Nome: Carlos Coutinho
Ano nascimento: 1943
Local do registo: Algés
Data do registo vídeo: 06-10-2021

Transcrição

"Eu, por sorte ou por azar, nasci numa aldeia do alto Douro bastante politizada, ou seja, a aldeia estava dividida na influência de duas famílias: os republicanos e os monárquicos.

Por acaso o meu pai era afilhado do chefe monárquico. Mas era uma pessoa com uma consciência muito, muito lúcida. E, portanto, evitava associar-se ou pensar nessas ligações.

A outra família, a família republicana, eram vizinhos - até eram amigos do meu pai e, portanto, eu nasci nesse contexto de... de mútua rejeição de duas famílias que dominavam tudo. Uma das famílias acabou por dar presidente da câmara, imposto pelo Salazar, não é? E um filho também presidente da câmara em Vila Real. Os outros, os republicanos, tinham..., portanto estavam marginalizados. E sofriam uma certa, uma certa rejeição por parte do resto da população da aldeia por influência dos outros - dos grandes lá do sítio. Isto mexeu logo comigo, desde miúdo. Eu achava aquilo uma coisa inexplicável. A minha consciência começou a levedar, digamos, neste contexto. Depois, já na minha adolescência, no começo da minha juventude, eu estou em Vila Real, estou num colégio, e vejo grandes movimentações de tropa e de polícia... e já me dava com outros jovens, como eu, que estavam contra tudo e contra todos. Eu precisava de estar contra tudo e contra todos nesse tempo. Menos contra o meu pai que me parecia cá a única pessoa com a cabecinha limpa. 

Chega a notícia de que tinha havido a fuga de Peniche. Com os polícias, os tropas... Então eu e mais outro jovem fizemos uma coisa com piada. O que é que foi? Irmos aos sítios onde havia sinais de trânsito, virávamos ao contrário e as movimentações das tropas e das polícias ficavam todas baralhadas e deu uma grande confusão nessa noite. Ao ponto de, no dia seguinte, o Governador Civil ordenar uma investigação ao que tinha acontecido. Não apanharam ninguém, portanto eu como esse jovem - que já morreu, era um poeta muito conhecido, o Eduardo Guerra Carneiro, autor daquela frase «Isto anda tudo ligado» - escondemo-nos em casa dele. Íamos para casa dele, mas quando íamos a chegar a casa dele, vimos umas pessoas esquisitas à porta. [Eu] disse: «Alto, isto deve ser para nós». Então em vez de irmos para ali, fomos para minha casa, que era perto e que ninguém certamente suspeitaria.

Começou assim a minha atividade política. Foi com esta... Com estes episódios. Que depois tiveram um desenvolvimento grande quando eu (...) vou para a tropa. Depois vou para... primeiro vou para Caldas da Rainha. E deu-se naquele ano mudança de fardamento e andamento, adotaram-se os métodos, ordenamento e fardamento NATO, essa coisa toda, e houve uma certa confusão no quartel. De maneira que quando chegou o... Uma cerimónia qualquer, que agora já não me vem, não me recordo bem o que era. Eu e mais dois aproveitámos a situação e fomos festejar para um café, deixamo-los lá com eles. Pronto isto foi, parece agora uma brincadeira, não é? Mas naquela altura isto era um ato de rebelião muito característico e passível de castigo, não é? Castigo sério.

Isto é o começo, digamos, da minha atividade política. Que não é uma atividade, é uma atitude!

A seguir quando eu vou para Moçambique, mobilizado, à chegada a Lourenço Marques assisto a uma cena terrível lá, que é um velhote, que está - um negro, não é? - velhote, cabelo carapinha já meia cinzenta que está a engraxar os sapatos de um branco. Por acaso nem sequer era Português, devia ser Sul-Africano ou assim. E veio a polícia e disse-lhe: «Você está num sítio onde não pode, estás num sítio onde não podes estar» e ele, se calhar não percebia, levou uma carga de pancada... Eu não sei como é que o velhote não morreu. Levou pontapés, levou cacetadas e tal! Pronto. A caixa onde ele se sentava para engraxar também levou pontapés partiu-se toda, na Avenida do Infante, em Lourenço Marques. Isso então virou-me do avesso. Mas eu não podia fazer nada. Ainda por cima, na esplanada estavam vários outros militares todos de patentes superior à minha, de maneira que fiquei a remoer aquilo. 

