Nome: Mário José d’Araújo
Ano nascimento: 1935
Local do registo: Algés
Data do registo vídeo: 08-10-2021

Transcrição

"Eu sou filho de um tanoeiro (...), e de uma corticeira. Portanto a minha casa... Eu sou de uma família com 6 elementos, portanto, eu e mais três irmãos. Somos dois rapazes, eramos, dois rapazes e duas raparigas, o meu pai e a minha mãe. A minha mãe trabalhava numa fábrica de cortiça, modelava a cortiça em rolhas, em aparas e outras coisas do género, sucedâneos da cortiça. E o meu pai fazia barris, tonéis - o próprio nome é tonéis - e barris normais para vinhos. Fazia isso. Por todo o país havia empreitadas e quando chegava a altura das vindimas ele orientava-se através do norte do País, especialmente ali pelo Douro, onde as colheitas das vindimas eram mais ricas, não é? Na altura eles ganhavam melhor porque saíam aqui da terra e a minha mãe, coitada, ficava a orientar os quatro filhos, corticeira. 

Eu levei anos a ver a minha mãe almoçar, se é o que se pode chamar, mas uma refeição durante a hora de almoço - tinha uma hora para almoçar, entre o meio-dia e a uma da tarde. (...) A cerca de 300 metros da nossa residência era a oficina onde trabalhava. E ela tinha tempo para ir à praça para ir comprar alguma coisa, normalmente fiado, porque não tinha dinheiro. Só pagava quando podia ao fim de semana, recebia-se à semana na altura. E eu andava na escola, miúdo, dos 7 aos 11 anos. E a minha mãe normalmente almoçava uma caneca grande de café - uma caneca ou de loiça ou de esmalte - e uma fatia de pão escuro, ou coisa do género. E a minha mãe leva anos a fazer isto. Anos a fazer isto. 

São todos falecidos - quer o meu pai, quer a minha mãe, quer os meus três irmãos. Só eu, o mais novo da prole, ainda existe.  

Comecei a trabalhar com 11 anos, logo que saí da escola primária. Por ironia eu calcei sapatos, já agora, a única vez que calcei sapatos - havia umas coisas que substituíam os sapatos naquela altura, que eram umas coisas mais baratas, que eram as alpargatas, não sei se se recordam. Pronto, era uma coisa de ganga, podia ser cinzenta ou azul - normalmente era azul - e era borracha por baixo. Começo a trabalhar com essas alpargatas calçadas, que eu já referi, como ajudante de ferreiro, a dar à forja. Com sapatos, que não eram sapatos. (...) Que eu só calcei sapatos de cal quando fiz exame da quarta, portanto com 11 anos, e eram os sapatos do meu pai. Calçava o 41 e eu calçava o 38. Mas mandaram engraxar os sapatos, ficaram bonitos, atacadores novos. E eu vim fazer - eu morava na Cova da Piedade - vim fazer o exame a Almada, à escola Conde Ferreira e levei os sapatos do meu pai engraxados. Com muito sacrifício, é evidente, mas até Almada são 2 quilómetros. Ainda, sim senhor, fiz o exame com dores terríveis, mas pronto. Depois veio a pauta, fiquei bem. Ficámos quase todos bem, um ou dois falhou, mas não interessa. E para baixo, a meio do caminho, eu já não conseguia aguentar os sapatos. Foi a primeira vez. Usava era as alpargatas. 

Eu quando falo de mim, não é de mim que eu quero falar. Quero falar dos outros, da minha geração, que passaram todos mais ou menos por estas dificuldades. A pontos de, por exemplo, gostava de deixar esta nota: a minha mãe teve dias e dias que não acendia o lume porque ou não tinha fósforos, ou não tinha petróleo, ou não tinha carvão. E então eu e o meu irmão vínhamos das chinchadas - não sei se sabem, é roubar fruta às quintas - porque sabíamos que isto acontecia com frequência e [para] evitar que isto acontecesse às vezes até fruta verde nós comemos, que era melhor do que não comer nada.  

