Nome: Vitor Manuel Alves Agostinho
Ano nascimento: 1951
Local do registo: Algés
Data do registo vídeo: 14-10-2021

Transcrição

“Eu nasci em Lisboa, no Bairro Alto. Sempre fui um homem ligado ao movimento associativo - ainda hoje mantenho. E havia dentro da coletividade, no Bairro Alto, uma atividade cultural forte, com uma série de iniciativas - na altura para um jovem de 20 anos - muito interessantes.

Fui paquete no SNI [Secretariado Nacional de Informação] - hoje é o Palácio Foz - que era onde o fascismo tinha a sua propaganda. Eu fui paquete ali. O meu pai tinha sido guarda do Museu de Arte Popular, depois morreu, depois arranjaram-me para ir para ali. E é uma coisa interessante. Eu sempre estive ligado, sempre gostei muito de trabalhar com as máquinas - na altura eram os duplicadores… Havia a publicação de um boletim - e é aí que as coisas começam - de um boletim dos Católicos Progressistas. E a PIDE andava em cima daquilo. E então onde é que essa revista era feita? Era feita por mim, no SNI. Ou seja, no sítio onde estava o poder da propaganda do fascismo, era aí que utilizávamos aquelas máquinas. Porque havia o serviço de redação e eu ia para lá escrever nos stencils (ainda) e depois nós pegamos nos duplicadores e mandámos. Nem nunca souberam, nem eu nunca falei muito nisto. Eles nunca souberam - porque nessa altura já não apanharam nada disso - nunca souberam onde é que aquela revista era feita. Deve ter sido uma dor da quinta casa. Aliás, nós na segunda prisão, quando saio, nós tínhamos uma casa de amigos de acolhimento que era mesmo ao lado da António Maria Cardoso, ao lado da PIDE. Quando o elétrico dá ali a voltinha, há ali uma casa. Tive ali nas primeiras horas do 25 de abril, ali guardado dentro desse edifício - não se sabia o que é que estava a acontecer. A ideia que tínhamos era: quanto mais perto nós estivéssemos deles, menos eles desconfiavam. Esta é uma história interessante, também, da vida da consciencialização política. Lá está, é a vivência de bairro.

Eu tinha um amigo - que ainda hoje, felizmente, é vivo - que foi ele que me meteu nestas coisas. [Disse-me]: «Eu tenho uma coisa que gostava que tu ...» - sabia que eu trabalhava lá - «… tinha uma coisa para tu fazeres, tirar ali umas coisas no duplicador». E, para mim, já naquela altura, coisas que eram para o risco aí estava eu! E é uma coisa natural. [Ele]: «Eu tenho ali não sei quantos stencils, que é para fazer 500 ou 300 papéis destes. Se tu te importas de fazer isto». [Eu]: «Epá, é claro que sim!». Estava ele mais preocupado com a minha segurança, do que eu com a minha própria segurança. [Ele]: «Sabes que isto tem que ser feito…» - é realmente o não ter consciência do perigo, do que é que se estava a fazer. Ele recomendava - na primeira vez, pelo menos, recomendou muitas vezes - «…, mas vê lá, porque não te podem ver a fazer isto, vê lá». E foi nesta situação.

Hoje pede-se para a gente tirar, na fotocopiadora, uns papéis que a gente precisa para a nossa organização - pedimos e tiramos. Nessa altura para mim foi entendido assim. Se ele precisa daqueles papéis lá para as coisas que eles estão a fazer, então estou aqui disponível. Andámos a gastar o papel do próprio fascismo em defesa da democracia. [Risos] Foi assim estas ligações!

Só muito mais tarde é que vim a consciencializar-me dos grandes disparates que eu podia estar a fazer e até a estar a pôr em causa o trabalho que os outros amigos estavam a fazer, devido a esta minha forma tão sem saber de nada. Só muito mais tarde…

Reparem: se eu estou a fazer uma coisa na redação do SNI, os Ramiros Valadões, aquela gentalha toda, aqueles fascistas, ali assim. Aquela redação era nesta sala e na sala ao lado era onde se batia o stencil - não era eu que fazia isso, eram lá eles. Eu estou ali, sentado, com uma máquina de escrever ao lado. A escrever aquilo e com eles a entrarem e a saírem! É uma falta de consciência da quinta casa! Quer dizer, bastava um deles dizer assim: «Desculpa lá, o que é que tu estás a fazer?» para tramar toda a ação! O que é facto é que nunca aconteceu! Eles deviam perceber que eu estaria a fazer as coisas lá para o clube, aquelas coisas da coletividade, que a gente não tem nada a ver com isso - que estas coisas, como sabem, depois eram feitas pela madrugada dentro.