Dali, depois segui para Nampula. Em Nampula também assisti a cenas mais ou menos idênticas. Um dia qualquer ficamos a saber que tinham desaparecido instrumentos da Clínica de Cardiologia no Hospital Militar de Nampula. Que era, nessa altura já estava quase no coração da guerra, havia ali 2500 homens estacionados. Era uma coisa... E Nampula tinha sido transformada na sede do comando militar de Moçambique com o Costa Gomes. Ficamos... Perante isso, o que é que a gente fez? Eu e mais um outro fulano - que era um médico com menos uma cadeira, portanto não era médico, mas como tinha uma atividade política conhecida como da oposição e não o deixaram fazer a cadeira, mandaram-no prá tropa e ele estava como Alferes de Comunicação, salvo erro. Éramos amigos. Encontrávamo-nos no café. E ficamos a conhecer-nos porquê? Porque andávamos com livros idênticos. [Eu] disse: «Oh, isto alguém com livros destes aqui não pode ser de direita, não pode ser do regime». Acabámos por ficar amigos. Um dia quando sabemos desta notícia ele arranjou um escantilhão, portanto um conjunto de peças cada uma com a sua letra. Então pegámos num papel, num não, nuns sete ou oito. E com o escantilhão escrevemos uma frase em que contava o paradeiro daqueles instrumentos: «Os instrumentos que faltam na Cardiologia do Hospital estão numa clínica particular no Marrere» que era como se chamava essa zona. E, pelas três, quatro da manhã, ninguém - Nampula às escuras - os quatro com pioneses fomos pela Avenida do Infante pôr nas árvores até ao Café Portugal - que era onde tomavam café as altas patentes e as PIDEs e essa gente toda e os colonos assim ricos. Pelas oito da manhã, quando começa a haver movimento e vêm aquelas denúncias nas árvores - grande movimentação! Um inquérito, perguntas, respostas! [Risos] Mais perguntas, mais respostas, toda a gente! Eu por acaso fui um dos interrogados, não sei porquê porque ninguém me viu, mas fui eu e esse tal meu amigo também. [Nós]: «Não, a gente não sabe de nada, mas se isso foi assim olhe, esta tudo explicado!». O fulano que me estava a interrogar era um Capitão dos Serviços de Informação do Exército - pronto, uma espécie de Serviço Secreto, de Polícia de Informação própria das forças armadas - que deve ter dito ao Comandante militar, que era o Costa Gomes, a minha resposta. Que ele achou estranha, achou... O Costa Gomes mandou-me chamar: «Foi você que disse não sei quê?». [Eu]: «Disse sim e posso voltar a dizer, então isso não explica o resto?». O Costa Gomes olhou assim para mim...: «Você tem pinta! Vá, vá lá embora!». Você tem pinta?! 

Pronto a partir daí nunca mais acabou. As coisas horrorosas que por lá vi assentaram-me a ideia de que... quer dizer, fizeram-me ter vergonha de ser português! Porque eu vi fazer as coisas mais, mais incríveis! Eu vi um fulano com um chicote estar a tentar cortar, assim de golpe, os mamilos…de uma jovem! E não conseguiu. Bom, vi assim coisas desse género. 

Quando regressei a Portugal eu... Depois de dois anos e tal, a gente fala com muita gente. Eu apercebi-me do que era o universo ideológico, as regras, tudo o que fazia deste país aquilo que ele era. Não! Eu sou português e vou continuar português. Agora isso tem de mudar. E já não muda com greves nem com eleições, tem de ser com mais alguma coisa! E quando chego a Portugal encontro um fulano, que depois há de vir a estar preso comigo, que era membro do PCP e tinha sido meu colega em Moçambique. Há uma manifestação no 1º de Maio nesse ano, eu tinha chegado um mês antes. E fui ver, mas não sabia de nada. Fui à procura de ver se havia uma movimentação e o que é que eu vejo? Vejo no Rossio - aí mesmo em frente ao Teatro Nacional - assim um grupo de pessoas que mandam uns gritos e tal. E de repente sai da parte de trás daquela rua da Betesga, não é? Onde estava a Polícia. Sai dali um grupo de polícias, fardados como se fossem prá guerra. E desatam a malhar em toda a gente! Quem fosse nos passeios de um lado ou de outro, levou pancada de criar bicho! Derrubaram tudo! Havia ali a esplanada da Suíça, do café Suíça, onde as pessoas que lá estavam fugiram todas! Mas uma velhota estrangeira, que não percebia aquilo, nem tinha nada a ver com coisa nenhuma deixou-se ficar. Bom... ela e a mesa dela e a cadeira dela foram parar uns metros mais à frente. Não sei como é que aquela velhota não morreu, porque também levou umas cacetadas. 

