Nome: Maria Guilhermina Pereira Galveias
Ano nascimento: 1935
Local do registo: Couço
Data do registo vídeo: 24-02-2022

Transcrição 

"A nossa terra chama-se Couço. Hoje orgulho-me de ser do Couço, porque abri os olhos muito cedo. Sofri muito, mas veio o dia da liberdade.

Eles prenderam-me, porque um miúdo que tinha uns 15 ou 16 anos fez uma asneira grande a uma vizinha minha. Eu ouvi-a, ela a gritar atrás da minha casa, no sol-posto, e fui ver o que é que tinha acontecido. [Ele] fez uma ação ordinária à minha vizinha e ela caiu para o chão enervada e ele fugiu pela vinha fora. O marido depois foi metê-lo em tribunal.

[Foram ao] presidente da Câmara de Coruche, que era o doutor Ribeiro (?), [que] era também da PIDE. Então pediram a ele que não desse [ordem] dele ser julgado, que ele ficava logo sujo no nome. O presidente da Câmara [disse que sim, mas] em troca ele tinha de entrar para informador, e então escangalhava-lhe o processo. Então o pai vinha aqui à Guarda todos os meses apresentar-se no lugar do filho, que o filho não tinha idade para dar volta nenhuma, até ele ter idade. Isto descobrimos, eu e o meu marido, depois do 25 de abril. Porque eu não era inscrita [no PCP], mas fazia reuniões com os camaradas, trabalhava, fazia fundos e assinaturas, todos os trabalhos do partido eu fazia no sol-posto, naqueles montarecos. E ele sabia. Então para ganhar os 200 escudos por mês, que era o que ele ganhava [denunciou-me] - estava lá tudo escrito [no processo na Torre do Tombo]. Em Portalegre era Pedro o pseudónimo, no Entroncamento era Assobio o pseudónimo dele. Então estava isso tudo escrito. Ele é que me tinha feito a cantareira toda, para eles me tratarem daquela maneira, [para] pensarem que eu tinha grande gente agarrado a mim.

Foi a [razão] deles me torturarem da maneira que torturaram e da maneira que sofri. Foi ele um dos culpados e o pai também ajudou o filho a fazer o mesmo trabalho. Foi daí que foi a minha prisão. Não foi nenhum camarada que me fez mal. Eu depois tinha camaradas, a Maria Carmina, a Maria Rosa, o (...), pessoas que me davam trabalho lá para baixo - eu não descobri [denunciei] ninguém. Quando pedi o processo lá está escrito. O último processo que me fizeram diz assim: «Maria Guilhermina Ferreira Galveias, mais uma mó de perguntas. Mais uma vez diz não. Sou eu testemunha», e era o escrivão outra testemunha.  Está lá escrito no processo.

Foi um dia que eu tive muita alegria comigo própria. Foi aquele dia quando eu aguentei aquilo tudo sem descobrir [denunciar] nenhuma delas. A tortura é tão grande. Eles tinham tudo na mão, que eu fazia isto, fazia aquilo, fazia assim, fazia assado - e é verdade que eu fazia. Mas descobri que não havia de fazer aquilo nem que me matassem e foi isso calhou assim. Foi por essa a razão por que eu venci o meu sofrimento. De toda a maneira os que estavam cá fora não iriam passar o mesmo que eu estava a passar lá dentro.

Fui presa logo na abalada. Levei a filha comigo, eles só na parte da madrugada é que iam buscar os presos a casa. Juntaram 15 homens e cinco mulheres aqui no Largo do 1º de maio e depois partimos para Coruche. E de Coruche é que se partiu para Caxias. A minha filha tinha oito aninhos. Estava-me a custar muito ela perder a escola, mas também me estava a custar ela vir para trás, tinha duas coisas custosas. Mas fui pelo lado dela, de deixá-la ir para a avó e ela não ir [comigo]. Então ela ficou cá fora. Eu fui com aquela mágoa, que a menina agarrou-se ao pescoço e à minha cintura a gritar com toda a força que não largava a mãezinha dela. Isso foi uma crueldade muito grande logo ali em Coruche.

Depois fui para a camioneta onde já estavam os outros camaradas e lá chegámos a Caxias. Chegámos a Caxias eu fui a primeira [a ir] para as interrogações.

Assim que lá cheguei puseram a fotografia do meu marido à frente dos olhos, se eu o conhecia. Eu disse que sim. Então ela: «Então vou arrumar a fotografia, que agora é cá comigo». Uma chamada Madalena, má que nem... parecia um bicho a esfarrapar uma rês. Parecia aqueles bichos na selva a esfarrapar uma rês para comer um bocado de carne. Parece que a mulher dava-lhe sei lá o quê. Tanta porrada, tanta porrada que ela me deu logo à chegada, que eu fiquei... Urinei-me. Fiquei com a cabeça feita num oito, com tanta porrada que ela me deu na cabeça logo naquela altura. Eu fiquei mesmo do pior.

Depois entrou outro, um homem. Ela batia de vez em quando, de vez em quando uns encontrões. Teve ali umas horas comigo. Entrou outro. Esse outro fez-se muito bonzito, a fazer a parte que era bom. E eu a descansar as dores que ela me provocou naquele dia. Isso continuou a fazer essa tortura de pancada contra as paredes, a cabeça contra as paredes, de reboleta. Puseram-me num banco no meio da sala, um do lado, outro do outro, trocavam-se ao pé de mim. Um batia dum lado, o outro batia do outro. Passavam palavra, tornavam a bater os dois ao mesmo tempo, até eu desmaiar, cair para o chão. Batia com a cabeça no chão, tinha hematomas. Ia-se passando dias e noites, sempre naquela coisa, sempre com a tortura do sono. Essas não chegaram. Ainda foram a pontos de eu já não ver o que via, já não ouvia o que ouvia. Já estava com a cabeça toda destruída da memória com tantas noites perdidas.