Quando saí da coletividade ainda fiz parte de uma cooperativa, que era [a] Cooperativa dos Trabalhadores de Portugal - que era ali nas escadinhas do Duque. Em que, aí, já havia uma grande presença de outros amigos, já com grande consciência político-partidária. Depois a gente veio a conhecer [o termo], não [sabíamos] o que é que é isso, mas veio a conhecer. Tínhamos um centro de convívio de juventude onde conversávamos e é esta forma lenta, mas a meu ver - pelo menos para a minha tomada de consciência – segura, desta transição de uma pessoa que não ligava a nada, a alguma consciência política.

A minha primeira grande ação é na zona oriental de Lisboa - Marvila, Chelas, uma zona operária na altura. É aí que dou um passo decisivo para o trabalho prático, que me leva a fazer trabalho junto das fábricas, na altura. Não era um trabalho de direção de trabalho, era mais uma pessoa que estaria ali a aprender. Fundamentalmente, toda a vida estive a aprender, ainda hoje. Aprender sempre. E é neste primeiro trabalho que se começa a ver a importância - o 1º de maio a vermelho, as grandes consignas da altura.

Há uma coisa interessante nesta minha primeira tarefa. (...) Em juventude levei logo no toutiço, porque – para mim - a minha ânsia de estar ligado ao PCP era de tal forma, embora sem grande consciência naturalmente, que a gente escrevia nas paredes: «1º de Maio» a vermelho «Viva o PCP!». Um erro crasso, um erro de principiante, porque se queria que o 1º de maio fosse uma coisa unitária e não uma coisa partidária.

É interessante que na minha primeira ação - [eu] todo de grande valor, de grande força - sou levado a dizer [agora] «Isto não devia ser feito. Isto não era para estar cá a escrever PCP nenhum». Para mim foi interessante este meu início.

Houve muitas ações, nomeadamente no Bairro Alto. Uma coisa que registo com agrado, porque a gente via os PIDEs todos aflitos à procura de quem é que andava a entregar os papéis - nós no elevador da glória, cá na parte de cima do Bairro Alto. Nós tínhamos uns papéis assim pequenininhos a dizer «Não à Guerra». «Abaixo a Guerra Colonial». E então o que é que nós fizemos? O tal grupo pequeno, sempre o grupo pequeno, pusemos nos muros do elevador, nas laterais, esses papéis pequeninos, que se aguentaram ali. Não fizemos nada, viemos embora. Depois com o vento os papéis iam caindo. Hoje era uma coisa interessante, com os meios audiovisuais que temos, os patéticos que eram aqueles PIDEs que andavam ali a olhar para todo o lado. Porque os papéis caiam e eles não viam ninguém. Mesmo assim ainda tivemos de fugir por aquelas escadarias a meio do elevador, que depois dá cá em cima para a rua, e tivemos de fugir por ali acima.

O centro de documentos, de propaganda, que tínhamos, foi feito - tem também a ver com a inexperiência - foi feito a partir da minha casa. Toda a documentação que havia foi posta ali. Aliás, quando eu fui preso ainda tinha ali coisas… hoje isso não aconteceria. Quando fui preso a 13 de maio ainda tinha materiais do 1º de maio em casa. Hoje nós guardamos os papéis como recordação, mas hoje não há perigo nenhum de estarmos assim. Na altura... mais uma inexperiência de juventude, não é?

Sou preso exatamente, porque houve aqui - penso - um erro. Na altura quando a PIDE assaltou a minha casa, perguntava acerca de uma organização que existia partidariamente [ARA]. Se eu conhecia aquela organização e eu dizia que não. Só que eu tinha em casa uma mala - e aqui foi o grande problema - uma mala com coisas que tinham vindo de França, com explosivos, com uma série de coisas que nem eu sabia o que lá estava dentro. Sabiam que eu estava no início de carreira - entre aspas - então era mais seguro ter aquilo na minha casa. Só que essa pessoa não sabia a minha envolvência já nisto. A PIDE de certeza que andava atrás daquela mala. Quando assaltam a casa, eu sou preso porque não sabia onde é que tinha o bilhete de identidade, que é uma coisa interessante.