Então e quando esse meu amigo de Moçambique me vem.... que eu encontro nessa tarde a seguir a isto - encontro na descida da Boa do Carmo. E ele me diz, porque ele depois participou comigo em Moçambique, lá em Vila Cabral, nalgumas coisas, como ele era o Comandante do pelotão, o chefe da Polícia Militar. Às vezes emprestava-me o jipe para eu dar uma voltas e fazer por lá assim umas malandrices. E então ele «Ah tal, grande abraço, não sei quê. Agora a vida é outra, agora temos que fazer as coisas doutra maneira», disse-me ele [diálogo]: «Tu não queres, não sei quê?». «Calma lá, eu já estou a ver o que é que tu queres dizer! Eu desconfiava, mas não sabia que tu estavas nessa». «Pá, tu estiveste no mesmo sítio que eu, viste o mesmo que eu, já percebeste que isto não vai lá só com greves e manifestações. Tem que haver mais alguma coisa». «Só estou disponível para esse mais alguma coisa». «Ah 'tá bem, pronto, sim senhor». Marcámos encontro para outro dia, porque ele disse que ia falar com alguém. Marcámos. Fui a esse encontro. E ele apresenta-me, aponta-me um fulano com quem eu devia falar. Sim senhor. Era um fulano chamado Lindolfo, que depois me entregou à PIDE. Esse fulano marcou encontro, foi em minha casa. Tivemos uma discussão enorme, para aí duas horas no meu quarto. Ele era funcionário clandestino. Discutimos muito. Porque a questão da luta armada, derrubar o regime pela força, para mim era indispensável. Tinha que acontecer! E não havia nenhuma outra forma que produzisse esse resultado. Ele depois no fim: «'Tá bem. Não concordo com muitas das tuas opiniões, mas já vejo o que é mais importante é aquela que me interessa. Eu vou levar isso para outro lado e depois alguém há de vir ter contigo». Rasgou uma carteira de fósforos, entregou-me uma parte e ficou com a outra parte e disse-me: «Olha, quando alguém aparecer com esta parte que vai comigo, tu pegas na tua parte e vês se bate certo. Se bater certo é a pessoa». Assim aconteceu. Aparece-me algum tempo depois uma pessoa com a outra parte da carteira de fósforos. Também no meu quarto. Novamente uma discussão de ordem político-ideológica. E ele no fim diz-me assim: «Bom, já vejo que tu discordas de algumas coisas que eu penso, mas no fundamental estamos de acordo e é por isso que eu estou cá. Portanto vamos a elas!». Começou assim a organização chamada ARA [Ação Revolucionária Armada] a que eu pertenci. 

A partir dali fizemos muitas operações, de reconhecimento. Eu, a minha mulher e a minha filha, que tinha uns mesitos, fizemos essas operações, com um ou dois civis num Fiat 127 verde, a ver isto e a ver aquilo. Fizemos levantamento de muitas questões, de muitos pontos que eram utilizáveis para operações anti-regime. E um dia qualquer faço a primeira operação, que foi estragar um navio. Que era, na altura, a Jóia da Coroa. Considerado o cargueiro mais - não sei se é verdade, mas era o que se dizia - os próprios gajos diziam que era o cargueiro mais moderno do mundo e não sei quê. E aí fomos então... Isso foi pensado com grande cuidado. Fizeram-se estudos, preparou-se tudo. E quando chegou a hora - eu com um naviozito, com um barquito entrámos naquele... no cais da Rocha! Ele estava ali ancorado - o Cunene. Portanto, eu peguei naquelas cargas que levava, coloquei-as em dois pontos do navio - éramos dois, eu e o meu condutor. Pus as cargas, que eram uns baldes de pescador com uns terminais de imanes fortíssimos, que ao encontrar o casco do barco ficaram ali presos. Para aí oitenta centímetros, um metro abaixo da linha de água. Pronto, quando chegou a hora que a gente marcou aquilo estoirou. Mas há um episódio engraçado. Porque aquilo estava cheio de barcaças e barcos de transportes e tal. Assim batelões e coisas... E nós tivemos de saltar por cima dos batelões! E quando chegamos ao último alguém lá de dentro, alguém que estava a dormir lá dentro de um deles - era o guarda: «O que é que há?!». Diz esse meu companheiro: «Não há nada! 'Tá tudo nos conformes! Olhe, missão cumprida! Felicidades!». E fomos embora.

