Nome: Fernando António Pinheiro Correia
Ano nascimento: 1942
Local do registo: Algés
Data do registo vídeo: 22-10-2021

Transcrição

"A consciência política ganhei-a desde muito cedo. A ação política veio mais tarde. Porquê? Porque os meus pais eram - digo eram, porque já faleceram - membros do PCP. A família era de Coimbra e pertenciam ao sector intelectual de Coimbra. Eram licenciados na mesma coisa, em Filosofia, portanto davam-se bem em todos os aspetos, por isso casaram [Risos] por isso nasci eu - em 4 de julho de 1942.

Isso significa desde logo que o meu ambiente caseiro era progressista, digamos assim. Além do mais, os meus pais, depois de eu nascer - porque eles eram ambos especializados em psicologia e psicopedagogia - fundaram uma escola infantil que se chamava Instituto Infantil, lá em Coimbra, onde havia dezenas de miúdos. E também, coisa que eu nunca soube senão muito mais tarde, aquilo que vou dizer, a casa do tal Instituto Infantil - era um edifício grande, com vários quartos para os miúdos dormirem - durante os anos 40, não sei se já nos anos 50, era um ponto de apoio de militantes clandestinos do Partido, ao qual os meus pais pertenciam. Depois participaram naquelas démarches que era preciso fazer para apoiar os camaradas, funcionários do Partido clandestinos - incluindo o Álvaro Cunhal, na altura - que passavam por Coimbra, por necessidade de deslocação pelo país.

Não direi que por contaminação espiritual, mas mais por influência parental, a minha educação foi sempre democrática, de esquerda. Ainda que todas estas peripécias (...) que se deram, eu não tinha nada a ver com elas - estava completamente a leste - mas digamos que o ambiente era propicio a sair dali um antifascista.

Em Lisboa, no Passos Manuel, também encontrei - encontrei não, como é óbvio começámos a dar-nos - duas pessoas, três, que depois também se tornaram conhecidas, jornalistas como eu: um deles era o Daniel Ricardo que era jornalista da Capital e também passou por outros jornais; o Luís Barros, que também era jornalista e que mais tarde seria o companheiro da Maria Teresa Horta, da poetisa; e o Lauro António, que na altura não era, mas veio a ser um realizador de cinema com obra feita, no sentido não só dos filmes que fez, mas também de um espólio muito grande de coisas relacionadas com o cinema, que recentemente doou à Câmara de Setúbal - tive essa informação, porque há muitos anos que não o vejo.

Isto criou um quadro favorável a que fosse tendo uma formação democrática neste sentido. Democratas há muitos, há uns bons, outros melhores, outros assim-assim - mas todos são democratas. Eu fui encarreirado para um certo tipo de democrata.

O liceu fez-se normalmente. Depois tive a sorte - e posso dizer que é a sorte - de ter entrado para a faculdade. Portanto, fiz o liceu e depois a Faculdade de Letras – também [fui] para o curso que os meus pais tinham, de Filosofia. Tive a sorte de entrar em [19]61. Ora, [19]61 e [19]62 foi um ano [letivo] marcante devido às grandes greves estudantis que houve nessa altura, que tiveram uma importância muito grande. Não só para os estudantes da altura, mas mesmo sob o ponto de vista ideológico e de formação política acabaram por influenciar toda uma geração. Por isso é que muitas vezes se fala da geração dos anos 60 como uma geração de rutura entre os tempos negros dos anos 50 e os tempos que viriam a ser mais sorridentes dos anos 70. Os anos 60 fazem ali uma charneira, que eu tive sorte - podia ter sido uma década antes ou uma década depois, mas foi nesta - de ter acompanhado todo esse movimento estudantil.

Simultaneamente - eu entrei em [19]61 / 62 - encontramo-nos eu e a minha mulher na mesma faculdade, simpatizámos e casámos - mais tarde, em [19]65. Mas começámos a namorar logo. Como se dizia - acho que hoje já não se diz namorar [Risos] – em [19]61 / 62.

Acho que foi em [19]62, já no fim do ano letivo, que entrei para o partido, para o PCP. Fui recrutado por um camarada que era estudante como eu, mas que teve essa iniciativa. Eu já desconfiava [Risos] e um dia consumou-se. Devo dizer que isto já à margem dos meus pais. Nem eu sabia na altura o que tinha acontecido antes com os meus pais, nem os meus pais sabiam que eu tinha entrado para o partido, por uma questão de respeito. Respeito no bom sentido - eu cá tenho a minha vida, não tenho de vos meter nela. [Risos] Já sou adulto. Depois, em 19]65 casei.

Apesar do curso ser de Filosofia eu, desde cedo, que me interessava pelas questões do jornalismo. Quando estava no Passos Manuel com aqueles amigos que referi há bocado - o Daniel Ricardo, o Luís Barros - fizemos um jornal estudantil que se chamava Iniciat, com “t”, do latim. Tanto para mim como para eles foi o início do interesse pelo jornalismo, ou melhor, o jornal resultou do nosso interesse por jornalismo.