Eles assaltaram - eu já era casado, tinha uma filha, fui pai muito novo - e (...) são quatro PIDEs que entraram por casa adentro. Ouvi uns a dizer para os outros: «Epá, isto se calhar falhou…» (...) - eu à procura do bilhete de identidade - «… pelo sim, pelo não vamos dar ali só uma voltinha, só para ver». Tinha os Avantes pequeninos em casa, tinha os materiais todos do 1º de maio em casa - quando chegam à mala foi a desgraça total. Para mim também, que não sabia daquela envolvência.

Aliás, eles estavam-me a torturar na PIDE e estavam a bater-me… isto tem a ver com a estupidez mesmo da altura. Havia uns sprays que nos adormeciam, depois começou-se a utilizar isto por causa dos assaltos, em defesa. Então o PIDE, com a mala aberta, pegou naquilo, fez assim e carregou. E estava-me a torturar na António Maria Cardoso e a dizer: «Ainda agora estou aflito da cabeça!» «Desculpe lá, mas que culpa é que eu tenho se você pegou naquilo e você próprio...?» Então ele ficava furioso comigo. Fartou-se de [bater]. Foi uma valentíssima tareia, puseram-me todo a sangrar. E como se não valesse a tareia também eu tinha a culpa do PIDE ter disparado.

Na Maria Cardoso, não cheguei a dormir lá. Isto aconteceu às oito da manhã, mais coisa menos coisa, e a meio da tarde levam-me para Caxias, para o isolamento. Onde estou dois meses isolado. Que é uma coisa... um rapaz como eu, como os outros com certeza, que trabalhávamos de dia e à noite íamos para estas tarefas, tínhamos a coletividade onde trabalhávamos, muito cheio da vida… e, de repente, mete-nos dentro de uma cela com zero. Ainda por cima em Caxias fiquei nas traseiras do Reduto Norte, que a única coisa que se via era a bota do GNR a passar de um lado para o outro. Não se via nada. Na parte da frente, pelo menos, a gente via o rio. (...)

É interessante porque acabamos por criar hábitos de disciplina, para passarmos o tempo. Portanto, as coisas que se faziam, as horas em que se tinha que ir tomar banho, a calça que tinha de estar engomadinha, como é que ela se punha. Todo o gastar de tempo. Aquilo que aterrorizava mais, a um jovem, era ser chamado à PIDE lá em baixo, era continuarem com o interrogatório.

Não fazer rigorosamente nada! Estão a ver o que é? Estarmos numa sala, um espaço onde há a cama, a parte da casa de banho - o Reduto Norte já não era como cá em baixo, que era uma indecência como eles tinham lá os presos - e depois, zero. Não havia jornais, não havia visitas, não havia nada. Estava ali sozinho, perfeitamente sozinho. Com o objetivo de enfraquecer a nossa ação e, com isso, poder-nos retirar mais informações que eles precisavam.

Eles só tiveram um grande azar, porque por muito que eles quisessem tirar, não havia nada para tirar. Não havia organização político-partidária por detrás disto! Eu não estava organizado em lado nenhum, só com estas pequenas coisas.

Quando fui preso, eles queriam que eu dissesse nomes. Eu não tinha nomes para dar. Quando depois me levaram para outra sala na António Maria Cardoso e estava outro camarada a ser torturado também e fazia parte do meu grupo. A mim acabou ali. Eu acho que eles devem ter descoberto isso também, que tinham apanhado peixe muito miudinho, não tinham apanhado nenhuma coisa daquelas forte. [Risos] De maneira que desforraram-se a bater e a fazer aquelas coisas - foi a desforra deles.

Fui ao Reduto Sul várias vezes. [Faziam] Algumas ameaças, [que] enquanto eu não falasse eu não saía dali. Ao fim de algumas horas mandavam-me embora. Eles não eram estúpidos totalmente, sabiam perfeitamente, com as experiências, como é que estas coisas eram feitas. Mandam-me embora e estou lá em cima.