E isto antes que chegasse à consciência política, chegaram as condições, a consciência da vida que tínhamos. Que não era justa. E eu comecei a ler e depois ouvia a telefonia. E aos 17 anos, por estas razões todas e outras, aos 17 anos fui declarado tuberculoso. Então vi a minha vida - de ajudar ao orçamento da casa... Tive uma série de anos, muitos anos, muitos dias, muitas horas, muitos meses, enfim. Eles iam trabalhar todos, eu ficava em casa à janela, 3º andar, num sótão. E via os meus amigos todos irem para a praia, de dia irem aos bailes à noite, irem jogar à bola. E eu ali naquela janela, tempos e tempos, sem poder participar com eles. E eles visitavam-me, os meus amigos, também aí a solidariedade. Esta privação da companhia tornou-me, de facto, consciente de que eu tinha de fazer alguma coisa para ajudar a que a vida não fosse isto, fosse melhor. 

E depois dos 17 anos, os 18 anos, levaram-me a contactar coletividades. Onde a solidariedade, onde a partilha, portanto, a companhia. E a certa altura coletividades, livros, bibliotecas, livros clandestinos - portanto só chegavam aqui livros vindos do Brasil: As Vinhas da Ira do John Steinbeck, os Subterrâneos da Liberdade do Jorge, etc. Eu lembro-me quando li os Subterrâneos da Liberdade do Jorge Amado foi um deslumbramento, que afinal era possível haver outra vida: tinha de procurar. E então a minha procura era no sentido de haver pessoas com outra capacidade intelectual e de formação, já política, portanto. E eu gostava de os ouvir. E o que é que me levava a procurar? As assembleias gerais das coletividades. Aquilo era um meio muito populoso, com muitos trabalhadores - quer corticeiros, quer da metalurgia pesada. O arsenal do Alfeite, as fábricas de cortiça proliferavam ali, [havia] uma dúzia de fábricas de cortiça. Três maiores e as outras com fabricos de 40/50 pessoas. As maiores, duas delas - a Bucknall, que era conhecida pela companhia, e a Rankin que era um pouco menor - uma teria 1800 trabalhadores e outra 1100/1200. Portanto eram duas empresas... muitas famílias que viviam daquilo. E esta solidariedade que se encontrava nas coletividades ajudou a tomar a consciência que havia qualquer coisa por fazer que não só as coletividades.  

Comecei por ser trabalhador da sociedade cooperativa Piedense, comecei por ser empregado. Aí já com uma noção política. Ainda não era filiado em partido nenhum, mas já com pessoas que eram filiadas no Partido e conversavam - Partido Comunista Português. Conversávamos muito e eu ia bebendo aquilo como uma fonte de cultura, uma fonte de saber e de contactos que nunca tinha tido antes. Acontece que naquela altura eu começo a querer mais e a dizer: «Eu tenho de passar das coletividades a uma coisa com mais interesse, mais incisiva, mais direta». E sou abordado por um homem também dessa coletividade, que foi também preso político antes de mim, e que me aliciou para o Partido Comunista. Disse-me: «Epá, o Arsenal do Alfeite ficou sem controleiro, o Partido precisa de alguém e não há. Há uma série de pessoas que saíram, que foram presas e precisamos de um jovem que vá agarrar aquela célula tão importante». E depois eu disse: «Mas eu nem sou do Partido, quanto mais. Eu nem sei o que é isso. Tenho ouvido falar na célula, mas não...». [Ele]: «Não, mas a gente fala».  

Ele (...) era o presidente da assembleia geral da Coletiva Piedense - João Raimundo. Natural da Moita, mas o homem trabalhava naquela fábrica, na segunda fábrica de cortiça na Romeira. Um homem muito prestigiado, já pelo lugar que tinha e pelo homem que era. Era um homem solidário, um homem sempre pronto a ajudar. Era um homem muito querido. E ele transmitiu isto que eu estou a dizer dele para mim: «Tu és filho de uma família conceituada, toda a gente trabalha. Vocês dão-se muito bem, toda a gente vos conhece. É uma família alegre, não obstante as dificuldades. Tu, toda a gente te conhece, toda a gente gosta de ti» - era verdade, não desfazendo. E eu fiquei vaidoso [diálogo]: «Epá vou entrar para o Partido e vou fazer um trabalho destes». «Não, depois hão de falar contigo se tu tiveres possibilidade vais para a clandestinidade». «Não, não, não. Isso é que eu não quero! Eu contraí casamento e tenho um filho. Não vou agora, nem pensar». (...) «Só fazes aquilo que quiseres. Estava-te a dizer é que tu és uma pessoa (...) e isso facilitava-te a vida. Mas tudo bem, tu fazes como entenderes. Vais pensar, eu nem quero a resposta agora, eu depois falo contigo». E eu, disse à entrada desta conversa, fiquei vaidoso. E esta vaidade foi crescendo em mim. Andei ali uns dias...  E depois era eu à procura do homem! Eu queria e ele não me aparecia - era mais ou menos clandestino, trabalhava, mas era mais ou menos clandestino. 

