Nome: Humberto Rui Ramos Moreira
Ano nascimento: 1949
Local do registo: Algés
Data do registo vídeo: 13-10-2021

Transcrição

"Como sabe eu sou natural da Santa Iria de Azóia e houve muitos presos políticos desde os anos 30. Tive um tio meu que esteve preso (...) [que] tinha uma taberna. Fazia aqueles petiscos: os pipis, o polvo, aquelas coisas. Eu ia para lá ajudar, às vezes, ao domingo à tarde que eles tinham muita gente. As pessoas vinham da bola, queriam conviver e petiscar. Uma vez fui lá ajudar - havia a parte do balcão, das mesas, depois, na parte de trás, havia aqueles barris grandes de vinho, aquelas coisas todas - e ele chamou-me. Chamou-me: «Olha Humberto Rio, anda aqui». [Eu]: «'Tá bem, 'tá bem». Pega na minha mão e põe-me um papel na mão. E diz-me assim: «Guarda muito bem guardado. Depois de leres, destrói. Não fales disto a ninguém». E a minha mãe era irmã dele [risos] dava para estar, de facto, descansado. Mas ele também já sabia que eu, digamos, era contra [o regime].

Eu estava desejoso de chegar a casa. À noite quando chego a casa, assim com uma luz - era o Avante - li aquilo de fio a pavio e, como ele disse, depois destrui. [risos] Aí cumpri a orientação, o conselho que ele me deu, destrui…

Já em [19]69 - tinha 19 anos, portanto, houve umas pseudoeleições, pseudodemocráticas. Já foi com o Marcelo Caetano. A CDE concorreu, mesmo sabendo da fraude, mas concorreu no sentido do esclarecimento, no sentido de falarmos dos problemas do povo - e nessa altura havia guerra colonial, havia uma grande exploração, ordenados miseráveis, aquela vivência miserável de nem sequer ter as três refeições num dia. Casa de banho não existia, a mortalidade infantil era enorme. Um país miserável - miserável para a maior parte das pessoas, que havia gente riquíssima.

Em termos de participação, de comícios, de contactos com população, da distribuição porta-a-porta - tanto quanto era possível porque isto era tudo muito limitado. Não só era limitado, quanto o medo que existia. Muitas vezes, apesar das pessoas querem mudar, tinham medo das consequências - que eram graves.

Há uma primeira prisão, que foi 24 horas. Foi em [19]71 / 72 - agora não me lembro bem o número, [19]71 talvez. Distribuímos um comunicado dos estudantes à população. E foi na feira do livro. «Olha, vamos para a Feira do Livro». Lá organizamos, na Feira do Livro, que ainda era na Avenida da Liberdade (...) e fomos distribuir esse tal comunicado à população. Havia aquelas barracas do livro, como há agora. A polícia viu e apanhou-me. Foi essa a minha primeira prisão. Mas não fui para Caxias, fui para as masmorras, para as catacumbas, lá em baixo do Governo Civil.

Fui liberto depois de julgado. Dali fui para o Tribunal de Polícia. E o meu pai - eu não tinha o dinheiro - teve de pagar uma fiança para eu ser libertado. Já não me lembro [se] cinco contos - mas cinco contos na altura era muito dinheiro. Não posso precisar a quantia exata, mas era dinheiro. Não era qualquer um que tinha para pagar.

Houve uma altura em que decidiram: «Queremos organizar…» - isto ainda da organização de estudantes - «… queremos organizar um movimento de juventude. Tu estás ali em Santa Iria…» - não sei se ainda morava em Santa Iria - «…queres trabalhar nessa área, em vez da área estudantil?». Aquela distribuição em função das necessidades. [Eu]: «Está bem.». E fui lá. Mais outra vez esse tal contacto, a senha e a contrassenha. E passei a estar organizado em termos de juventude trabalhadora, para a área trabalhadora em geral - e foi muito bom.

Muita gente foi mobilizada. Em plena guerra, as pessoas queriam-se era ver livres da guerra e do fascismo. (...) A adesão. As pessoas ouviam, havia muita recetividade.

A segunda prisão acontece, mais uma vez, noutras eleições - aí em [19]73. Eleições que não eram eleições, ganhava sempre o mesmo, claro! As pessoas nem iam às urnas. [risos] Em [19]69 ainda chegaram a ir, mas depois nem iam, não vale a pena, aquilo era uma farsa.

