Nome: Sérgio José Ferreira Ribeiro
Ano nascimento: 1935
Local do registo: Algés
Data do registo vídeo: 22-10-2021

Transcrição

"A consciência política não se ganha de uma vez. Aliás, nunca está terminada. Tem que se renovar em cada momento da vida.

Eu comecei a ter alguma consciência política a partir do convívio com os meus pais. Sou filho de um casal pequeno burguês. O meu pai era pequeno comerciante. Era, não direi ateu, era agnóstico, era anticlerical e tinha o suficiente para não gostar do fascismo. Não tinha consciência desse facto e por isso a sua luta era muito pequena. De qualquer modo a partir do seu exemplo, e da minha mãe, eu sempre fui de certo modo avesso a submeter-me aquilo que à minha volta havia.

Andei numa escola primária num bairro e, talvez, o primeiro ato de consciência política que eu tomei foi quando fiquei espantado e de certo modo indignado pelo facto de ser o único daquela escola que continuou a estudar. Todos os meus colegas terminaram a sua vida de estudante com a 4ª classe - alguns nem com isso, nem com a 4ª classe.

Eu fiz a 4ª classe. Os meus pais, com sacrifício, meteram-me no liceu Pedro Nunes, com meninos filhos de banqueiros, filhos de secretários de estado ou ministros. Só que contrapôs-se ao outro, do bairro popular, do bairro em que eu tinha sido o único a sair para ir para o liceu.

Lembro-me como primeiro ato político que tive foi quando votei no Norton de Matos em [19]47, 48. No liceu houve alguns colegas meus que propuseram uma votação. Eu votei. Foi a primeira vez que votei, portanto foi o primeiro arremedo de consciência política, de escolha. E votei no Norton de Matos, obviamente, porque em minha casa a simpatia ia para o Norton de Matos.

Depois do Pedro Nunes passei para o D. João de Castro, aqui perto. No D. João de Castro tive alguns colegas que misturavam as duas situações: a situação do filho de boa família, de família bem instalada e outros, que eram iguais a mim ou menos do que eu. Filhos de gente mais pobre, mais abaixo na escala social. Lembro-me de um ato que foi para mim muito importante. Na altura para vir para o D. João de Castro, para a (...), de Económicas - sou economista - era preciso fazer um trajeto de autocarro. O meu pai dava-me todos os dias seis escudos para o autocarro. E eu consegui transformar esses seis escudos em muito dinheiro, na altura: vinha a pé até Santos, tomava o carro operário, para isso levantava-me mais cedo, e custava-me 15 tostões ida e volta. Foi o primeiro ato de economista, também, e de tomada de consciência. Fez-me muito bem o contacto com aquelas madrugadas operárias e ajudaram a cimentar alguma coisa.

Depois foi a universidade. Os meus pais, como eu nunca tinha chumbado, fizeram o sacrifício de continuar a pagar-me os estudos - que era sacrifício, sempre com uma sentença: «Tu podes chumbar um ano, não chumbas dois. Ao segundo acabou os estudos». Não foi preciso, nunca chumbei nenhum ano, porque gostava de estudar, gostava de aprender, gostava de responder aos meus porquês.

Na universidade, naturalmente na faculdade de economia chamada ISCEF [Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras], associei-me logo à associação de estudantes, trabalhei na seção de folhas e fui tomando a consciência aos poucos. Tive a sorte de ter colegas de turma, colegas de ano, que me ajudaram. Os primeiros atos efetivos de manifestação foi ao 5 de outubro. Ia ao cemitério do Alto de S. João homenagear os republicanos, o que dava origem por vezes a fugas à polícia a cavalo, à Guarda Republicana. Foi uma espécie de batismo na tomada de consciência.