Depois seguiram-se várias outras operações, algumas de grande repercussão, como quando fui com mais dois - um ajudante e um guarda-costas - fomos a Tancos estragar uns aviões que lá havia e uns helicópteros. Dezassete helicópteros e onze aviões, de vários tipos. Foi tudo muito estudado. A minha mulher alugou um apartamento - caro - ali na Praça de Londres onde a gente se instalou para fazer estudos e testes ao material. E quando saímos dali sabíamos tudo. Quem era o meu ajudante? Era um piloto que naquele dia ia jurar bandeira como piloto de um helicóptero. Que também por vias idênticas à minha também se associou ao partido. E um guarda-costas que era um soldado. Éramos todos civis, mas eu ia fardado de Tenente com condecorações e tudo, ele ia com a sua farda normal e o outro soldado - todos da Força Aérea. Ao chegar à porta de armas perguntaram quem era. E diz ele lá dentro: «Epá, não vês quem é? A malta é de Cortegaça!». «Ah, 'tá bem, sim senhor! Pode entrar!». Entrámos. Nem sequer pediram mais nada. Ah! Fizeram-me a continência! Então fomos lá ao sítio, tínhamos todas as hipóteses, estavam pensadas. Ele tinha arranjado uma chave - porquê? Porque naquele hangar estavam depósitos de combustível onde oficiais e sargentos iam roubar combustível para os respetivos carros. E havia quem tivesse aquela chave. Ele arranjou uma também. Entrámos, fizemos um primeiro estudo da situação, vimos o que havia e sabíamos já, porque ele disse-nos, que do outro lado de uma das paredes era uma camarata de uma caserna onde dormiam militares. Portanto tivemos que organizar a colocação das cargas de maneira a que estragassem o máximo de coisas, mas não fizessem nem um risquinho naquela parede. Porque não podia haver feridos nem magoados de lado nenhum e a própria parede devia mostrar que foi respeitada. Conseguimos isso, ou seja, era eu o comando que tratava daquelas coisas. Portanto, escolhi os helicópteros, os pontos do helicóptero, os caças que lá estavam - eram Fiats. Pronto, e as cargas tinham nas suas costas um grande volume da máquina de aço do helicóptero ou do avião que seria uma espécie de um biombo para o efeito da expansão dos gases e portanto as paredes seriam poupadas. O que é que aconteceu? Foi que o telhado voou, porque todo o efeito foi canalizado na vertical. A porta, que era de aço, ficou côncava, mas não... Se morreu alguma formiga é porque andava lá perto, porque não houve mais nada. A partir daí viemos embora, chegamos à estação de caminho de ferro de Santarém e eu mudei de carro. Portanto, voltei para o meu carro, porque fui num Volkswagen alugado ali, aqui em Algés. E pronto, dali vim pra Lisboa.

Há aqui um episódio engraçado: é que ao passarmos na portagem - que antigamente, naquele tempo, só havia uma que era aquela - a seguir um bocado à frente sai-me um velhote, desce-me um velhote de trás de umas giestas que mandou parar. E eu parei, porque vi que aquele velhote não vinha fazer mal nenhum. Quem é que era? Era o Francisco Miguel, o Chico Miguel. Que era o responsável, digamos, mais acima daquela operação. E diz-me ele, eram para aí já umas quase, quase 5 da manhã, diz-me ele: «Pá, tinha de vir aqui! Eu não conseguia adormecer! Precisava de saber se estava tudo bem!». Eu disse: «Tudo nos conformes». [Ele]: «Ah, camarada! Que peso me tiraste de cima! Olha, felicidades e tal!». E voltou a esconder-se. Este episódio é único. É uma coisa que eu recordo com um sentimento de uma ternura incrível.

Pronto, depois dessa fizemos muitas mais. Eu tinha feito tropa, né? Portanto não era desconhecedor de muitas coisas. Mas depois as pessoas que se prepararam para lançar a ARA fizeram a sua preparação própria. Uma delas esteve em Moscovo e depois esteve em Havana. Outra esteve só em Havana. Nós a partir do momento em que decidimos iniciar operações tínhamos dois princípios que não podiam falhar. Primeiro: ninguém pode ser ferido com a nossa operação. Desistimos de muitas e importantíssimas só porque não tínhamos a garantia de que ia haver alguma vítima de fora; Segundo: temos que castigar isto o mais profundamente possível de maneira que o próprio regime imagine que é de dentro de si que sai isto.

