Nome: Manuel Maria Candeias
Ano nascimento: 1943
Local do registo: Algés
Data do registo vídeo: 18-10.2021

Transcrição

"Eu, em tenra idade, com meses de vida, acompanhei os meus pais para Grândola. Nasci no concelho de Odemira, Santa Clara-a-Velha. O meu pai foi trabalhar para as minas de Canal Caveira e transferiu com a família, fomos todos - eu era o filho mais novo. Fui com meses para Grândola.

Felizmente que me orgulho de ter ido para Grândola, uma terra com tradições reconhecidas, com muita consciência de classe dos trabalhadores. 

Era mais difícil eu ter enveredado por um caminho de contestação e de solidariedade com os outros, se tivesse num sítio em que essas tradições não existissem. E Grândola era uma terra com muito conteúdo, uma terra de grande indústria corticeira. Onde havia uma grande consciência dos trabalhadores rurais, em que era evidenciada, mesmo no latifúndio, grande exploração. E eu, muito novinho, comecei a aperceber-me, porque tinha um irmão mais velho que eu 9 anos e que já tinha outra consciência e que também enveredou por esse caminho e começou nas atividades culturais da terra, dos clubes de futebol, de música. 

Os meus pais tinham grandes dificuldades, [eram] trabalhadores agrícolas. A minha mãe era analfabeta. O meu pai sabia ler e escrever muito bem, mas nunca andou na escola, era autodidata. Também me incutiu a mim valores que me aproximavam de pessoas de bem e comecei a ganhar consciência [política].

Fiz a escola primária. A seguir à escola primária, com todas as dificuldades inerentes a quem tinha o meu estatuto - os salários que a minha mãe e o meu pai tinham - saí da escola primária, com a 4ª classe, e tive de enveredar no mercado de trabalho que era com horário de sol a sol na altura. Fui trabalhar para uma cerâmica: fazer telha, fazer tijolos para a construção civil e trabalhava com um horário que era de sol a sol. Começava a trabalhar - regava, como se dizia - às seis da manhã e só entrava depois do sol-posto em casa, que era a 500 metros - felizmente era perto.

Tínhamos a coletividade para aprender música - o que fiz, comecei a aprender tinha nove anos. Na coletividade da Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, que é uma escola de virtudes - é uma coletividade que ainda existe. A escola a que Zeca Afonso dedicou a música de Grândola Vila Morena. Tinha o clube de futebol onde nós treinávamos, mas eu não tinha horários para treinar, mas queria fazer isso também.

Começámos a ver, a falar com outros amigos. E numa altura em que se desenvolveu uma grande campanha da luta [para] o horário das oito horas. Apanhou-me numa idade em que havia reuniões no campo, havia plenários dos trabalhadores agrícolas, havia reuniões para se organizarem. Paralelamente a este trabalho do campo, havia as fábricas da cortiça. Havia uma que era bastante grande, que era a maior fábrica de Grândola - a do Inocêncio Granadeiro - em que eu assisti aos primeiros movimentos de paralisações e greves - greve não se podia dizer (...).

Eu, nessa altura, deixei a cerâmica. Comecei a aprender a profissão de barbeiro, porque tive um problema de saúde - bronquite asmática. Quando foi conquistado o horário das 8 horas, eu saí da barbearia e fui trabalhar para uma fábrica de cortiça, porque tinha um horário que me permitia fazer as oito horas e ir treinar às quatro ou cinco da manhã para o estádio. Quando chegava às oito horas já estava cansado do futebol, mas ia trabalhar. Davam outras condições.

E à noite podia ir para o ensaio, para a música, para aprender o solfejo - a ver se conquistava um instrumento. O primeiro instrumento que me foi atribuído foi um saxofone. E conviver com as pessoas que eu admirava pelo seu caráter, pela sua maneira de estar. Não podia meter-me na conversa com eles, que eram adultos, mas ouvia e ia aprendendo. Incutiam-me em mim aquela solidariedade - que havia sempre uma palavrinha para nos dizer, apesar de não nos deixarem entrar nas conversas, mas com carinho. Pessoas que me ensinaram muito - pessoas que eram consideradas analfabetas, mas que sabiam muito da vida.