Até que eu o encontrei e disse-lhe: «Ó João, eu gostava de efetivamente, ...». Pronto. Tratei das coisas, trataram-me das coisas por mim. E eu saí da cooperativa, já era caixeiro, já era um homem. Tinha melhorado, tinha estado frente à forja como ajudante-aprendiz de ferreiro, praticamente descalço e as fagulhas faziam-me saltar. Passei dali para uma cooperativa a aviar pessoas ao balcão, eu que ainda tinha uma instrução muito rudimentar, fiquei (...). Eu digo isto na paródia mas é verdade, eu não fiquei vaidoso, fiquei «vaitreze», «vaicatorze», fiquei por aí acima. Verdade. Isto é tal e qual como eu estou a dizer. Não senhora, fiquei vaidoso. E ainda hoje sou vaidoso da vida que tive. 

Depois entrei apara o Partido, fui para o Arsenal do Alfeite, em [19]62/63, por aí. Depois, aliado a isto, consegui dentro do trabalho que ia fazer a nível partidário organizar a célula do Partido. Reuníamo-nos periodicamente, às vezes semanalmente, às vezes de quinze em quinze dias, conforme as condições que havia à nossa volta e às possibilidades e às necessidades que havia. Fizemos a primeira - desde sempre no Arsenal do Alfeite - uma lista de pessoas, portanto, de operários e empregados, colaboradores, pessoas do fórum administrativo e trabalhadores - quer caldeiros, quer serralheiros, quer eletricistas, quer carpinteiros (...) enfim, tudo o que havia.  

Conseguimos a nossa lista, a nossa célula organizada dispersamente depois por várias oficinas. Uma lista de quase mil subscritores e apresentámos um pedido de aumento de salário, que não havia há uma quantidade de anos - talvez uns 10 ou 12, na altura. Nunca se tinha feito uma coisa daquelas e nós organizamos. Quer dizer, esta foi uma das atividades. Conseguimos um aumento, eu não me recordo, mas de 4 escudos (...) semanais - que dava 12 escudos ou 14 escudos por mês, uma coisa assim. Pronto, esta foi uma atividade. Outra coisa era interessar pessoas e aliciar pessoas para o Partido. Aliciámos algumas pessoas. Fizemos um trabalho - claro, a minha figura, a minha pessoa à parte - mas a célula fez de facto um trabalho criativo. Conseguimos muitas pessoas para o Partido. 

Até que organizamos uma escola. Aparece um homem lá em Almada, na Cova da Piedade para a Cooperativa Piedense e cria um curso de Cultura Geral. E eu fico: «’Pera aí, é aqui! Tive escola, Cultura Geral, isto é porreiro. Sou do Partido, ninguém sabe que eu sou do Partido, mesmo as pessoas que vão comigo não sabem». Só sabia a célula, não é? Dava-me com toda a gente, ninguém ia agora adivinhar que era um membro do Partido. E essa aura, digamos assim, foi criando raízes e chegou à PIDE. Chegou à PIDE: «Fulano tal é uma pessoa que está ligada às coletividades, à Sociedade Filarmónica e Artística Piedense, à Cooperativa, à Incrível Almadense em Almada e tal».  

E depois comecei a ser uma das pessoas que organizou aquela escola que começa na cooperativa. Escola para adultos, cursos de cultura geral, mais tarde, a partir daí, curso dos liceus. E esse curso dos liceus tinha as disciplinas - tinha a matemática, a geografia, a história, tudo aquilo. Tudo isso começou a dar-me uma cultura. Eu, à vida que tinha, não tinha hipótese nenhuma de ser um frequentador da escola como um aluno normal. Eu era um organizador: o curso de história só tem 7 pessoas, é fulano, fulano e fulano; eu estabeleço os horários de acordo com a possibilidade quer dos alunos - as horas que tinham livres, que era tudo pessoas que trabalhavam - e os professores - que também tinham de ter horas livres, também eram empregados. E eu era a pessoa que coordenava isto, não é? Uma das pessoas que coordenava isto. Mas era o que geria com mais insistência isto tudo. Isto obrigava-me a assistir a esta aula, aquela aula. Eu fui sem ser um aluno propriamente dito, mas fiz o primeiro ciclo dos liceus. E depois quando fui preso estava a fazer o exame do 5º ano, mas pronto, a PIDE já andava atrás de mim.  

