Nome: Afonso Assunção Rodrigues
Ano nascimento: 1943
Local do registo: Algés
Data do registo vídeo: 11-10-2021

Transcrição

"Como vivíamos na nossa sociedade, com a repressão que havia, com um irmão já também com consciência política e que foi preso - teve também aqui em Caxias, só em Caxias - tudo isso me foi moldando de certa maneira.

Uma coisa que determinava muito isto era a questão da Guerra Colonial, os recursos, eram jovens. Nessa altura eu, com a idade que tinha e mesmo já antes pensava assim: «então, mas isto não pode ser pá. Nós somos um país pobre e pequeno. A Inglaterra, os franceses, os holandeses, os belgas, todos tinham abandonado e éramos nós a manter aquilo?». Sabia que isto acarretava perigos, não é? Porque havia a repressão, nós eramos uma sociedade sem liberdade. Ainda por cima com um peso enorme da guerra colonial.

Durante todo o meu tempo de militância foi mais ou menos sempre desta forma: transporte de materiais, transporte de funcionários do Partido, casa de apoio. Fundamentalmente foi isto. Por vezes alguns trajetos maiores para fora de Lisboa, bastante para fora. Alguns eu até nem sabia o que é que eu lá ia fazer.

Eu e a minha mulher trabalhávamos na TAP. Eu era mecânico de avião, a minha mulher era assistente de terra.

No dia 30 batem à porta muito cedo, mesmo antes das 7 da manhã. Eram quatro PIDEs, que entraram em casa para vasculhar tudo. Curiosamente eu transportei tanto Avante, tanto Militante, tanta coisa, mas por saber do cuidado que era necessário ter, eu quase que descansei quando eles entraram à procura de qualquer coisa. Lembro-me nomeadamente de eles estarem a vasculhar até a literatura dos aviões, porque tinha esquemas elétricos e coisas assim e eles eram, se calhar, um bocado boçais e pensaram que aquilo pudesse estar ligado a alguma coisa que não era aquilo que era a minha atividade. Vasculharam a casa toda, levaram algumas coisas. Como calcula quatro PIDEs em casa e dois a movimentarem-se para ali - ainda ontem a minha mulher me estava a dizer que eles foram à despensa, eu nem dei por isso. Mas depois apercebi-me que houve coisas que levaram lá de casa (...)Tinha lá uma fotografia, salvo erro, do Ho Chi Minh e outras coisas do género, mas não conseguiram apanhar nada que me pudesse incriminar. Se encontrassem um Avante - isso para eles era uma coisa muito [incriminatória]. Não tinha rigorosamente [nada]. Eu lia o Avante e pronto. Mas eu levava, levei malas e malas e malas de Avantes.

Lá em baixo estavam mais dois PIDEs - um deles eu até conhecia, porque tinha estado a trabalhar em Moçambique uns 6 meses antes de ir para a TAP. Eu trabalhei também nas oficinas de Alverca que é também de aviação e andei lá num ginásio. Havia um individuo da PIDE que ia lá ao ginásio e eu conhecia-o. E eu [pensava] assim: «Epá, eu devo ser muito perigoso. Agora tenho em casa [4 PIDEs]». (...) Eu [quando] fazia a coisa que achava que era a mais mundana, sabia que era preciso muito sigilo, muita atenção. (...) Puseram-me num posto da GNR, porque depois foram buscar mais um outro camarada a uma fábrica - que agora já não existe, que era a Olaio que fabricava móveis, que era ali à saída de Sacavém. Foram buscar mais esse. O posto da GNR era mesmo ali ao lado de mim e alguns GNRs com certeza que me conheciam. Para eles deve ter sido a coisa mais estranha. «Mas o que é que se passa?» [perguntaram] - e era a PIDE - iam lá espreitar com curiosidade. Aquilo era um prato.

E levaram-me para a António Maria Cardoso, onde eu estive nesse dia até à noite - há coisas que eu já não me recordo, como é óbvio. Levaram-me para Caxias e depois ainda mesmo nesse dia, já à noite, trouxeram-me novamente para a António Maria Cardoso. Eu passei o dia todo sem comer. E eu estava assim: «Mas isto é mesmo [duro]... Será assim?». Foi porque coincidia - quando cheguei a Caxias foi já depois de almoço, (...) quando saí de Caxias foi antes do jantar ou coisa assim. O que eu comi, nunca mais me esqueço, foi uma sopa de caldo verde. Não me apetecia nada comer uma sopa caldo verde, mas tinha de comer qualquer coisa, não é? O organismo precisa.