E pronto, nessa escola era impossível que eu não começasse a ganhar consciência. Começamos a fazer coisas com outros miúdos da minha idade. Começámos a organizar a biblioteca, ler os livros que eram conhecidos como proibidos, que estavam na biblioteca. Escritores [como] o Romeu Correia, o Antunes da Silva, o nosso camarada alentejano, lá de Santiago do Cacém, o Manuel da Fonseca. Tudo coisas que me começaram a transmitir, através das letras, experiências que nos apaixonavam.

Tive conhecimento da Força Aérea estar a pedir voluntários para cursos de especialização: mecânicos de avião, abastecimentos, mecânicos de armamentos, radiografistas, mecânicos de rádio, eletrónica, por aí fora.

As minhas habilitações só davam para mecânico de avião, que era o último ano em que isso era pedido, ou para mecânico de armamento ou abastecimentos - que era preparação de trabalho, preparadores de trabalho. Concorri e fiquei. De Grândola viemos uns 12 ou 13, fiquei eu e outro - ficámos dois. Ele acabou por ir para armamento e eu fiquei mecânico de avião. Num curso de 300, consegui tirar o curso. Naturalmente que já tinha a consciência que tinha em Grândola.

Vim para a Força Aérea, mas com conhecimento dos camaradas, dos amigos lá de Grândola, que me ajudavam a ter essa tal consciência [do] que a gente via no dia a dia.

Enquanto miúdo não tinha tarefas de grande responsabilidade, mas tinha - naquelas lutas, naqueles plenários - tarefas especificas. Comecei a ter responsabilidades de agitação, de distribuição - chamava a gente agitação - ações de propaganda, ações de informação [de] que havia uma repressão em tal sítio, havia um trabalhador que tinha sido preso noutro sítio. Havia essa informação transmitida, havia sempre um papelinho, havia um panfleto - nós eramos encarregados, miúdos, com a responsabilidade de fazer gradualmente essa mesma distribuição. Começámos a ter alguma organização.

Naturalmente, o meu irmão estava organizado, mas eu não sabia sequer. Um dia a polícia e a GNR vai a casa para levar o meu irmão - o meu irmão fugiu - e eu fiquei em pânico e ganhei mais consciência ainda. Não pode ser, porque o meu irmão era tão bondoso, era tão bom para mim, não podia! A minha mãe, analfabeta, que não se metia em nada, uma pessoa que não fazia mal a ninguém, só sabia trabalhar, não podia. Essa consciência ficou consolidada em mim.

Quando passa o Humberto Delgado na campanha, para a presidência da república, já como candidato pela Unidade - primeiro foi o Arlindo Vicente que era quem nós apoiávamos. Quando foi o Humberto Delgado, já tinha assistido a prisões de indivíduos do Movimento Juvenil. Numa altura foram lá as "ramonas" e trouxeram cerca de 20 jovens, que eram da [escola de] música onde eu tocava, porque andavam a fazer um abaixo-assinado pela paz, pela liberdade - que era conteúdo político, não tinham grandes ações, mas era um documento político. E foi uma denúncia, de indivíduos a quem foram pedir assinaturas, denunciaram e eles foram lá e trouxeram-nos. Acabaram por lá estar 6 meses em Caxias, alguns foram torturadíssimos. E eu assisti aquelas cenas.

Quando eu vim embora para a Força Aérea, aquilo que podia ser considerado estar numa posição de queimado, ou de conhecido - embora fosse difícil, porque era organizado de uma maneira clandestina - eu estava protegido. Quando eu vim para a Força Aérea, com aquele estatuto de militar e sendo voluntário, [já diziam]: «Este, se é voluntário, ele não é ...».