Quando saio, a fim dos dois meses, quando saio do isolamento e venho já para a parte da frente do Reduto Norte. No Reduto Norte, ali com mais dois presos políticos, foi uma loucura de conversa. É interessante é [que] em alturas em que eles eram transferidos e alturas em que estava sozinho voltava a angústia [que sentia] há uns meses atrás. O estar perfeitamente isolado outra vez…

Durante a prisão - [na] parte da frente já era um lugar, que hoje custa muito dinheiro, que tinha vista para o Tejo - e ali já nos ajudava a olharmos, já tínhamos outras coisas para entretenimento. Eu tinha uma namorada - coitada da senhora que nunca me conheceu, nem nunca a conheci a ela também. Cá ao fundo, naquela ribanceira junto ao Jamor, ela andava ali a estender as roupas - para mim era um entretimento extraordinário ver a forma como a senhora estava ali. Era uma coisa muito longe, sei lá, a dois quilómetros de distância. [Risos] Nem a senhora nunca me conheceu, nem nunca a conheci a ela.  Mas é interessante, onde é que o nosso pensamento tinha de estar para nos podermos ocupar e não enlouquecermos.

Não cheguei a ter julgamento. Estava tudo preparado para o julgamento, mas eles ao fim daquele tempo de ter estado preso simplesmente chegaram ao pé de mim e disseram - diz o guarda prisional «Prepare-se que vai sair».  O que também é estranho. Uma pessoa está ali aquele tempo todo, dão-nos tareia de três em pipa [porque] querem saber; depois está tudo muito bem - entre aspas - e de repente dizem: «Você vai-se embora!», sem nada. Já tinha advogado da Associação de Socorro aos Presos Políticos para me acompanhar e depois puseram-me na rua. Ao fim deste prazo dos seis meses põem-me fora. [Fiquei] quase a sentir-me que - agora a brincar - a sentir-me «órfão»: «Mas agora o que é isto? A guerra acabou?». E interessante!

Pegaram em mim, puseram-me à porta da prisão. Não disseram a ninguém que me tinham libertado. Desci por Caxias, fui por ali abaixo. (...) E vim apanhar o comboio a Caxias para ir para casa. Quando cheguei a casa a minha mulher ficou assim muito [espantada] - não havia telemóveis, não havia nada destas coisas. [Risos] Foi assim que as coisas aconteceram.

Ou eles, entretanto, se desinteressaram desta célula - porque este período, desde essa altura até ao 25 de abril, foi um período em que eles andaram muito ocupados. Com o rebentar desta ação toda de oposição ao fascismo - eles não deviam ter sítio onde parar. Deviam estar ali aflitos, então tinham necessidade de deitar a raia miúda fora, para terem as prisões livres para entrarem aqueles que lhes interessavam mais. É o raciocínio que eu faço hoje - na altura não fiz nada disto.

Havia uma indicação de que, quando saímos da prisão, há um período - hoje é muito conhecida esta frase - há um período de quarentena. Não havia uma reintegração imediata na atividade partidária exatamente para que a PIDE não pudesse seguir. Comigo não aconteceu isso. Eu saí da prisão, no dia seguinte já estava a trabalhar outra vez nas ações que, penso eu, devem ter de alguma forma também contribuído para alguma desorientação da polícia política. Lá está de novo, devido - eu levo sempre para isto - devido à minha inexperiência e devido também às responsabilidades serem muito baixas em ação do trabalho.

Voltei à coletividade, fui expulso do clube porque era um perigoso comunista e fui expulso da coletividade onde estava, no bairro. Depois fui reintegrado, naturalmente. Hoje para o clube, sou sócio já muito velho daquilo, até é uma bandeira por ter aqui um homem que foi preso político. Mas, na altura, os legionários que estavam dentro do clube, serviram de denúncia áquilo que a gente tinha lá. A história das exposições com os livros proibidos. Todas aquelas coisas serviram para a PIDE entrar ali e ter rebentado com aquilo tudo.

A minha integração é imediata na continuação da atividade. É aí, nessa altura, que eu vou para a Cooperativa dos Trabalhadores de Portugal e esta envolvência política mais acentuada.

A minha base de trabalho é sempre a base ligada ao movimento associativo. Ligado aos cineclubes, fazíamos sessões de cinema nas várias coletividades, integrando filmes de qualidade. Também um trabalho muito interessante na parte infantil. Eu ainda hoje faço parte de uma escola, sou diretor de uma escola muito conhecida nacional e internacionalmente, que é a Voz do Operário. Isto ficou tudo ligado. (...)

Com esta envolvência cultural, houve uma prisão que aconteceu já numa coisa, que hoje é conhecida historicamente, que era a constituição de uma cooperativa em Benfica. A desculpa naquela reunião que estávamos a ter - eramos mais de 50 ativistas. [Antes] só reuníamos dois ou três, de repente estão 50 juntos! Marcámos aquela reunião ali assim, e o objetivo era - de certeza que a PIDE ia saber, até porque daqueles 50… não sabíamos - se acontecer aqui alguma coisa o que nós vamos dizer é que estamos a constituir uma cooperativa de consumo.