Ao fim dos 11 dias e 11 noites de estar naquela tortura, eu que já não era a Maria que sou, levaram-me para Caxias. No outro dia, ao fim de 24 horas de lá estar, foram-me buscar novamente. Eu pensei: «Há aqui qualquer coisa, que eu não estou a ver bem isto». Lá cheguei à António Maria Cardoso, onde estava o Silva Carvalho à secretária e o [PIDE] que foi comigo pôs-me em frente dele. Então ele perguntou-me se eu estava para gozar com a polícia. Eu nem sabia o que é que tinha, dava-me vontade de destruir sei lá o que fosse, com tanta razão que eu 'tava em cima da minha cabeça e em cima do meu corpo todo. Então bati na secretária e disse: «Vocês estão a arranjar toda a malandrice para me torturarem mais. Eu não abro a boca. Não falo e não falo», e desapareci. Não sei se foram eles que me fizeram alguma coisa, se fui eu que desmaiei. 'Tive mais seis dias e seis noites sem saber onde estava, sem saber nada. Estava morta. Estive morta.

Levaram-me para Caxias novamente a fim daquele tempo. Estavam as camaradas aqui na sala. A Olímpia disse-me ao fim de dias [diálogo]: «Ai Maria, eu nem quero pensar como tu entraste aqui». «Então diz-me lá». «Não digo não Maria. Não digo, porque tu ainda ficas pior. E eu evito esse mal para ti. Eu evito-te esse mal». «Mas eu gostava de saber». «Mas não. Não digo não», e não me disse. Eu, no fim do 25 de abril, ainda lhe perguntei novamente e ela disse-me: «Não. Descansa que eu não te digo, que ainda é pior para ti», como eu entrei lá na sala. Eu não via ninguém, eu ia morta.

No outro dia deitaram-me numa cama com certeza, que eu não dei notícia. No outro dia acordei, a memória veio e não sabia onde estava, não sabia de nada. Elas lá devagarinho comigo, lá comecei a recuperar um bocadinho a memória - o que é que se tinha passado. Digo assim [diálogo]: «Quanto tempo 'tive lá eu?». «Olha, 'tiveste lá seis dias e seis noites. Abalaste em tal dia, vieste neste dia. São 6 dias e 6 noites que lá estiveste». «Então e eu não dei notícia de nada?». Mas estava toda pisada, toda negra, da cor deste casaco, nos braços, nas ancas. A boca toda inchada, eu toda inchada. Eu estava feita num trapo. Eu nem sei como é que eu estava. Toda negra, com tanta pancada que eles me deram sem eu saber. O cérebro estava parado ou sei lá o que é que era - eu não vi, eu tenho que dizer a verdade que foi esta. Então, depois começaram-me a dar uns remédios à porta da sala lá em Caxias, comecei a recuperar com o tempo. Depois pensei, ao fim de dias de estar assim mais equilibrada na cabeça. Achava-me revoltada. Um ódio, uma coisa que eu tinha ganhado com aquela força da tortura, eu ganhei não sei o quê comigo própria, que eu pensei: «Eu tenho que fazer qualquer coisa mesmo agora para os desmascarar, como a gente aqui chega. Como eu aqui cheguei, quantos não chegam nestas condições? Então eu tenho de desmascarar isto». Mas eu calei-me com as camaradas da sala, porque as paredes têm ouvidos. E pensei: «Eles não me fizeram processo, porque não conseguiram nada para me levantarem processo. E agora podem-me levantar processo por qualquer coisa que possam apanhar. Mas eu tenho que fazer qualquer coisa». E fiz uma quadrazinha, dentro da casa de banho, sozinha. Essa quadra não deu para dar muito alarme dentro do pessoal da sala, porque lá está, as paredes têm ouvidos.

 

[Canta, com a melodia de Tudo Isto É Fado, de Amália Rodrigues]

 

"Procurasteis no outro dia

Se eu sabia o que era a cadeia

E eu disse que não sabia

Nem fazia uma ideia

 

E eu disse que não sabia

Menti-te naquela hora

Eu disse que não sabia

Mas vou-te dizer agora

 

Salas compridas

Grades corridas

PIDEs em espia

 

Tudo isto é triste

Tudo isto existe

Aqui em Caxias

 

Salas trancadas

Vidas torturadas

Noites hauridas

 

Tudo isto é triste

Tudo isto existe

Aqui em Caxias"

 

"Quanto tempo esteve na prisão?"

"Quanto tempo? Quatro meses e meio. À volta de quatro meses e meio.

Depois puseram-me em liberdade. Vim para a terra. Muito magoada ainda, com muitas dores, ainda trazia muitas feridas - e ainda hoje as tenho. Ainda hoje tenho muitas. E estou a sofrer, ainda hoje a cadeia que sofri. As torturas da cadeia. Essa Madalena Ascensão, outros mais que lá havia. Essa cambada, deram cabo de mim, tudo. Ainda hoje estou a sofrer isso tudo.

Hoje digo: parece que tive um milagre na minha vida, por tanta coisa ter aguentado e estar ainda hoje aqui com coragem para falar e desabafar a verdade da realidade do fascismo e a realidade da tortura que fizeram no povo. Uns na guerra, outros nas cadeias. Outros morriam à fome por todo o lado. Era um crime que a gente tínhamos em cima de nós".