A escola chegou a ter duas células, porque tínhamos cursos diferentes. Chegámos a ser cento e tantos alunos, movimentávamos muita gente. Epá, eu vou dizer aqui coisas que tenho que dizer. Chegaram a frequentar as nossas escolas, não era bem para aprender, mas para se inserirem no meio onde eles podiam... José Manuel Judas, conselheiro da Revolução. O Almirante Martins Guerreiro frequentou a nossa escola, não para aprender, mas para ver como é que aquilo... Pessoas como essas, que ajudaram aquelas células de uma maneira. Ainda hoje são nossos amigos. Sempre ao nosso dispor (...). Visitavam as nossas aulas de cultura geral, em que se falava de tudo. Mas a cultura geral foi ao ponto de marxismo, leninismo faziam parte das nossas [aulas].  

Isto chegou à PIDE, é evidente. Eu casado, tinha um filho. E a certa altura a minha mulher engravida, a segunda vez: «Como é que vai ser? As dificuldades...». «Tem que ser, a gente...». Na altura ainda não havia as ecografias, saber se é menino se é menina, não havia. Mas a gente gostava muito de ter uma menina. E andámos naquilo. E há um belo dia que eu venho a Carnaxide, mais ela, visitar a família dela - eu nunca tinha vindo a Carnaxide na altura, vim depois muitas vezes. 

Mas chegamos a casa, passámos aqui o dia e chegámos a casa, deitamo-nos normalmente. Não houve mais contacto nenhum senão o sono a tomar conta de nós. E diz-me a minha mulher - que, tenho que dizer aqui, é uma companheira indefetível, como são os meus filhos. E ela sobressaltada: «Ai! O que é isto? O que é isto?». E a menina, que veio a saber-se depois, começou a mexer na barriga da mãe. É óbvio que eu não fui trabalhar. 

Ficámos a noite toda a mexer na barriga e a menina dava pontapés - a menina, ainda não sabíamos que era menina - dava pontapés e pronto! Era de manhã, eram 6 e tal da manhã. Isto foi no dia 17 de julho de 1967. Ficámos de tal maneira. Rompeu o dia: «Olha não vou trabalhar». E eu ia sempre trabalhar. Eu, desde miúdo, eu nunca tive na caixa de providência e trabalhei até aos 65 anos. Hoje já tenho um bocadinho mais. E fiquei a brincar com a barriga da minha mulher e ela também: «Olha, então fazemos assim: eu vou a casa da minha mãe…» - morava a uns 300/400 metros - «…e tu ficas em casa. E vou buscar umas coisas, gente leva, faz um lanche e vamos para a praia. E hoje é uma festa para a gente!». [Eu]: «Tá bem, tudo bem».  

Ela sai, eu fico em casa. E [passado] meia-hora, quarenta minutos batem à porta e eu abro a porta. Vesti os calções. Um GNR [diálogo]: «O senhor é fulano tal? Mário Araújo?» «Sou». «Olhe, eu venho buscá-lo para ir ao posto. Você tem de lá que ir prestar declarações». E eu disse logo para mim: «Já estou feito. Já sei o que é». Claro, não foi novidade. E eu disse: «Eu? (...) Ir à GNR fazer o quê?», mas eu vi logo. E ele diz-me assim: «É porque desapareceram ali numas obras umas alcofas de prego e há pessoas que dizem que é você que mora aqui. E você vai ali». [Eu]: «Mas eu não fiz nada disso, vocês estão enganados, não sou eu. Não será de outro andar?» - eu assim a ver se me via [livre]... Mas ele tinha a intenção de [me levar]. Pronto. 

Eu vesti-me de qualquer maneira, claro, eu fiquei logo muito alarmado. E desci - morava no 3º andar - desci cá abaixo. Tento abrir ainda o portão que dava para o quintal, na tentativa de que se estivesse aberto - ele era um homem ligeiramente mais velho que eu, fardado (...), eu ia mais à vontade, era ligeiramente mais novo - eu piro-me aqui pelos quintais e nunca mais me veem, este gajo nunca mais me agarra. Só que eu tive azar. Aquele fecho que estava normalmente aberto, estava fechado. Então não pude sair. 