Estávamos todos na reunião, a PIDE assalta aquilo e nós somos todos presos, vamos todos para o Governo Civil.  Foi relativamente pouco tempo - era para ser muito tempo, mas foi pouco - foi em abril. Somos presos. Eles ficam muito aflitos, porque desde logo se organizaram coisas na rua em frente ao Governo Civil, onde estávamos presos. Malta a fazer manifestações - e já era uma loucura - malta a fazer manifestações. Porque era muita gente junta! Uma coisa é eles prenderem um ou dois, outra coisa era prenderem 50. Bastava que as nossas companheiras e os nossos companheiros viessem para a porta do Governo Civil para aquilo ser logo uma grande enchente. Eles estavam muito aflitos, até isolaram o Governo Civil e tudo. Saímos pela porta debaixo do Governo Civil, para se ver o menos possível. E fomos, na altura, para Caxias de camionetes da polícia. E todos juntos, que era uma coisa... já era o descalabro total em termos de investigação. [Fomos] todos juntos, o que deu condições… nós até fomos apanhados [eu e o] Eugénio Ruivo, ele até trazia o manifesto do partido comunista. Íamos para Caxias com aquilo na mão! Estão a ver o que é? E eu disse, já não me lembro muito bem…: «Cuidado com o livro…», então ele pegou no livro…Não, não! Ficou no banco da polícia, lá em baixo, porque a seguir podia algum polícia pegar naquilo e ser mais um a tomar consciência! [Risos]

Nós fomos para Caxias a cantar a Grândola. A Grândola cantada no dia 25 de abril, como sabemos - a gente foi a cantar! Já era o podre do fascismo.

Eu estive preso com o Ruben de Carvalho, o Lino de Carvalho - que na altura tinha sido um homem e que chegaram a atacar, chegaram a pô-lo no hospital outra vez. Era tanta gente que tiveram de nos instalar nas prisões velhas. Eu não conhecia aquilo, era uma coisa louca, sem condições, sem nada e todos ali ao monte. Essa era uma verdade. A outra verdade é que nos ajudou a organizarmos entre nós: «Agora quando tu fores à PIDE tu vais dizer isto assim». Eu quando fui chamado à PIDE [perguntaram] qual era o nome, «Então o que é que aconteceu? É a mesma coisa que os outros gajos têm estado a dizer, não é? Epá, puta que vos pariu!». [Risos] O relatório era igual para todos!

Os dias vão seguindo, eu sou chamado apenas uma vez ao Reduto Sul, para interrogatório, onde fui de novo dizer isto: «Eu não sei» tal é que eles já tinham o meu histórico da prisão anterior. Mas é verdade que não aconteceu nada de especial, nem sequer tortura - nem bateram, nada.

No dia 24 de abril começaram a prender - veio-se a perceber isto depois - eles por vezes prendiam dirigentes políticos e no mundo do trabalho, por causa do 1º de maio, portanto, tinham de libertar de novo… e ali tinha sido um grande buraco, tinham apanhado nada para além de alguns nomes importantes da luta antifascista, mas não havia nada. Podia ser um homem muito importante na luta antifascista, mas ali estavam a tentar fazer uma cooperativa. De maneira que disseram-me «A gente vai-te libertar, mas vens mais depressa cá para dentro do que o que estás a pensar». O que é que eles estavam a tentar fazer? Estavam a prender - foi na altura que o Tengarrinha entra na prisão, quando aqueles nomes sonantes entram na prisão. Era uma prisão apenas - não era para lhes fazer nada - era só para os prender para eles não terem ação no 1º de maio. Depois naturalmente que os libertariam e depois, se calhar, a ideia era vir-nos buscar àqueles que tinham detido (…)

Eu saio. Estive preso com o Modesto Navarro. O Modesto Navarro estava a fazer a escrever um livro. Fui eu que o escrevi à máquina também, depois aquilo não resultou muito bem. Era um livro que, naturalmente, não tinha passado por lado nenhum. E ele convenceu-me, eu deixei-me convencer com toda a facilidade… ele não podia trazer aquilo de Caxias, porque eles iam inspecioná-lo. Então eu peguei no livro, naqueles papéis, trouxe aquilo tudo na minha mala. E eles deixaram-me passar sem revistar nada do que eu trouxe de dentro da prisão - já era realmente o descalabro disto tudo. Então eu trago o documento, esse livro, que depois o Modesto iria publicar. Sai da prisão comigo no dia 24 de abril.