Devo dizer que nessa altura tivemos um professor, que não tinha nada a ver com jornalismo, mas tinha a ver com a conceção da História, que era a disciplina que ele lecionava, que era o Doutor Joel Serrão - que já morreu, mas que escreveu muita coisa sobre a História de Portugal. Essa influência foi muito importante. Nós sempre que falávamos disso [dizíamos]: «Pois, o Joel Serrão, que era um gajo porreiro. Estimulava-nos, ao nos dizer para ler algumas coisas, que não era bem a História que vinha no livro». Isso foi estimulante.

Na faculdade foi o ponto alto da minha juventude. A certa altura, em [19]62, entrei para o Partido. Um camarada, que já não vejo há 30 anos ou 40, nem sei se está vivo, que me recrutou para o Partido e comecei a participar na célula da faculdade de letras onde, aliás, conheci gente excelente durante esses anos. Desde colegas de turma, que depois vim a saber que também eram (…) democratas - não necessariamente do partido, mas do Partido Socialista e de outros. E nomeadamente uma grande figura, entre os jovens, que era o Jorge Sampaio. Que era presidente, primeiro, da associação da Faculdade de Direito e depois de uma coisa que havia, que eram as reuniões interassociações, que era um grupo que se reunia com diversas associações de estudantes, das diversas faculdades. Ele foi durante uns anos secretário-geral da RIA, Reuniões Interassociações.

Foram anos de formação, que se pode resumir assim, sem esquecer uma particularidade: eu para além de estudar alguma coisinha [Risos] para tirar o curso, também me interessei, como era de esperar, pelo jornalismo e, portanto, ajudei a fazer o jornal da Faculdade de Letras. Por outro lado, como sempre me tinha puxado o pé para o futebol, inscrevi-me e depois fui da direção de uma instituição que havia e continua a haver - hoje com outras características menos académicas - que é o CDUL, Centro Desportivo Universitário de Lisboa, cuja direção era formada por representantes das diversas associações de estudantes e promovia coisas juvenis. Falo nisto porque achei - e achava a direção do CDUL, do qual eu comecei a fazer parte - que era preciso um jornal e, portanto, claro, fui logo cravar para fazer um jornal. Ainda saíram uns oito números do jornal do CDUL. Isto não é totalmente a despropósito, porque também tem a ver que eu nesse jornal tentava meter o veneno: «O desporto não é só para a elite, é preciso que o desporto não seja só para os estudantes ricos». Lá metia as minhas coisas.

Nessa altura no Diário Popular quem mandava ainda era o Doutor Francisco Balsemão, que queria renovar a redação e fez uns cursos para quem quisesse inscrever-se – universitários -porque na altura jornalistas universitários era coisa que não havia. Pior do que isso, pior no sentido jornalístico, é que a maioria dos jornalistas, até aos anos 60 - também aí os anos 60 são um marco - os jornalistas tinham vários empregos. O jornalista ia fazer uma perninha ao jornal, recebia x, e depois ia fazer outra coisa qualquer - ou escriturário, ou empregado de balcão, qualquer coisa.

Sei que eu me inscrevi no curso. Eram 30 inscritos, os quatro primeiros entravam para a redação do Diário Popular. Fiz o curso. Praticamente não conhecia ninguém daqueles jovens que lá estavam, não fiquei nos quatro primeiros - fiquei em quinto. Mas o Balsemão fez-me a gentileza de também pôr o quinto. [Risos] de maneira que devo ao Balsemão essa gentileza de ter contribuído diretamente para eu entrar no jornalismo. Na altura, fui da direção do sindicato dos jornalistas, a nível da movimentação sindical criaram-se estruturas mais atuais, relativamente às que havia na altura, que vinham do princípio do século quase, que permitissem uma defesa mais, desde logo, material - é por aí que tem de começar, para motivar as pessoas - mas também noutras exigências. Uma delas nas habilitações - não é qualquer pessoa com a 4ª classe, não quer dizer que não haja pessoas com a 4ª classe que dariam excelentes jornalistas, mas pronto, tinha-se de criar uma exigência, umas linhas. Isso foi uma reivindicação que na altura o sindicato fez e se conseguiram alguns passos nesse aspeto.

Isto criou um clima dentro do jornalismo, que, a nível do PCP, exigia uma outra estrutura que não existia antes, uma estrutura mais individual, de haver jornalistas comunistas - como havia jornalistas dentistas, ou arrumadores, ou motoristas. Então o Partido, por esses anos, resolveu criar uma estrutura estruturada - um organismo como se diz na linguagem do Partido - que se preocupasse com os problemas do jornalismo. Formada por jornalistas, que tomasse conta, se preocupasse e tivesse ações de mobilização e de esclarecimento, como é trabalho habitual nas células do partido, no sentido de criar uma frente democrática. Defendendo os valores democráticos e que tentasse espalhá-los entre jornalistas, na qual eu participei, como membro do partido. A luta, no sentido partidário, ativa, foi enquanto jornalista.