Depois foi o estudar. Foi o procurar resposta para alguns porquês - e continuo na mesma, a procurar a resposta para alguns porquês. Este processo de tomada de consciência teve um ponto muito importante, quando um colega da associação - estava na associação de estudantes, era vice-presidente, da seção de folhas - fez-me uma espécie de convite informal. Se eu não queria ver mais coisas, saber mais coisas. Eu disse logo que sim. Quando acabei o curso já estava no partido, já tinha tomado responsabilidades militantes. Mas essas responsabilidades militantes foram postas um pouco de salmoura, digamos assim. Porque quando me puseram concretamente a proposta para aderir ao partido disse: «Deixem-me voltar de Angola», porque fui a Angola em viagem de fim de curso.

Vim de lá completamente decidido. Foi uma viagem de fim de curso extraordinária. Foram 15 dias pelas picadas, de machimbombo [autocarro], a sentir a realidade do que era o racismo, do que era a desigualdade, do que eram as soluções de Salazar. O colonato de Cela. O colonato de Cela era a coisa mais abstrusa que se pode imaginar. Era a ocupação de um espaço tão grande como Portugal por famílias que se mudavam para lá, pondo na orla, na fronteira desse espaço toda a gente nativa, não podia haver trabalho negro. E isso era-nos mostrado como uma experiência do que se seria a ideia: a colonização interna. Mas o interno até Angola, até Moçambique, até onde fosse. Foi um outro dado muito importante para a tomada de consciência. Por isso quando voltei disse logo: «Estou inteiramente de acordo com as vossas posições. Reforço-as com a minha posição». E aderi ao partido.

No dia 19 de dezembro de 1961, eu estava na célula dos economistas. Uma célula formada por cinco ou seis economistas com um camarada clandestino que nos controlava - era o termo, sem nada de pejorativo - que controlava o nosso trabalho. Tive primeiro o Ângelo Veloso, depois tive o Pires Jorge. No dia 19 de dezembro de [19]61 o nosso controleiro era um camarada, que eu não sabia o nome - sabia o pseudónimo, mas só sabia o pseudónimo. E combinou-se um encontro para discutirmos, em dezembro de [19]61 o orçamento de estado, vejam lá, o orçamento de estado daquela altura.

Eu esperei por ele à hora marcada, eram oito da noite, numa transversal à Rua dos Lusíadas. Ele não apareceu. Eu fiz aquilo a que se chamava a hora do recurso. Fui dar uma volta, o mais larga possível e uma hora depois estava à espera. Não apareceu. Era o José Dias Coelho. Foi assassinado quando vinha ao meu encontro, na Rua da Creche. O que só soubemos muito mais tarde, muitos dias – três, quatro, cinco dias mais tarde, uma semana. A morte desceu à rua [referência a "A Morte Saiu à Rua", de Zeca Afonso] foi um episódio muito marcante, porque aquele camarada que eu estava à espera, que não tinha nome, tinha um pseudónimo, vim a saber que era um homem como o José Dias Coelho - um escultor, um artista enorme e um homem ainda mais enorme do que artista. E que foi assassinado quando vinha ao meu encontro. Foi um episódio que, como é evidente, reforçou essa tomada de consciência - que perguntou como é que ela se foi formando. Foi-se formando! E, para mim, o dia 19 de dezembro de [19]61 é um dia muito marcante. Nunca esqueço esse dia - eu lembro esse dia em muitos outros dias.

Eu fazia parte de uma célula de jovens economistas que tínhamos como tarefa, entre muitas outras daquelas tarefas formais de organização, que todos tínhamos - de quota, de organização, dos protestos - tínhamos a tarefa de informar os camaradas do partido que viviam na clandestinidade com pareceres, com opiniões de economistas.

Eramos jovens economistas e, concretamente, nessa reunião marcada com o José Dias Coelho era para conversarmos sobre o orçamento de estado. O orçamento geral de estado que era a nossa ferramenta profissional. Para mais numa altura em que tinha rebentado a guerra colonial, no princípio do ano, era importante saber nessa altura como é que essa guerra colonial, essa decisão de Salazar de ir para Angola em força se repercutia no orçamento de estado - era uma das coisas. Entretanto havia o plano de fomento. O plano de fomento tinha sido criado em [19]53, primeiro. O segundo foi em [19]59 ou [19]63. Era estudar o plano de fomento, ver como é que ele servia, ou não servia, aos problemas dos portugueses e dar a nossa opinião. Isto era um aspeto específico. O aspeto geral político acompanhávamos como qualquer militante do partido, com estas especificidades relacionada com a nossa profissão.