Sai depois, fugi ainda na rua, mas depois ele começou a gritar: «Agarrem que é ladrão! Agarrem que é ladrão!» e há umas pessoas que saem dum cafezito que havia ali - esse cafezito foi obrigado a fechar e a sair dali, porque depois a rapaziada do Partido fez a vida negra ao homem (...). O homem saiu para me apanhar, o homem não me conhecia de lado nenhum. E eu com um tipo atrás de mim, com um Guarda Republicano: «Agarrem que é ladrão!». Epá... Eu fiquei, quer dizer... Parei! O outro aparece-me à frente. E eu nem agarrado pelo polícia - GNR - nem pelo dono do café. 

Eu tive azar, só sou preso por aquela razão, porque fiquei em casa. Porque eu tinha tudo - a qualquer altura eu podia ser preso, tinha consciência disso - e eu tinha a fuga organizada! Uma porta que se abria para o lado de trás do Arsenal do Alfeite, para o lado do mar. Para um dos lados estavam os navios, para o outro lado era a mata, mata do Alfeite. (...) A porta estava aberta normalmente, eu sairia - porque eles normalmente chegavam à portaria e diziam: «Olhe, chame o operário tal tal, que tá aqui alguém de família que quer falar com ele à porta». E os amigos vinham e eram presos. Era assim que acontecia. E eu estava à espera que um dia que me chamem lá. Afinal eles foram ao Arsenal do Alfeite, antes de aparecer o GNR. Foram às 8:30 ao Arsenal do Alfeite à minha procura, eu não estava. E sabiam que a minha vida era uma vida ativa, portanto, ou estaria doente em casa, ou por outra razão qualquer teria ficado casa. E chegaram lá às 9 horas e eu estava em casa. E sou preso assim. (...) Se se concretizasse a minha ideia eu saía da oficina de caldeiraria do Arsenal do Alfeite, ia até à Ponta dos Corvos - vocês não conhecem, mas é o fim da praia, do rio, que dá para o Seixal. Tem ali 200 metros. Eu nadava bem já naquela altura, nadava muito bem mesmo, tinha feito competição - bem não interessa. E punha a roupa à cabeça com o cinto, fazia bruços até ao outro lado e apanhava uma camioneta e eles nunca mais me apanhavam, que eu ia para França como foram os outros.

Eu, por azar, sou o primeiro da célula a ser preso. Fiquei feito. Sou preso nestas condições, vou para o posto da GNR - fui apanhado aí a 500 metros do posto. Lá vou, faço aquele circuito todo. Toda a gente me conhecia, (...) tudo muito admirado: «O Mário? Tão enganados!». Eles estavam fardados, o GNR estava fardado, mas os outros dois estavam à paisana. E foram poucos os que tiraram como ilação que os aqueles dois eram da PIDE. 

Isto acontece assim. Fico ali uma hora e tal, duas horas. Eles perguntam-me o nome. Deixam-me ali. Eu digo: «Agora o que é que vai ser de mim?». Vi logo que eram PIDEs, é evidente. Levam-me num carro, um Volkswagen branco, lembro-me bem. E lá vamos, por ali fora. E eu sabia. (...) Eu não vou para a António [Maria Cardoso]... Eu vou logo para Caxias. Para Caxias em isolamento. Onde estive, diga-se de passagem, 5 meses e meio. E eu não desejo a ninguém. Desejei tanta vez levar tareias e que me deixassem, mas não levei. Não levei tareias. 

Fui preso. Fui pra Caxias. Foi a 17 de Julho. E no dia 20 de Julho - estou ali 3 dias, imagine-se 3 dias à espera do que pudesse vir. Sem sapatos, sem atacadores, sem cinto. A gravata não havia, não é? Também não gosto. Não havia gravata, não havia nada. Havia só a cabeça e as paredes. [Pensei]: «O que é que eu vou...?». O colchão, sem cobertor nem nada, isto em pleno verão não era problema, nem almofada - eu tenho dificuldade nas costas, ainda hoje tenho acentuadamente, muito ligado a essa altura. E estou ali dia 17, 18, 19... 20. Dia dos anos do meu filho, dia 20. O meu filho Márinho fazia 7 anos naquele dia. E eles à meia-noite e meia-hora vêm-me chamar: «Senhor Mário prepare-se. Tem que ir a Lisboa».