Oito dias antes do 25 de abril fui preso. Tive a sorte de oito dias antes do 25 de abril ter sido preso. Foi um camarada funcionário que denunciou uma série de camaradas jornalistas, que foram presos.

Foi de madrugada - eram cinco da manhã, ou seis da manhã - que foram lá a casa e me levaram para um volkswagen que estava cá em baixo. Eu pedi para fazer qualquer coisa: «Posso ir ali comprar tabaco?» e os gajos olharam para mim como quem diz [Risos]: «Estás a pensar em dar à sola?» - e lá foi um comigo comprar o tabaco. E pronto, comprei o tabaco. [Risos] Não me estava a apetecer nada, nem pensava nos cigarros - foi só para chatear, «Deixa lá ver o que é que eles dizem». (...)

Depois vim aqui [para] Caxias, onde praticamente não cheguei a ser interrogado. Isto foi nas vésperas do 25 de abril - os tais sete dias antes do 25 de abril. Fui apenas aquilo que se chamava identificado: fotografias, «[Quem é o] pai, mãe, o que é que fez?», a ficha, preenchi a ficha. E voltei para a prisão. Estava isolado.

Houve um dia, foi no dia 25 de abril. A cela onde eu estava dava para o parque de estacionamento do Estádio Nacional (…) aparecem lá uns casacos, umas buzinas e uns faróis. [Pensei]: «Estes gajos estão malucos? O que é que se passa aqui?». [Risos] O facto é que sentia bater as paredes por todos os lados - que eram os presos que falavam na linguagem do bater na parede, não sei como é se chamava, que tinha acontecido qualquer coisa. A certa altura, passado uma hora - ou duas ou três - ouviu-se uma voz: «O fascismo caiu! O fascismo caiu!», lá de uma janela qualquer. Alguém que tinha percebido os códigos todos e já estava a par.

Ainda passei lá uma noite. Eu tinha papel para escrever e quando soube o que é que estava a acontecer - há bocado não referi isso, mas entre o Diário Popular e a minha prisão eu tinha entrado para o Diário de Lisboa. Estava na redação do Diário de Lisboa. Portanto [pensei]: «Estou aqui, vou escrever o que é que se está a passar». E escrevi uma coisa.

Finalmente houve a libertação dos presos, isso é história, não vale a pena pormenorizar. Grandes abraços. [Comentávamos]: «Epá, também cá estás! [Risos] Não sabia que estavas cá!» (...). «Não sabia que estavas cá neste hotel!», lembro-me disto [Risos]. «Então tem corrido tudo bem?». «Tem, tem! Tem-se comido bem!». [Risos] Brincadeiras de quem está louco de alegria, ao fim ao cabo era isso.

Entretanto houve uma situação, que é conhecida. Os militares do MFA [Movimento das Forças Armadas] [diziam]: «Sai tudo da prisão. Não há presos políticos». O Spínola queria que só fossem soltos o que não eram prisioneiros de sangue - aqueles que pertenciam à LUAR [Liga de União e de Acção Revolucionária], que faziam atentados. Depois fez-se uma reunião, sinceramente não sei por iniciativa de quem, na prisão, para que os presos todos juntos decidissem o que fazer: «Ou saem todos, se ninguém ficar cá dentro, ou ficamos todos se alguém ficar cá dentro». Ganhou por unanimidade e aclamação - «ou saem todos, ou não sai nenhum». Apesar das grandes diferenças ideológicas e práticas que havia entre, por exemplo, os membros do partido e os membros da LUAR, e de outros grupos que já não me lembro. Só que voltámos todos para as celas respetivas - por uma questão logística. Nessa altura eu tinha caneta, tinha papel e escrevi uma reportagem - uma pretensa reportagem - sobre o que se tinha passado e estas peripécias. (...)

À meia-noite, cá fora, estavam as famílias aos abraços, estava também a minha mulher e os meus cunhados - o irmão dela e a mulher. [Diziam]: «Vamos para casa beber!» e eu disse: «Alto! Primeiro vamos ao Diário de Lisboa [Risos] que eu tenho aqui uma coisa que escrevi, que é giro os gajos de lá irem saber». Fomos ao Diário de Lisboa, que era junto ao parque Eduardo VII, entreguei aquilo - estava lá o contínuo, o senhor Peixe. [Eu]: «Senhor Peixe!». [Ele]: «Ó, senhor doutor, está aqui!», grande festa. Dei-lhe um abraço: «Tem aqui esta coisinha. Amanhã quando chegar o chefe de redação, faz favor entrega-lhe isso, diga que eu estive cá». E assim foi.

Digo isto porque tem piada, gostei que me tivesse acontecido a mim. Podia ter acontecido com qualquer outro”. [Risos]