Eu fui preso em [19]63, na sequência de muita coisa, porque entretanto em muita coisa me meti também. Fui agente do CDUL [Centro Desportivo Universitário de Lisboa] - o CDUL era uma entidade da Mocidade Portuguesa, que nós, associação de estudantes, arrancámos da Mocidade Portuguesa e conseguimos que o CDUL fosse uma associação das associações de estudantes. E eu fui o segundo presidente. Depois não fui homologado porque as minhas posições não eram de acordo com o Regime. Portanto, não só tinha atividade clandestina, como tinha essa atividade. Entretanto fui para o atletismo, entretanto joguei futebol no CIF [Clube Internacional de Futebol].

Em todas as atividades eu procurava ser um homem consciente, companheiro e procurava na prática aquilo que em teoria nós defendemos. Por isso estava referenciado. Mas houve na altura o que eu chamo um rasgão na cobertura clandestina, com uma traição. Houve um ex-camarada que ou não suportou ou passou para o outro lado. E daí houve uma quebra muito grande no chamado sector intelectual. Houve outro aspeto também importante. Nos dias 1 e 8 de maio de [19]62 houve em Portugal manifestações muito importantes, que de certo modo afrouxaram um pouco, pela sua importância, as reservas e as defesas da clandestinidade. Isso, juntamente com a traição que referi, levou a que a PIDE chegasse a conhecer coisas que queria conhecer e foi uma leva tremenda. Foram muito médicos presos, muitos engenheiros presos, dos economistas fui eu e o Herberto Goulart. Quando eu fui preso o Herberto Goulart fugiu, foi apanhado nos Pirenéus, no meio de muitos clandestinos. Foram distinguidos ele e um médico, o José Nuno Moreira. Vieram da fronteira de Espanha para França, entregues à polícia política.

Eu trabalhava como economista. Trabalhei em vários lados. Comecei numa pequena empresa na minha aldeia, de serração de madeiras, depois fui para a Siderurgia Nacional - o primeiro aço português - no Seixal. Fui técnico da Siderurgia durante algum tempo. Era um ar esperançoso para um economista que queria uma carreira de economista exclusivamente. Mas eu não queria ser só economista, queria ser cidadão e economista. Na Siderurgia houve umas coisas que me desagradaram e fui para o Instituto Luso Fármaco. Quando fui preso estava no Luso Fármaco, que era o primeiro laboratório nacional de produtos farmacêuticos.

Foi uma prisão, sob esse ponto de vista, muito marcante para mim. Às sete da manhã, ou seis da manhã fui para a António Maria Cardoso. Na António Maria Cardoso começaram com interrogatório. E depois fui para o Aljube. Estive no Aljube nos curros.

Os curros é uma cela - estive na cela 2 - que tem 1,10 metros por 1,70 metros. Tem um bailique que baixa, para que um homem deitado de 1,80 metros pode esticar-se, uma prateleira. E é onde se passa o dia todo. Tem muito mais que 24 horas. Esse bailique quando desce, desce com uma espécie de colchão - é palha, é pó... é asma. Foram oito dias de pesadelo, que eu chamo de preparatórios para o interrogatório. Mas é preciso reagir a isso.

Lembro-me que a minha reação foi a descoberta da diagonal - eu gosto muito de contar a descoberta da diagonal: é estar num espaço de 1,10m por 1,70m - com o bailique levantado - ter esse espaço só. Então o dia passa-se assim. [Levanta-se e começa a dar passos, a delimitar o espaço da cela] Um, dois, três. Um, dois. Um, dois, três. Um, dois. Um, dois, três. [Até que pensou]: «Espera aí! E a diagonal?!» - um, dois, três, quatro! Não calculam o que isto é de alegria. Isto é uma maneira de preencher o dia. Preencher horas de pó, de palha, de repressão violenta.