Venho para a António Maria Cardoso. É a primeira vez. Dia 20, portanto, no dia de anos do meu filho. Vou para um segundo andar, um quarto pequeno. Eles identificam-me dos pés à cabeça. Tudo aquilo que eles disseram era verdade. Portanto houve um camarada - na altura era assim, depois deixou de ser - [que] traiu, disse. Eles sabiam tudo. Eu ainda tentei algumas coisas de armas, umas coisas não jogavam com as outras. Era membro do Partido, pagava 25 tostões - lembro-me bem - de cotização. E não tinha tarefas no Partido, eu não tinha nada. Era do Partido porque estava, porque aderi ao Partido. [Eles]: «Pois e os professores, não é? Levaram-no a isso. E você que é um pobre diabo, ...». [Eu]: «É isso, eu não sei nada de política». Pronto, fiz este papel e eles sabiam que não era verdade, que havia mais coisas.

Tive 3 noites [na tortura) do sono. A primeira noite não houve nada de especial - tortura do sono - nem me sentava, em pé. E tive 3 dias naquilo. «É assim, é assado». E eu não confirmava. Tive 3 dias - mas disseram muita coisa que era verdade, mas eu não confirmava. E disseram-me coisas, não foi no primeiro dia, mas no segundo e no terceiro dia disseram-me coisas que eu nem me lembrava. E só muito mais tarde, já tinha feito o julgamento, é que eu me lembrava [e pensava]: «Mas como é que eles...?». Pronto, era um aparte. Mas era assim. Ao fim de 3 dias trazem-me novamente. Eu vinha derretido de sono, como calculam. Porque o primeiro dia, dia e meio... Mas depois o tempo era este, portanto, julho. 

Eu venho para Caxias outra vez. Isolamento. Sujo, inquieto. E a pensar: «O que é que estes gajos querem de mim?». Eu não tinha mais nada que fazer. Não tinha caneta, não tinha lápis, não tinha papel, não tinha nada! E tinha a cama e tal. E eu andei a partir daquela altura até ao dia 23/24 de Dezembro de 1967, eu andei no quarto de isolamento - nos quartos, foram vários. Foram 5 quartos sempre do lado ímpar, que não tinha vista para a autoestrada. Caxias e a ouvir o barulho dos jogos de futebol, os ruídos das pessoas, aquelas coisas todas. Do outro lado não se ouvia. Parecia que não, mas era uma coisa muito leve. Eu sabia que não tinha comunicação, não tinha livros, não tinha jornais, não tinha nada. E eu fiz, durante este tempo todo, menos o tempo que ia à António Maria Cardoso - tive 3 dias da primeira vez, depois passado um tempo fiz os 4 dias e depois na última vez que estive lá tive 5 dias. Essa vez foi mesmo uma derrota completa. 

Como é que eu passava os dias? Das 7:30, 8 horas, 8:30, não posso precisar…eles davam-me o café, que ainda era pior do que aquele que eu bebia quando era miúdo, era intragável. Tinha cânfora também, uma série de misturas para sexualmente não ser atormentado, não sei, eles faziam isto. Um quarto pequeno, podia ter 3 metros por 3 metros - não era bem, talvez uns 4 metros de comprimento e 3 de largura. Mas o que passava os dias a fazer era o seguinte: eu fazia a cama muito bem feita - comecei a fazer de qualquer maneira, claro - mas depois comecei a fazer com um palmo do cobertor para ali, outro palmo para aqui, depois ficava aquilo muito certinho. Não havia lençol, era um cobertor só - aí já tinha cobertor. A segunda vez que vim para Caxias deram-me o cobertor. Fazia a dobra, uma vez fazia com um palmo, outra vez fazia com 4 dedos. E isto era o meu entretém. Chegava a durar duas horas isto! Estas pequenas coisas que começaram a ser triviais. Começaram a ser o roman do dia.