(...) Aí foi só pela identificação. Levaram-me novamente para Caxias. Eu penso que ainda vim mais duas vezes a António Maria Cardoso, porque a António Maria Cardoso estava a acabar com as instalações para fazer os interrogatórios. Aquilo passou tudo para o Reduto Sul aqui de Caxias. 

Fui para Caxias. Acho que estive nalgumas 3 celas diferentes. As celas eram assim coisas pequenas - dois metros por três. Tinham uma mesita, tinham uma cama. E ‘tive ali sozinho um mês e pouco, sempre sozinho, mas mudei para três celas diferentes. Essa parte aí foi a mais difícil, porque as sevícias eram bater e eu acho que o bater foi sempre aquilo que eu senti menos. Eu lembro-me de alguns três objetos diferentes, desde o cavalo-marinho, a uma moca e assim. Não sei se eles até sentiam alguma vergonha por estarem a praticar aquele ato. Mas depois o que era difícil era a gente estar sempre a pensar. ‘Tive lá acho que 3 noites e 4 dias. E depois voltei várias vezes, sei lá quantas vezes é que eu fui a interrogatório. Umas 3 ou 4 noites sem dormir. Depois os PIDEs... vinha um, vinha outro. E eu penso que a partir de um certo tempo a gente começa a baralhar muito a cabeça, não é? Já nem vê bem ou vê coisas esquisitas no chão. Mas a pessoa de qualquer maneira está sempre um pouco consciente e é a angústia. [Pensava]: «Mas eu vou-me aguentar, o que é que vão fazer mais?». E depois cada vez que ia para a cela estava sujeito aquela grande angústia: «Vão-me chamar outra vez?». Cada vez que se ouvia a ramona da polícia... E aquilo era uma constante, que devia ser mais do que um carro, não é? E entravam por um túnel, que ia para o interior, para um pátio. Esse pátio foi onde houve aquela fuga de Caxias. Eu nunca entrei por aquela entrada principal que as pessoas hoje veem, por onde saíram os presos políticos e por onde entrava a minha mulher e os advogados, quando iam ter com os presos. 

Mas o que foi doloroso, e volto a repetir, realmente era aquele tempo de espera sem saber quando é que se ia para interrogatório e como é que a gente se ia comportar, se ia resistir, o que é que iam fazer. Porque o interrogatório era feito de muitas coisas. A polícia também estava cega. Aquilo que eles andavam mais à procura foi aquilo que eles talvez nunca encontraram. Mas prenderam muita gente. Houve uma denúncia que levou, naquele período, muita gente à cadeia. 

Eu, sozinho, sozinho estive [um] mês, mês e pouco, já não sei precisar bem. Depois continuei a ir, mais o isolamento dentro daquelas celas pequenas [que] foi talvez até aos 3 meses, porque, entretanto, eu fiquei acompanhado com outro camarada e as coisas aí começaram a melhorar, digamos assim. 

Enquanto estive sozinho, eles nunca me punham na mesma cela não sei porquê, ou porque me punham numa qualquer. Numa cela eu só via era uma parede, noutra cela já via a estrada, noutra cela também só via a parede. 

A minha mulher também a levaram para Caxias. Teve em interrogatório. Ela sabia da minha atividade, mas não conseguiram nada. Apreenderam também o carro na altura, mesmo antes do tribunal assim decidir. O carro foi logo apreendido - que fazia muita falta. A minha mulher, depois, para [ir para] Caxias era de comboio, sujeita às provocações dos PIDEs, ou então... Porque havia muita gente a apoiar as famílias dos presos políticos. Foi formado nessa altura o Socorro aos Presos Políticos. Eu tive o apoio da Amnistia Internacional, com a qual ainda hoje me relaciono, com pessoas com quem fiz amizade. 

A minha mulher, entretanto, eu até nem sabia, também abortou na altura, o que foi para ela um grande trauma. Eu fiquei sem saber, eu nem sabia. Até me recordo de uma vez um PIDE: «Então a sua mulher, como é que está?», e eu disse: «A minha mulher está bem» - como quem diz, o que é que eu vou responder? Eu respondia. A estas coisas eu respondia, não assumia uma atitude daquelas… - [havia] camaradas que era nem bom dia, nem boa tarde.