De tal maneira que a certa altura havia militares que deixaram de ficar a dormir nos quartéis porque pensaram que talvez não estivessem seguros. Eu lembro-me de quando foi a operação de Tancos, que estragamos aquelas aeronaves todas, no dia seguinte ou dois dias depois estreou um filme num cinema ali ao pé na Avenida de Berna - agora não me lembro o nome - e eu fui ver o filme. E no intervalo estão dois fulanos à paisana, que eu via - portanto vim para o intervalo fumar e eles também- que estão a conversar sobre a questão de Tancos. E eles não imaginam como me forneceram os dados todos que eu precisava para um relatório! [Risos] E fiquei a saber o que é que tinha acontecido. Pronto, uns anos mais tarde eu vou a caminho de Berlim e vai no meu avião um fulano que a certa altura olha para mim e tal. Eu achei aquilo esquisito e a certa altura quando ele olhou para mim, olhei eu para ele. E ele: «Ah! Você não sabe a vida que me arranjou!». [Eu]: «Então porquê?». [Ele]: «Já estou a ver quem é que você é. Eu estava de Oficial de prevenção na noite em que você foi lá estoirar os aviões. Fui logo preso!  E até me liberar disso, você nem quer saber pelo que eu passei!». Quer episódio mais caricato do que este? [Risos]

Outra foi uma muito interessante, que eu foi... Houve cá uma cimeira da NATO em Lisboa. Ao fim de muitos anos de tentativas o Marcelo Caetano conseguiu que, pronto, eles cedessem e viessem a Lisboa - a capital de um país que era uma ditadura fascista - viessem a Lisboa - mas era da NATO - viessem a Lisboa lá fazer a cimeira. E fizeram. Foi na Ajuda. E no elevador onde vinha a descer o Ministro dos Negócios Estrangeiros português - um homem de estudo que falava assim «grrr» [voz embargada] - e o seu correspondente americano, o William Rogers, deu-se - é outra que fizemos nesse dia também, já é outra né? - e que cortou a luz e o elevador parou entre duas saídas. E agora?! [Risos] Bom, o William Rogers deve ter dito qualquer coisa desagradável ao nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros.

Outra também, que essa é possivelmente a que teve mais importância. Foi quando nessa cimeira fomos ali à Praça Dom Luís cortar as comunicações. Tínhamos também feito um estudo daquilo tudo. Chegamos lá, pronto, fui eu o operacional. Que não era exatamente como me tinham dito, mas como era uma coisa muito, muito regular, muito técnica, eu percebi perfeitamente donde é que vinha a água e para onde é que ela ia. E, portanto, vi quais eram os cabos coaxiais - grossíssimos, um molhe deles - que saiam de dentro dos correios e os que seguiam noutra direção. Então coloquei uma carga, coloquei várias cargas entre eles, em que a do lado direito ficava por baixo, a do lado esquerdo ficava por cima de cada eixo de modo a provocar o efeito tesoura. Quando rebentassem uma fazia assim e outra fazia assim, cortava como se fosse uma tesoura. Correu tudo perfeitamente e durante não sei quanto tempo, umas horas largas, Portugal ficou completamente isolado do mundo. E as próprias Embaixadas tiveram de comunicar com os seus respetivos países por meios de recursos frágeis. Mas isso causou um grande abalo, um grande abalo político relativamente a Portugal dentro da NATO.

Eu estava no Século, não é, na altura. Portanto ouvia as versões mais incríveis, havia aquele - como ainda há hoje - aquele jornalista muito especial que há nas redações que cheira tudo, sabe sempre de tudo e depois não sabe de nada, não é? Mas os outros todos, o normal, olhavam para ele e tal... Então esse levou para lá uma boca que alguém lhe disse, não sei quem foi, de que um submarino soviético tinha largado um sabotador muito especial, frente a Cascais, que veio por ali fez aquilo e depois, o submarino ficou à espera, voltou e foi-se embora. O outro fez aquilo e coiso e tal. Isto tudo não tem pés, nem rabo, nem cabeça, não é? Mas havia quem acreditava! Conclusão: passado pouco tempo esta anedota era a que se ouvia nos cafés (...) e que a PIDE, ou foi quem a criou, porque precisava de coisas assim, ou que a alimentou. Quer dizer, pelo país todo havia quem dissesse isso. Um submarino soviético e não sei quê. Pronto, mas histórias destas ui...! Eu chegava ao café e ouvia as coisas mais incríveis a meu respeito, sem saberem que era eu. E eu achava muita piada aquilo e tal, pronto, sim senhor. Claro, há uma coisa que tenho de dizer: se havia um funcionário, um trabalhador do [jornal] O Século cumpridor rigorosamente de todas as normas era eu. Era uma pessoa ultra bem comportada. Portanto não havia hipótese nenhuma de alguém desconfiar de mim.