E comecei a ter algumas facilidades. Mantive sempre uma postura social, de amizade, de solidariedade com os outros. Nunca criei inimigos na Força Aérea, que era uma forma de eu me proteger e também de continuar a fazer o meu trabalho - que era político, ao fim ao cabo. A melhor forma de fazer trabalho político não era radicalizar as coisas, mas fazer aquilo que estivesse ao meu alcance.

Assim que acabei o curso comecei a voar. Em 1961 já andava a voar, nos Transportes Aéreos Militares que foi uma unidade criada para transportar os militares para a Guerra Colonial e para os feridos. Como fui bem classificado, tive opção de escolha para onde queria ir. Optei para o Montijo, Lisboa em segundo lugar, ou Sintra - que eram os aeroportos, as bases, em que eu podia estar mais perto de Grândola para manter contacto com os meus amigos, com as minhas raízes.

Para abreviar, sou mobilizado - aí as coisas pararam - sou mobilizado para a Guerra Colonial. Desertar, não desertava - a minha postura não era desertar. Era ir, cumprir, mas tentar fazer aquilo que fosse melhor - que não era permitido participar na guerra, mas se outros iam eu também tinha que ir, solidarizar-me com eles e organizar-me de maneira que a gente fizessem a menos mossa possível à Guerra. Sou mobilizado para a Guiné. Entretanto caso - consta depois da possibilidade de estar casado, não podia ir mesmo para a Guerra. Era uma ofensa para o meu irmão eu ir para a Guerra, dizendo que era contra os militares, mas afinal vou para a guerra. Então consegui. Como andava a voar, só podia sair se fosse substituído, porque já estava no quadro da Força Aérea. Consegui eu, mais oito indivíduos, saímos oito. Tínhamos acabado o tempo, mas ficámos naquela situação de quadro permanente, mas não eramos readmitidos. 

Há uma oportunidade para eu sair. Eu queria sair, arranjar emprego, era um risco que se corria, mas pronto - com o fito de ir para a TAP, que era o único sítio que me dava alguma possibilidade de exercer aquilo que eu gostava. Fiz o concurso, fui admitido. Ao fim de pouco tempo - pronto, isto na TAP é que a consciência começou mais a fortificar-se e a exigir mais responsabilidades de mim mesmo. 

As potencialidades que havia na TAP era o serviço que era mais atrativo para mim, que gostava mais, me dava mais condições para me sentir feliz e para eu fazer aquilo que se exigia na altura - que era criar-se uma célula clandestina na TAP, que pudesse fazer o trabalho político, que havia terreno fértil para que ele se desenvolvesse. Houve um incremento incrível no desenvolvimento da TAP nesse ano, em [19]67/68, umas centenas largas. A estrutura da empresa modificou-se, aumentou. Houve grande movimento, porque eram recrutados técnicos e pessoal altamente especializado - porque os aviões evoluíram bastante, deixaram a TAP ter os aviões a jato, os Caravelle, os boeings e aqueles aviões mais sofisticados e precisavam de pessoal técnico. Entrou uma grande box, mas não podia manter-se a mesma estrutura laboral que existia, rudimentar, tinha que haver a mudança dos horários, mais salários, que era pessoal especializado - à semelhança do que havia nos outros países. Não se podia compatibilizar um mecânico de avião em Lisboa estar a trabalhar na TAP a ganhar 1/5 ou 1/6 do que ganhava um espanhol - e acontecia isso. 

Então havia terreno fértil para desenvolvermos uma movimentação contra os horários de trabalho - trabalhava-se sete noites, sete dias seguidos e tinha-se um dia de folga. sete dias e sete noites, por turnos rotativos. E o salário era miséria e as condições péssimas. Havia condições férteis e foi. Então com a avalanche de pessoal que veio para a TAP, movimentámo-nos para fazer um contrato coletivo de trabalho, uma convenção. Aproveitou-se entretanto que o presidente da TAP, o engenheiro Vaz Pinto, é chamado pelo Marcelo Caetano para as funções de Secretário de Estado. Ao sair da TAP, para as funções de estado, teve informações que se antecipava o que podia acontecer na TAP: paralisações, movimentos exigências. E prometeu que havia a possibilidade de fazer um contrato coletivo [de trabalho].