Portanto, eu a partir das 7 horas da manhã até às 9 ocupava-me com isto. Nunca tive recreio durante este tempo. Portanto, sozinho, sozinho, sozinho e com as minhas coisas. Uma casa-de-banho, só para mim, claro. E uma pedra onde eu fazia a refeição e escrevia semanalmente durante meia hora. Só durante meia hora e só podia escolher uma folha. E o que é que acontece? Eu fazia - eu vou-me levantar para vocês terem uma ideia - era por exemplo quatro passos para aqui, que era o comprimento daquilo; depois mais dois para aqui, para o outro lado, para a outra parede; e depois ali outra vez. Quer dizer fazia isto, mas fazia isto - tão verdade como eu ser eu e estar a falar para vocês - eu andava dez, doze horas por dia. Todos os dias. À exceção dos dias que ia para a PIDE. Que não deixavam de ser piores do que aquele. (...) Eu levei pontapés, levei socos, levei empurrões, levei bofetadas! Não eram tareias. Era: «Você está-me a dizer a mim que não fez isto e não fez aquilo?». [Eu]: «Não, eu nem conheço o sítio que você está a falar». Pumba! Um empurrão! Agora, isto não eram tareias. Às vezes doíam mais do que se fossem, que eu cheguei a desejar. Agora na cela, estes dias todos, assim. Portanto os dias da tortura do sono, já vos disse, foram três, foram quatro, foram cinco. Agora os dias de isolamento foi um género de tortura que me ficou para o resto da vida. Eu não durmo mais que duas, três horas por dia. Isto é verdade, o que eu estou a dizer. A minha mulher, os meus filhos sabem disto perfeitamente.

Acontece que o que me deixou marcas nisto foi o tal dia 25 para 26 de Novembro de 1967, que a minha irmã fazia anos, e eu estava a pensar que se não estivesse naquele sítio estaria com ela, era uma hipótese. E desata a chover de uma maneira...! Aquela encosta de Peniche, de Caxias, foi uma coisa... E os miúdos que gritavam por todo o lado, mas eu não via, eu só ouvia! E nem fazia ideia que... Eu só sei daquilo na véspera de Natal! Quando a minha filha nasce e eles me tiram para receber a visita da minha irmã - que já não era aquela dos anos, era a outra mais velha, que já morreu. E eu tive a ironia de dizer a um colega que estava a meu lado, que eu sabia quem era - veio a ser meu patrão esse homem que eu conhecia-o da Cova da Piedade, foi do meu processo, mas não tinha nada a ver connosco - e aquilo chovia que eu sei lá. E eu batia - a gente aprende a falar, não é? E eu disse para o que veio a ser o meu patrão, com toques: «Estás a ver? Há males que vêm por bem! (...) Se a gente tivesse lá fora se calhar estava a apanhar uma carga de água, que nunca mais parava. Aqui não, estamos recolhidos e tal, não molhamos nada». Quando eu vim a saber... Custou-me também. Eu a ironizar daquela maneira, mal sabia eu. As crianças que iam pela água abaixo, iam aos gritos - que eu não vi, só ouvi - deixaram-me um... Eu não posso ouvir crianças chorar. Quando eu vim a saber que aquelas crianças - julgava que as crianças estavam assim molhadas, sim senhor, porque estavam em barracas, mas não sabia que tinham morrido dezenas de crianças só ali naquela zona! E isso hoje inquieta-me. Aquilo eram choros desesperados. Era a morte! As crianças morriam. Essas coisas ficam para sempre. Sempre. Não saem. É o caso do choro da criança, é o caso de tanta coisa... é o caso de não ter almofada para dormir no isolamento - eu fiquei assim. Eu não era marreco e agora sou quase marreco, ou marreco e meio. Eu não sou capaz de dormir sem almofada. Eu vou fazer uma ecografia, um eletrocardiograma, uma coisa qualquer - já tenho dito aos médicos: «Olhe, ponha uma almofada se faz o favor, porque eu não sou capaz». E não sou capaz. Isto são coisas que ficam e que estão comigo. Agora isto é fruto da tareia? Não, eu não levei tareias! Agora estas coisas fazem-me hoje muito doer, muito doer.

Termina a instrução do processo, eu saio do isolamento e vou para Caxias e estou lá 4 meses. Em várias celas, mas coletivas.

Em Peniche…tenho de dizer isto: aprendi com todos os presos políticos e aí é que eu me politizei. Portanto o Partido tem toda a razão de existir. E já lá vão 100 anos. É uma história lindíssima. Os homens não precisam de ser outra coisa que não bons, solidários, estarem com os outros. Eu não sou capaz - tenho dificuldade, mas ser capaz sou - mas custa-me comer sozinho, almoçar sozinho. Tem a ver com o isolamento. Eu estava a comer, e o comer não…Eu gosto de estar com a família, gosto de estar com os amigos…eu nunca mais acabava de falar".