Os curros são - eram, felizmente posso dizer «eram» - eram preparatórios dos interrogatórios de tortura, muito importantes. Eram uma forma de nos preparar para aquilo que era o interrogatório e a tortura. Depois saí dali, fui para a António Maria Cardoso. Foram uns dias e umas noites sem dormir. Foi a tortura. Foi o regresso ao Aljube, para a (...) geral.

O Herberto e eu fomos os economistas distinguidos com a acusação, com o julgamento - tudo aquilo que fez com que tivesse estado uma pena de 14 meses, com suspensão de direitos políticos por cinco anos. Saí em fevereiro de [19]64.

Saí da prisão em condições muito difíceis para mim. Não voltei à vida tal e qual como era antes. A minha atividade clandestina foi cortada, era impossível tê-la. Só voltei a ter algum contacto com um militante clandestino em [19]69, porque entretanto fui candidato às eleições de [19]69, quando foi a primavera Marcelista. Nessa altura fui convidado para ser candidato por Leiria pela CDE, uma lista unitária, que era importante. Na altura havia a lista da CEUD [Comissão Eleitoral de Unidade Democrática] e da CDE [Comissão Democrática Eleitoral].

A CDE era a lista não dos comunistas, mas em que os comunistas tinham predominância; a CEUD era a lista dos socialistas, que entretanto nem existiam como partido. Nalguns distritos do país houve a possibilidade de haver unidade. Eu sinto-me contente por, no meu currículo, valha ele o que valer, fiz parte de uma lista que era de unidade. Era o nº 3 da lista - eram 12. Era o Vasco de Gama Fernandes, que foi presidente da Assembleia República, era o Vareda, que era um advogado muito conceituado de Leiria; era eu, o jovem economista de Ourém.

Foi uma campanha extraordinária. Eu na minha juventude de então, fiz uma grande campanha, sem falsas modéstias. E voltei a uma atividade muito permanente, de colóquios, de conversas, de transmitir aos outros o que tinha pensado, o que tinha aprendido e assimilado. Fiz colóquios por todo o país. Falei desde Chaves até ao Algarve. Era convidado para fazer colóquios. Depois, neste processo, às tantas vejo-me de novo envolvido na militância ligado à clandestinidade. Ajudei como foi possível. Entretanto liguei-me à luta pela paz - pela paz ligada a um movimento pela coexistência pacifica. Um movimento muito importante que se criou nessa altura. A partir dos partidos comunistas, a partir dos países socialistas e com o apoio e a colaboração muito importante de católicos, fez-se o movimento pela coexistência pacífica. Era um movimento que se chamava «A Paz na Mão dos Povos».

A assembleia geral desse movimento foi em [19]72. Eu fui a Bruxelas, a esse fórum que foi muito importante para a minha vida e não só. A luta pela paz foi uma faceta muito importante. Eu estive nela, tinha alguma notoriedade, porque escrevia no Diário de Lisboa - tinha a seção de economia do Diário de Lisboa e da Seara Nova. Eu quando olho para trás, para a minha vida, há uma coisa que eu gosto de dizer: nunca parei. E quando não tinha possibilidade de fazer aqui, fazia ao lado, mas contribuindo para o mesmo.

Houve outro acidente de percurso nessa altura, em que houve uma outra traição. Não chamaria traição, para exemplificar o que é: alguém que dá à PIDE informações que a PIDE queria ter. Houve nessa altura, em [19]72, 73, um outro recuo. Mas esse recuo foi a tempo de eu me precaver e não houve consequências nessa altura. Mas houve mais tarde, porque nessa atividade, não parar...