A visita era com vidro duplo. O som até circulava era do lado de uma rede. Era uma vez por semana, uma hora. Com um PIDE do lado dela e um guarda do meu lado. O PIDE para ouvir o que é que a gente dizia. E era assim.

Mais tarde, quando se começou a formar o processo, também o advogado - José Carlos Vasconcelos, salvo erro, não sei se era irmão do Carlos Vasconcelos que era jornalista. Decorrido aquilo, eles formaram o processo, procuraram ligar ali … porque, veja bem, eu fui ter a um processo de atividade sindical em que estava o Daniel Cabrita, que fazia parte da direção do sindicato dos bancários - tinha havido uma grande movimentação de bancários na rua nessa altura. E isso incomodava muito, não é? Junto às outras coisas todas que se faziam contra a ditadura.

E então depois vim para uma sala para baixo onde já eramos oito ou dez presos, que era a parte mais - aquilo é um forte, não é? está a ver um forte? Tem aquelas grades, muito grandes. E era aí que a gente estava, num beliche, uns em cima outros em baixo. E ali fizemos a nossa vida, o resto da prisão - que se estendeu por muito tempo, por razões que se prendem, não sei com certeza, por causa de formularem um processo para fazerem uma incriminação de ligar os comunistas à atividade sindical, acho que foi por essa razão. De qualquer forma havia muitos jornalistas que vinham. A minha mulher serviu muito de intermediária [para] falar com eles. Franceses, suecos, holandeses…

É claro que o tribunal... aquilo era um proforma. A PIDE dizia que eu tinha dito isto e aquilo, PIDEs que eu nunca tinha visto: «Ele disse e assinou de livre vontade». «Eu nunca vi isto na vida». 

Depois do julgamento fomos logo para Peniche. O forte de Peniche, aquilo é uma coisa de bradar aos céus. Com certeza que já lá foram, não sei. 

Sabe que a composição prisional naquela altura era diversa, porque era um misto de trabalhadores como eu, operários especializados, com intelectuais, com operários da Lisnave e da [H.] Parry & Son, [Lda] com pessoal que vinha da província. E em Peniche as coisas caricatas também aconteciam. 

Normalmente conto este episódio: antigamente os relógios eram todos uma máquina - agora [é que] têm uma pilha. Os guardas a quererem desmontar o relógio por causa das mensagens. Eu dizia: «Mas você abre-me isso, estraga». Com 26 anos (...) a gente atrevia-se a dizer aquilo (...). 

O chefe dos guardas lá tinha sido o guarda que tinham posto o clorofórmio no nariz quando foi da fuga de Peniche - de Peniche, digo bem, com o Álvaro Cunhal. (...) E esse homem para connosco foi sempre muito pianinho, muito pianinho. Não havia grandes conflitos lá com os guardas. As coisas eram assim, a gente de lá não podia sair. Sei lá quantas portas é que aquilo tinha, e grades…

Depois eu fui despedido, assim que foi a pronúncia do tribunal eu recebi uma carta da TAP a dizer que face à condenação cortavam o contrato comigo. 

Entretanto tive uns amigos que residiam na Suécia e me convidaram para ir. Na altura houve um jornalista sueco que deu também algum apoio nisso. E fui para a Suécia até ao 25 de abril. Quase que foi um ano que lá estive quando deram a permissão para residir no país.

Então frequentava cursos, primeiro tive de frequentar cursos para aprender alguma coisa de sueco, mas não aprendi grande coisa - a minha mulher já ia no quinto ano e eu não passava do primeiro.

Eu lembro-me de ter visto o 25 de abril. Vi qualquer coisa num jornal sueco, ia num autocarro [e vi]: «Portugal, ...», e eu assim: «Epá, há qualquer coisa em Portugal». E depois, com outros amigos, havia ali uma comunidade portuguesa, falamos uns com os outros, telefonar. E rapidamente percebemos que tinha havido o 25 de abril. Chamemos-lhe revolução que não foi tanto assim. Mas que a aderência do povo transformou rapidamente a nossa sociedade, de uma sociedade fechada e sem liberdades, numa coisa diferente".