Mas aproveitávamos essa pseudoabertura para contactarmos com as populações. E andávamos a distribuir aquilo. Não sei se conhecem Vila Franca [de Xira] - há o largo do pelourinho. E estávamos ali no largo a distribuir, na rua [quando] aparece a carga policial. Eu corri mais que eles, fugi. Fugi para uma farmácia. (...) E o senhor da farmácia abriu-me aquele estrado, aquela porta para eu entrar - e eu entrei lá para dentro. Mas eles viram e foram-me lá buscar. Mas [foi] outro gesto de solidariedade.

E então fui para Caxias. Era uma cela - [nós] eramos quatro - um quinto disto [da sala onde está a ser entrevistado]. Havia, num canto, umas camas - uma por baixo, outra por cima - e outra do outro lado.

Depois de… já não me lembro… três ou quatro dias é que fui para interrogatório, que aí já era no Reduto Sul. Onde eles tinham os serviços administrativos, as mulheres - nem pensava que havia tantas mulheres PIDEs - os carros todos, um parque automóvel enorme que a gente via. Isto foi em setembro de [19]73. Já havia muitas organizações internacionais e até juristas que davam um apoio, uma solidariedade, em relação aos presos.

E eles puseram-me a questão se eu queria a presença de um advogado.  Eu até nem estava a acreditar no que eles diziam: «O quê? A presença de um advogado?». «Sim, sim». E essa - não me lembro do nome da senhora - essa advogada não teve presente desde o início, mas teve presente na maior parte do interrogatório. Pelo menos tinha uma testemunha e também me sentia acompanhado.

Antes disso - agora já saltei [uma parte], agora vou atrás. Quando eu vim do Reduto Norte para o Reduto Sul sou posto numa cela - mas aí sem camas, sem nada. Só com uma mesa e com um PIDE a vigiar. À espera de ir para interrogatório, que ainda foi uma hora ou duas, não sei quanto tempo é que foi - esquecia-me deste pormenor, que é importante. E nessa cela, que já era no Reduto Sul - não era bem para presos, era para presos em passagem - estava um PIDE jovem, quase da mesma idade que eu. Eu olhava para ele, ele olhava para mim - assim pelo canto do olho, a ver o que é que eu fazia. Eu olhava para as paredes e vi sangue nas paredes. Vi sangue nas paredes e até cabelos. Às vezes não conseguiam limpar tudo.

Até que me chamaram para interrogatório. No interrogatório, numa sala de interrogatórios, lá com o escrivão - a pessoa que escrevia - e o inspetor da PIDE que me interrogava. Esses inspetores da PIDE, de facto, tinham uma escola... As perguntas eram como metralhadoras. Para ver se entrávamos em contradição. Aí, com a presença de advogado, já havia mais alguma diplomacia - forçada, falsa - mas já não diziam palavrões, nem murros na mesa. Nunca me bateram, atenção. Eu via, de facto, o sangue nas paredes, mas mesmo quando tive [sozinho] não me bateram. Estive de pé e isso tudo. Cá em baixo não. E tive essa oportunidade, que isto já foi em setembro de [19]73, eles queriam dar essa aparência de que as eleições eram livres e que as pessoas tinham direitos.

Portanto passado cinco dias, acho que foi de 23 de setembro a 29 ou 28 - eu já não me lembro das datas, posso-lhe dizer mais tarde (...) - disse-me: «Vai sair!». Foi assim de um momento para o outro. Nem havia telefones, não havia possibilidade de comunicar. Portanto não me restava nada se não ir a pé para a estação de Caxias. Mas nessa altura parecia que tinha asas nos pés. [risos] Não me custou nada o caminho, antes pelo contrário! [risos]

Não cheguei a ser julgado - da outra, da Feira do Livro, sim. Dessa não. Porque foram presos muita gente, alguns dos que vieram aqui - muitos já morreram - se calhar passaram por esta experiência. Porque foi muita gente presa nessa altura - 23 / 22, não me lembro quando foi, foi em setembro. Na chamada Primavera Marcelista, que queriam dar um ar de pseudodemocracia, mas que era só ares. Conteúdo vazio. Democracia zero.

Houve nessa altura uma grande pressão internacional, porque já estávamos em [19]73! Já havia CEE [Comunidade Económica Europeia], já havia não sei quantos. Penso que foi devido à grande pressão internacional - até de embaixadas! Aquela guerra colonial não se justificava, uma guerra colonial quase às portas do século XXI?

Aliás, digo-lhe, se alguém me diz: «Qual foi o dia mais feliz da tua vida?». Eu dizia que tinha sido o 25 de abril. E tive dias muito felizes - casamento por amor, filhos, essas coisas. Mas aquele dia era um dia tão esperado. Tão esperado".