Fiz uma experiência que me deu gozo, me deu prazer. Como gosto muito da comunicação social e gosto muito da televisão e dos jornais, tinha um grande contacto com a comunicação social belga, de Bruxelas. Até, porque diga-se de passagem - abro um parêntese - o primeiro artigo que eu escrevi como economista foi em [19]61 ou 62, ainda antes da prisão, sobre a integração europeia. Falava da possível final da EFTA [Associação Europeia de Comércio Livre, em inglês: European Free Trade Association, abreviado EFTA] e da adesão do Reino Unido à CEE [Comunidade Económica Europeia] e, por isso, convidaram-me para escrever um livro - creio que é o primeiro livro que foi escrito em português - sobre o que é o mercado comum. Foi uma editora, a Edições 70.

E, por isso, estava ligado a Bruxelas também, não só por razões familiares, mas também para acompanhar de perto o que estava a acontecer. Acompanhei o acordo comercial que foi simultâneo com a integração do Reino Unido, da Irlanda e da Dinamarca no chamado mercado comum, na Comunidade Económica Europeia. Foi uma atividade muito visível. Visibilidade que agora não tenho, naturalmente, mas na altura era muito visível. Diário de Lisboa, Seara Nova, várias coisas, rádio…

Por isso, na ligação com a comunicação social belga, particularmente essa ligada aos aspetos económicos, tive uma vez o desafio de um técnico de televisão - que mais tarde teve uma grande carreira, o (...) - que era então responsável pelo programa de televisão que se chamava ‘8 milhões 8’. Esse programa era um programa que ia a um local, ou a um país e retratava-o. Na altura, em [19]74, logo a seguir ao 16 de março, na Bélgica, o (...) desafiou-me para os ajudar num programa sobre Portugal. Disse logo que sim e ajudei-o. Veio a Portugal, fez um programa de televisão excelente onde retratava Portugal de então. Entrevistou o Pereira de Moura, entrevistou o António Reis, entrevistou imensa gente - e por último iam entrevistar um camarada meu, como ex-preso político, que eu tinha arranjado. Acontece que esse preso político estava em liberdade, mas foi preso no dia em que combinamos. Então fui eu que dei a cara, porque o (...) disse [diálogo]: «Não, tem de haver aqui um preso político. Tu foste preso?». «Fui, fui, mas não foi nada. O João Rato teve anos e anos, eu estive lá só 14 meses, não foi nada. Não sou exemplo de preso político». «Mas tem que ser». Então dei a cara como ex-preso político, em que disse o que é que faziam aos presos, como é que era. Esse programa foi para o ar, na Bélgica, no dia 2 de abril de [19]74.

Eu cometi o disparate, ou a imprevidência, de ir a Portugal. Fui ao Noticias da Amadora levar-lhe colaboração, no mesmo dia em que a PIDE foi ao Noticias da Amadora. Lembro-me de um episódio muito curioso - que vou recordar amanhã, que amanhã faz 100 anos, homenageia-se o Orlando Gonçalves, que era um homem do Noticias da Amadora. Estava a entregar uns trabalhos, entra a PIDE, e a PIDE identificou toda a gente que estava lá. Quando estava a identificar e a dizer para a central, para a António Maria Cardoso, quem é que estava lá: «Está cá o Sérgio Ribeiro». [Eles]: «Ai está? Vem também». Então fui preso, no dia 18 de abril.

Tive coisas que posso dizer que tive sorte na vida. Foi uma sorte, aquela prisão. Foi sorte, porque embora tivesse receado - aquela semana pareceu-me muito difícil estar preso - possibilitou-me sair da cadeia daquela maneira. Que é incontável. Quem saiu da prisão com a porta aberta pelo lado de dentro e dizendo: «Vá-se lá embora, tenha juizinho», como um guarda mais simpático podia dizer - desta vez não foi assim. Foi aberta pelo lado de fora.