Quando eu ia para uma operação eu era de uma frieza absoluta. Eu podia contar as pernas de uma mosca. Quando a operação estava cumprida, eu chegava a casa e me deitava na cama ao lado da minha mulher, com ela a dormir, me punha assim de barriga ao ar, vinha ao de cima toda a emoção que tinha sido estancada. E então eu tinha ali uns minutos de fortíssima, fortíssima emoção. Fortíssima emoção. Sentia-me como se estivesse a ser estrangulado. Aquilo passava e eu entrava na normalidade. A minha vida no dia a dia era normalíssima.

Aquela pessoa que me deu a carteira de fósforos, é que um dia foi preso e disse à PIDE quem eu era, e a PIDE foi-me buscar. E depois claro, tratou-me muito mal. Mas, a verdade é que eu estou aqui. Mas tratou-me muito mal. Quer dizer eu estou a sair de casa com a minha filha mais velha - que nessa altura era a única - tinha 14 meses, estava com 39 de febre e ia com ela para o médico. Quando chego ao passeio está ali um dispositivo com fulanos com pistola metralhadora e tal. Como se fossem buscar o Al Capone. E meteram-me dentro de um... sacaram-me a miúda pró colo da mãe, porque ela veio depois de mim, desceu depois de mim as escadas e eu vinha à frente com a criança. Sacaram-na para o colo da mãe, pegaram em mim, algemaram-me. Meteram-me na parte de trás dum carro (uma enguia) um Volkswagen que é um carro só de dois lugares, mas atrás tem um espaço para meter malas. Meteram-me ali, algemado, e obrigaram a caber ao meu lado a minha mulher e a minha filha. E ali fomos nós para Caxias. Quando chegamos a Caxias fomos logo separados.

Fui fotografado, elas também foram. E por volta das 11h da noite foram libertadas. A mãe e filha. Porque verificaram que aquilo era assim e se calhar não tinham condições de ter duas pessoas assim e podia haver alguma coisa que para eles seria negativa e então foram pô-las na estação de caminho de ferro. E vieram para casa, chegaram a casa já eram praí umas 6h da manhã. E eu fiquei logo lá preso e dali fui para uma cela, uma dessas de isolamento, onde fiquei, até que eram umas 9h da noite chega um PIDE que veio... um PIDE não! Um guarda prisional que veio dizer: «Venha-se embora que tem de ir à polícia». Fui à polícia. Lá me levaram. E aí então foi uma conversa que durou quase 8 dias, sem dormir. Com situações absolutamente incríveis. A partir da quarta noite, quinta noite comecei a ter alucinações. Via a água a subir. Chegar-me quase aos joelhos. Peixes a nadarem à minha volta. As paredes a aproximarem-se umas das outras, eu ia ficar quase dentro de uma chaminé. E depois não sei o que é que acontecia, alguém me acordava. Lembro-me de haver uma coisa que era horrível - ainda hoje não posso ouvir - que é: nós ficamos com uma acuidade auditiva terrível por causa da falta de sono, do não dormir. O mais pequenino ruído é doloroso. Uma moeda assim a girar em cima da mesa onde eu estava faz um ruído insuportável. Agora imagine o que é alguém dar uma palmada no tampo da mesa. BUM! Eu via fogo sair-me dos olhos. Ao fim de 7 dias, 300 horas de interrogatório, assim de conversa, eles lá perceberam que as coisas já não estavam bem, suspenderam. Puseram-me numa cama que havia lá ao lado onde... onde caí a dormir. E por aquilo que vim a saber estive assim 40 horas.

O médico que dava apoio lá à PIDE, achou que aquilo era complicado. Mandou-me fazer um eletroencefalograma. A PIDE não sei se gostou, se não gostou, sei que obedeceu. E eu vim aqui ao Júlio de Matos fazer um eletroencefalograma. Pronto, as coisas não estavam lá muito bem, mas estavam escapatórias. E voltei para Caxias. E ao fim de uma semana ou isso, quando acharam que já estava possível - porque o médico também ia dizendo como se faz, não é? - fui para mais um interrogatório. Mais 4 dias. Pronto. Sem dormir, sem me poder sentar. Portanto, na posição de estátua, não é? E então nessas horas todas, nesses dias todos passei por coisas que eu nem sei contar. Porque são, são demasiado horríveis. E também para ser franco, não sei se alguém precisa de saber isto tudo.

Eles acreditavam naquilo, nas aldrabices deles! Acreditavam que eu era uma pessoa com capacidades especiais, como as do tal submarino soviético. E então, eu estava lá em cima no isolamento, de X em X tempo, de X em X dias mudavam-me de cela, mudavam-me de quarto. Algemado de pés e mãos a um PIDE, com outro à frente com uma pistola metralhadora, outro atrás com uma pistola metralhadora! E mudavam-me de cela. E ali ficava ali mais uns dias. Depois tornavam a mudar-me! Quer dizer, eles quiseram garantir a si próprios de que eu não fugiria.