As saídas da prisão, tal como as buscas, têm horários. As saídas da prisão eram até às 19 horas, por aquilo que se sabia. Eles estavam muito aflitos a dizer: «Despache-se, despache-se!» «Tá bem, estou-me a despachar...!» - que eu também me queria vir embora, também me queria despachar o mais depressa possível - se é para vir embora! Senti que havia aquela questão. Eram 19 horas ou pouco depois das 19 horas e eu saí da prisão.

Segundo aquilo que se sabia a libertação dos presos das cadeias, de uma forma geral e dali, era até às 19 horas. Aquela ideia que eu tenho - só para registo - talvez possa ter sido o último ou dos últimos presos políticos a sair no dia 24 de abril.  E metem-me, uma vez mais, metem-me à porta e venho por ali abaixo. Mas ali, mais abaixo, já tinha um carro à minha espera. Venho por ali abaixo, para vir para casa. Mas sempre com aquela ânsia de que os gajos disseram que «vens para cá mais depressa do que estás a pensar».

Então cheguei a casa e eram sete da manhã, começam-me aos murros à porta. E eu disse: «Pronto. É mais depressa do que...». Eu não pensava que fosse tão depressa, que fosse dormir uma noite a casa e arrecadarem-me logo. Eu morava no Bairro Alto, num rés-de-chão. E comecei a amarinhar - pensei: «Desta vez vocês já não me apanham» - comecei a amarinhar para fugir pelo saguão. Entretanto começa a minha mulher: «Não fujas, que é um amigo nosso que está aqui a bater à porta. Espera aí, não fujas que não é nada a PIDE». Então eu desci, não sei se subisse aquilo dava alguma coisa, mas para já não me apanhavam logo à primeira. E é quando diz «Está a acontecer aqui um problema. Há as tropas na rua. Mas a gente tem que estar a pau, não te queremos meter já nisto. Anda comigo».

É quando eu vou lá para aquela rua ao lado da António Maria Cardoso. Quando dão indicação que já se pode vir para a rua - é questão de horas. Foi uma coisa muito rápida, estamos a falar desde as sete da manhã. Porque, como vocês sabem, havia o medo se o que estava a acontecer era golpe do Kaúlza ou se era uma coisa diferente. Felizmente foi diferente.

Todo o meu 25 de abril, ou parte dele, é passado aqui, assim. Que é uma coisa extraordinária. Quando um tipo sai da prisão, pensa que vai ser preso outra vez, partiu foi para a liberdade. Como vocês sabem a GNR foram as últimas forças a renderem-se à rutura, ao golpe - ainda não era revolução. (...) Eles estavam a descer a caminho do Chiado, onde é o Teatro da Trindade, com as baionetas ali espetadas. Eles vinham a descer… e nós íamos ao encontro deles. E quando chegamos assim, a um metro de distância, eles com as baionetas apontadas, eles pararam. E nós parámos também. Ao fim de uns segundos pararam, levantaram aquilo [as baionetas] e foi quando se renderam. É interessante dentro da vida de um antifascista sentir que o esbirro do fascismo terminou ali. Eu estive, com outros, muitos outros, ali na primeira linha a amedrontar - entre aspas - o comando daquela tropa. E depois fomos para o 25 de abril.

Eu, que estou nisto desde muito jovem, acho que é uma coisa que levamos na memória. Dentro de tudo o que se faça, se leva na memória extraordinária dentro do ponto da vista da história. Eu farto-me de ter conversas com os alunos, lá na Voz do Operário, que vivemos muito as questões do 25 de abril. Ainda ontem, uma coisa extraordinária, tive com um grupo de crianças do 5º ano na Voz do Operário, que queriam falar comigo sobre o 25 de abril. Sabiam que eu tinha estado preso, [tinham] perguntas. E é interessante olhar para aquelas cinco crianças do 5º ano, são crianças, e começam a falar do 25 do abril… Já tinham visitado o Museu do Aljube, já tinham estado a ver as coisas. A sensação com que eu fiquei é que há coisas, hoje em dia, [que as crianças] sabem mais que eu. É motivo de felicidade, saber - infelizmente é a minoria das minorias - mas saber que isto vai lá. Não vai com a velocidade que a gente queria, mas vai".