Entre o dia 18 de abril e o dia 25 de abril não fui a interrogatório, fui fazer aquilo que se chama o auto negativo. Era o auto em que o chefe de brigada nos punha algumas questões a que, salvo raríssimas exceções, a resposta era: «Não respondo». Não respondi. E o chefe de brigada de então era o Tinoco. O Tinoco disse «Olhe, em relação a si tenho aqui muita coisa…» - e pegava assim nos papéis - «… nem sei por onde começar. Vá-se lá embora». Fui-me embora, esperando que começaria num dia qualquer. Ele perguntou-me: «Então e isto aqui? Então e aquilo acolá?», tinha muito por onde pegar: a campanha eleitoral, o diário de Lisboa, o Notícias da Amadora, Bruxelas, Paris - muita coisa, tinha muito por onde pegar. Não chegou a pegar.

Foi, primeiro, um alívio enorme, depois uma alegria imensa. Foi indescritível o que se sentiu na madrugada de 27 de abril, aqui perto, em Caxias. Sair da cadeia, quando se estava à espera da tortura, dos interrogatórios. Foi um ponto muito marcante.

Depois foi o começo de uma vida nova. Que quem não tem a idade que eu tenho - quem tem menos de 60 anos, digamos assim - não pode calcular o que é que foi aquilo para quem, como eu que estive duas vezes preso. E outros tantos, são tantos, muito mais tempo presos que eu. De qualquer maneira foi a sensação incrível de sair em liberdade para a liberdade. Não era sair em liberdade para a liberdade condicionada, para a prisão que continuava a existir.

Foi o começo de uns meses muito bonitos, muito lindos, em que Portugal mudou. Podia ter mudado muito mais, mas houve alguns apressados, houve alguns disparates, houve algumas faltas de consciência. De qualquer modo foi uma mudança muito importante, a liberdade e a democracia a partir do 25 de abril foi uma transformação do país.

Mas a luta continuou depois. E nesse aspeto eu tive alguma participação de que gosto de falar. Foi o facto de ter sido o chefe de missão na primeira missão às Nações Unidas, à OIT [Organização Internacional de Trabalho], Genève em maio, final de maio, princípio de junho de [19]74. Depois fui às três missões seguintes.

A missão de junho de [19]74 em que um discurso de ordem de trabalhos era uma proposta de expulsão de Portugal, pelo facto de, entretanto, a OIT e Nações Unidas terem aumentado o número de países africanos, países novos independentes e continuar com uma guerra colonial. Isso foi evitado, foi ultrapassado e teve como consequências pessoais ter um grande contacto e uma grande ligação com os países africanos.

Fui técnico das Nações Unidas para várias missões em Guiné-Bissau, duas vezes, em Cabo Verde, duas vezes, em Moçambique. E foi a minha atividade, muito enriquecedora. Não só pela teoria, mas pelo conhecimento no concreto do que é ser uma ex-colónia. De certo modo retomou aquilo que eu comecei por tomar consciência em [19]58, quando acabei o curso e quando fui em viagem de fim de curso a Angola.

Sou um apaixonado por Cabo Verde. Tive duas missões em Cabo Verde que me encheram muito, quer profissionalmente, quer como pertença a um modo de viver que é marcado pelas condições atmosféricas. Era o arquipélago da fome, da seca, da miséria. Tornou-se num país que não era viável, segundo diziam, mas mais do que viável com o esforço daquele povo. Cabo Verde é um país que eu admiro muito. Dessas experiências, particularmente, Angola, Cabo Verde e Moçambique, fiz a tese de doutoramento. Fui professor universitário.

Fazia aquilo que gostava quando fui convocado pelo partido para ir para Bruxelas e Estrasburgo, como deputado europeu. Não "fui deputado europeu". "Estive em deputado europeu" durante 12 anos. Toda a década de [19]90 e mais um anito e pouco. Em 2004 / 2005, onde militei. Cumpri a tarefa conforme me pareceu mais conveniente para o povo português e continuo a acompanhar tudo o que se passa à minha volta com grande interesse e intervindo quando posso".