Fizeram uma separação em acrílico, não havia a menor hipótese de contacto. Falávamos por telefone, essa coisa toda. No dia em que eu fiz anos tive direito a ter visita em comum com a minha filha. E então estávamos na, lá nessa coisa, trazem a criança e quem é que se senta ao meu lado? É o Padre. O Padre Mário de Oliveira. O Padre Mário de Oliveira, Pároco da Lixa. E aconteceu mais vezes ele sentar-se ao lado nas visitas. E então ele fazia sempre um afago na cabeça - fazia naquela vez, não é? - fazia um afago na cabeça da criança, um bebé de poucos meses. E dizia-lhe qualquer coisa com piada. Dessa vez eu tinha feito um relatório em letra quase microscópica numa tira de papel, que embrulhei num pedacinho de plástico, daquelas... numa folhinha de plástico, de uma embalagem qualquer que recebi, já não me lembro bem. Aquilo formou uma espécie de um cigarro. Que, ao saber que ia ter visita em comum com a minha filha, preparei aquilo e quando ela chegou para o meu lado, aproveitei aquele movimento do Padre para lhe meter entre a fralda o cigarrito. A PIDE costumava inspecionar tudo, eu também sabia disso, tentei meter num sítio onde eles não iriam ver nada. Como não tinha metal, mesmo com Raio-X não veriam. Esse cigarro chegou à minha mulher. A minha mulher fê-lo chegar a quem devia. E aquilo era uma letra quase microscópica, mas quando foram, quando ela conseguiu passar aquilo, aquilo ainda deu umas folhas dactilografadas, com o relatório todo de tudo o que tinha acontecido, da situação que havia.

Eu fui julgado, foi um julgamento com grande impacto nacional e internacional. Estavam cá diversas equipas de televisão de várias origens. Foi bem conhecido o meu julgamento. Na Europa eu estava a ser tratado quase como o tal submarinista soviético, como fosse assim uma pessoa [que] não era normal, algum bicho esquisito. Quando eu sou a pessoa mais comum que existe e que vocês estão a verificar com os próprios olhos. [Risos]
O julgamento durou muito tempo, como imaginam. O julgamento começou pouco depois do Natal e era dois dias por semana que éramos levados lá para o Tribunal da Boa Hora e, portanto, o julgamento durou meses. Daí que a atenção internacional da comunicação social para o julgamento começou a adensar-se. Não só porque eu era apresentado como um super-homem, como o próprio julgamento tinha "trutas". Era o Salgado Zenha que era advogado de um fulano, era o Palma Carlos que era advogado de outro fulano. O Palma Carlos, o irmão do que foi Primeiro Ministro, o que foi depois Embaixador em Havana. Sei lá ... eram advogados de altíssimo gabarito! O meu era o Luso Soares. E, portanto, o julgamento foi engrossando de impacto internacional. Daí estarem cá televisões de vários sítios, não é?

Eu quando ia para julgamento ia no autocarro, no autocarro fechado da PIDE, portanto algemado com um braço e uma perna a outro preso, que era filho de um Coronel. [Risos] Que estava a par dos acontecimentos e, portanto, eu procurava ir para a Boa Hora algemado a esse, para podermos trocar alguma coisa. E ele ia-me dizendo o pouco que sabia. Mas que era o suficiente para eu perceber que o 16 de Março, que tinha acontecido antes e que foi um flop, não tinha parado e as coisas estavam-se a complicar mais. Portanto estávamos muito ansiosos por ver os resultados.

Na noite anterior ao último dia de julgamento, o guarda que vinha com um PIDE atrás e com uma barra de ferro martelar nas grades todas das celas, a ver se alguma estava serrada fez isso - aquilo era um barulho desgraçado dentro da cela, eu tapava os ouvidos porque aquilo doía-me até - pronto, ele fez isso e à saída fechou a porta. E depois voltou a abrir, olhou assim pra mim [diálogo]: «Olhe, desculpe lá, queria-lhe dizer uma coisa. Queria-lhe perguntar uma coisa». Disse: «'Tá bem, pergunte lá». «O senhor de mim não tem queixa nenhuma, pois não?». «Bom, em princípio, pessoalmente não. Mas você faz parte de um aparelho que não é nada simpático para mim». «Ah, 'tá bem, mas de mim não tem queixa nenhuma, pois não?». «Não». «Então durma bem». 