O Marcelo Caetano dizia que queria sindicatos livres e fortes - nós queríamos saber se aquilo era demagogia ou queríamos desmascarar. Enquanto pudemos desmascarámos, ao ponto da gente concorrer para sindicatos - que depois houve aquela movimentação que deu origem aos sindicatos, que foram as organizações cooperativas substituídas por eleições, pelos trabalhadores das empresas. Conseguiram-se grandes resultados. Nós na TAP não adormecemos, um grupo restrito já organizado. Depois de haver essa tal organização já consolidada começou-se a ver resultados. 

Entretanto, para abreviar, há a conquista das direções. A primeira foi dos bancários, a seguir os metalúrgicos e os lanifícios, os caixeiros - na altura era comércio, os lanifícios passam a ser têxteis e por aí fora. Fizeram os quatro sindicatos. Começaram a fazer as tais reuniões conjuntas, porque aquilo eram já coisas do âmbito geral. Nos metalúrgicos havia uma dificuldade, porque a direção era composta por 16 elementos, 11 eram da TAP, Havia muita dificuldade porque tínhamos de abranger mais e ter uma abertura muito grande - isso conseguiu-se depois também.

A repressão fez-se cair. Prendeu dirigentes. O presidente do sindicato dos bancários - o Cabrita; o sindicato dos jornalistas - o António Santos; a Maria Júlia - do sindicato dos caixeiros - outros não, que já estavam queimados, mas acabaram por ficar por fora, mas estavam sobre alçada - eu próprio, dos metalúrgicos da TAP. E os outros ficaram um bocado manietados.  As direções [dos sindicatos] foram substituídas por comissões administrativas e o pessoal ficou um bocado [assustado], mas não parou, a luta não parou.

A pressão fez-se sentir a muitos dos sindicatos, foi uma avalanche de prisões em Lisboa. Sou preso em minha casa, sem mandado de busca, nem de captura. Eu ia trabalhar à tarde. Trouxeram-me para a António Maria Cardoso, para interrogatório, para identificação. Fizeram uma busca em casa de madrugada - não conseguiram apanhar nada. Eu estava em casa com a minha mulher e o meu filho. Revoltaram a cama do miúdo. Fizeram a busca - eu escondi umas coisas que tinha, enquanto arrombaram a porta. Procuraram tudo, não conseguiram apanhar nada que me pudesse comprometer. Levaram-me o passaporte, umas coisas num envelope. Quando eu cheguei à António Maria Cardoso já estavam lá em cima para dizer que estavam ali muitas coisas que me podiam comprometer. Eu estava tranquilo, que não havia nada que me pudesse comprometer.

Daí começaram logo as pressões. Acusação que era membro do Partido Comunista, que controlava o movimento sindical, que era agitador - várias acusações, a ver o que é que eu dava. À tarde levaram-me para Caxias - eu sei que era à tarde, porque ainda via claridade, via a minha mulher estar a aproximar-se na rua. Eles levaram-me na ramona, vi que a minha mulher ia a correr para dentro da António Maria Cardoso - sei que esteve lá nesse dia, porque não lhe davam informação nenhuma. E disseram que eu já não saía. Ela queria saber de mim, mas não conseguiu - não soube nada dela mais. Levaram-me para Caxias, fiquei lá a noite. Depois vieram às tantas, já de noite - já vi só as luzes acesas quando passei ali pelo Cais do Sodré, por Alcântara, aquela passagem para o outro lado estava a ser construída na altura e eu identifiquei o sítio por essa ponte.

