [contávamos] a urnazinha toda e ganhámos a eleições, 60 e tal por cento, para 30 e tal.
Chegámos ao Porto, calabouços. Começamos a ter visitas do Barreiro, a maior parte ia de automóvel. Nas visitas não sabiam o que é que o outro estava a fazer, sabia que estava no calabouço. (…) A certa altura um guarda prisional que me conhecia de há 9 anos, que há 9 anos tinha lá estado. Estive lá em 61 e em 70 fui para lá outra vez. Um dos guardas que me conhecia primeiro veio dizer (…) no dia 22 disse-me (…): «Senhor Alfredo, amanhã vai você para a tortura lá para cima. Vai amanhã». Então estive de 23 a 30 [de janeiro] em tortura do sono, como é evidente. Não me permitiam dormir e em pé, às vezes, e espancado durante 3 a 4 horas por noite. Das 2 da manhã, até às 3, 4, 5 da manhã espancado de uma forma barbara. Eu pensava que com a Primavera Marcelista isto já não [acontecia], que as regras, embora fascistas, seriam cumpridas. De facto, as regras queriam cumpri-las, queriam num mês resolver o problema.
Fui espancado de toda a maneira e feitio. Fui queimado, superficialmente. Cassetetes, vergões, aqueles cabos de aço envoltos em borracha já desfeitos, em todo o lado. Enfiavam-me o caixote de lixo, o caixote em verga, na cabeça. Metiam-me 3 e 4 em cima de uma cadeira. Uma coisa... eu pensava que já tinha desaparecido com o Marcelo, era a Primavera, não é? Pior, é que isto foi na base de terem formado uma brigada, de propósito, de assassinos. Uma brigada de polícias assassinos. Alguns deles diziam: «Eu já matei tantos pretos, tirava-lhes a pele! Não tem hipótese nenhuma, tem de falar». Eu dizia: «Eu respondo às vossas perguntas. Perguntem-me o que quiserem, eu respondo e assino e subscrevo aquilo que eu disse. Mas vocês não me estão a fazer isso, vocês estão a colocar-me aqui um texto para eu assinar».
Do que é que eles me acusavam? De eu ser membro do PCP, por acaso até era; de eu me dirigir a uma manifestação; de ter lá posto um camião de brita. De tudo aquilo que lá aconteceu eu era acusado, especialmente acusado. Eu, claro, dizia que não.
Eu a certa altura estava tão desfigurado, que havia uma casa-de-banho - agora aquilo está tudo mudado, está tudo mudadinho - havia uma casa-de-banho que tinha uns espelhitos e eu via: «Como estás pá! Estás acabado, [mas] vais aguentar». Eu, no fundo, estava a sentir que tinha uma força danada para não dizer nada. Zero, zero, zero. Então o que é que eu fiz? Dou três passos e mando-me contra a parede. Caio. Acabou aí. Mas já era para acabar, porque ia fazer um mês. Eles tinham de aprontar um processo. Vim algemado, o único algemado, para Caxias, num carro particular, um Volkswagen, e vim irreconhecível. Cheguei a Caxias fui posto em isolamento, numa cela em Caxias. Sei bem qual é a cela, até se via o Jamor. Mantinham-me interrogatórios na António Maria Cardoso. Então um individuo chamado Inácio Afonso, que era o chefe de brigada, pontapeava-me de toda a maneira. No fundo não disse nada. Estive 45 dias isolado aí. Nada. E assim foi. Depois em Caxias vim para a cela onde estavam os meus companheiros, os outros sete.
Fomos julgados em dezembro, no dia 21 de dezembro e fomos absolvidos. Absolvidos. Zero, zero! Se eu [tivesse] dito alguma coisa apanhava aí uns oito anos. Zero. E só me mostraram à família um mês depois. Eu estava irreconhecível. Depois a nossa pele vai ao lugar. E foi aí que eu adquiri um problema pulmonar, foi aí nesse período.
O meu carácter alterou-se. A minha perspetiva de vida alterou-se, com o conhecimento que eu tomei. Como eu estava castigado desde o Aljube, metiam-me sempre no meio do comité central. Com o Carlos Aboim Inglês, Francisco Miguel Duarte (o Chico Miguel), o José Alves Tavares Magro (o Zé Magro), o Manuel Pedro, o Rogério de Carvalho, o Guilherme da Costa Carvalho, o Domingos Abrantes Ferreira (que é meu cunhado), o Afonso Gregório, o António Gervásio… A nata que estava presa, passei por esses todos. A vida social não se deu sem estes cérebros, sem este olhar sobre o mundo".