Quando na manhã do 25 de abril um moço da LUAR, o Abraço, salta do seu beliche para vir à janela fazer a mesma coisa que fazia todos os dias - saltava do beliche, ia descalço, atirava-se para as grades, ficava pendurado como um macaco e esperava que o GNR passasse à frente; quando ele passava mandava-lhe um grito de dentro da cela: «Vivá República!» e o GNR ficava sem perceber o que se passava - até que, nessa manhã, manhã de 25 de abril, ele faz o mesmo às 7 horas da manhã. Saltava, ia, atirou-se para as grades e disse: «Vivá...! Eh malta, a GNR hoje está de camuflado!». Já não era a GNR. Estávamos pra ir para a última sessão do julgamento, era o dia 25 de Abril não é? Às 7h da manhã lá vem o mesmo fulano - tim, tim: «Estejam prontos para partir para a Boa Hora às 8 horas». «Sim senhor». Chegou as 8 horas, e as 9h e as 10h e não aparecia ninguém. Depois o meu advogado, que era o Luso Soares, é que me disse que o Presidente do Tribunal - um juiz sinistro, sinistro, chamado Morgado Florindo, que eu tantas vezes vi a tomar café no mesmo café que eu tomava ali em Entrecampos - esse Morgado Florindo vem com os outros dois juízes ao lado. Entra, não chega a sentar-se, de pé diz: «Meus senhores…» - isto para quem? Prós PIDEs e prós advogados, para mais ninguém, nós não estávamos lá ainda - «… Meus senhores, não há condições para que este julgamento prossiga. Fica em suspenso até novas ordens». Até nova situação, ou nova clarificação, assim do género. E eles vieram-se embora! E nós chegamos à... Não chegamos a sair das celas. E quando chegou a hora de almoço o guarda disse: «Não, o julgamento acho que foi suspenso». Depois estes pormenores vim a sabê-los depois pelo meu advogado.

À noite, depois abriram as celas e tal, há uma série de situações. E há uma luta terrível política entre o MFA e o Spínola, o Spínola é finalmente vencido. Mas, quando vem um Coronel lá dizer que iam ser libertados todos menos uns quantos e que seria a PIDE a fornecer a indicação de quem eles eram - os que saíam e os que não saíam. Houve um alarme dentro da cadeia, já estavam... as celas já estavam abertas. Fizemos uma reunião - eu fui eleito para representar os presos, não é? No contacto com quem viesse. E a mensagem era: ou saímos todos ou não sai ninguém. E foi isso que eu disse ao Coronel. E o Coronel ficou assim com cara de... Saiu, 'tá bem, saiu. Passado, isto eram para aí quê? 10h da noite, não, mais. Para aí 11h da noite. Depois da meia-noite então vem - já no dia 26 - então vem a ordem de saída, e pronto, e saímos todos. Porque se não saíssemos todos não saía nenhum. Estavam cá fora centenas de pessoas, muitas centenas de pessoas que estavam ali quase há 24 horas a gritar para nos salvar, para nos soltarem. Quando se abriu a porta e nós saímos aquilo... Eu a certa altura fui pelo ar às costas de não sei quem, até perdi uma bota. Foi assim. O meu advogado também lá estava - que fomos logo para minha casa em Lisboa e ficamos a conversar um bocadinho.  E pronto, a partir daí foi vida nova, não é? Foram tempo de alegria constante, permanente. Às vezes nem dava para adormecer. Até hoje! Nós hoje temos, depois há o 25 de novembro em que a direita provoca alterações. A partir daí inicia-se um período com sucessivas mudanças, alterações na Constituição. Fizeram-nos perder muita coisa, mas o que existe ainda hoje é uma Democracia - e é uma Democracia das mais sólidas da Europa! Portanto eu estou muito feliz, apesar de tudo o que a Direita nos conseguiu roubar já da Constituição, dos aspetos legais e sociais, apesar disso, o

que ficou ainda é, ainda dá, enfim, os traços de uma das Democracias - Democracias Capitalistas - mais, mais consolidadas do Mundo! Onde ainda, onde ainda é bom viver! E quem não souber o que isto é, que vá a Espanha, ou que vá a França, ou que vá à Alemanha, ou que vá ao Reino Unido ver como é que são as Democracias lá. A ver se são melhores do que esta. E vão ter surpresas. Porque onde é que há um serviço - apesar do que tudo o que lhe têm feito - onde é que há no resto do Mundo um Serviço Nacional de Saúde como o nosso? E quem é que o criou? Quem diz isso diz outras coisas, não é? E é bom ser português e viver em Portugal. Porque não conheço nenhum País onde qualquer cidadão tenha melhores condições políticas do que eu tenho para continuar a viver".