Assim que eu cheguei começaram logo as provocações: «Olha, cá está!». Quando ia a subir as escadas, o PIDE que ia atrás de mim começou logo a dar pontapés. Os caldeirões com cal, recordo-me dessa imagem, que era pelas escadas metálicas lá das traseiras. Fiquei lá durante sete dias e sete noites seguidas, numa sala. Tortura de sono, estive vários dias em pé a fazer estátua - até ter alucinações, até estar em estado lastimoso. Pancadaria com matraca, com murros, com pontapés. Não saía daquilo. Mostraram-me os presos, um camarada da TAP, mostraram-mo só para eu ver que também cá está. «Você não quer dizer nada, mas nós sabemos tudo, porque eles já disseram tudo», aqueles truques que eles usavam na altura. Havia coisas que eles diziam que até eram verdades, mas não podia confirmar: «Você milita no Partido Comunista». [Eu]: «Não, não pode ser. Estou na TAP. Para entrar para a TAP tive de assinar um documento, em como não podia fazer parte, na altura, nem faria posteriormente parte de qualquer organização que lutasse contra a defesa do Estado, ou que conspirasse, ou que fosse uma organização ilegal. Portanto se o Partido Comunista é ilegal, eu não posso pertencer ao Partido Comunista». 

Estive aqueles dias até ter alucinações. Rebentaram-me as pernas, com o sangue - o inchaço dos pés, de ter de estar descalço porque já não cabiam nos pés. Eles pisavam-me e diziam «Epá, não dói, porque se doesse falavas. Não falas é porque não dói». Sou inanimado. Só me largam quando eu estou sem consciência, que eu desmaio. Tive alucinações e sei que desmaiei. Quando acordei, quando ganhei consciência, estava num divã articulado na sala de interrogatório. Levaram-me daí, quando caí mesmo sem ação, para o posto clínico de Caxias. Mandaram-me, como o estado era um bocado gravoso, pelo que me foi transmitido - a tensão e a pulsação estavam nos mínimos. Os médicos foram ver. Um deles sei que posteriormente foi até expulso da Ordem dos Médicos, a seguir ao 25 de abril, que era o meu médico da TAP, disse que eu estava em condições de poder continuar a tortura. Eles fizeram aquilo para ter a garantia - eles não queriam que eu morresse, queriam era sacar, descaracterizar-me, despersonalizar-me e que eu confessasse algumas coisas. Como não conseguiam, usavam aqueles sistemas. 

Deram-me medicamentos, trataram-me. Daí já não vim para a António Maria Cardoso, fui para o Reduto Sul de Caxias - que fora inaugurado na altura. Fui dos últimos a ser torturado na António Maria Cardoso e fui dos primeiros a ser torturado no Reduto Sul de Caxias, com as novas técnicas, aqueles barulhos que se faziam nos candeeiros. Na António Maria Cardoso levavam as chaves, quando a gente estava assim a [adormecer] batiam na madeira, parecia que rebentavam com o cérebro - lá já era outro sistema. Tive mais alucinações em Caxias, do que tive na António Maria Cardoso. Cheguei a andar a matar os nós do soalho, que eu pensava que eram bichos, baratas, coisas do género. 

Estive lá naquela situação mais três dias - ao todo foram 11 dias e 11 noites de tortura de sono. Houve pessoas que tiveram muito mais e aguentaram muito mais. Possivelmente eu caía, porque tinha estado hospitalizado uma semana antes da prisão com cálculos úricos - estive cinco dias a soro para deitar os cálculos úricos. Tinha perturbações nervosas, devido à época do que se estava a passar, tinha tensão nervosa pelas prisões que estavam a ser feitas, conhecimentos que eu tive - antes da minha prisão foram uma série de indivíduos presos. Um individuo que eu conhecia, que ia lá a minha casa, que não se portou bem e que entregou parte dos camaradas que estavam presos comigo. Tudo isso me deixou traumatizado. E a bronquite asmática, que eu tinha ainda resquícios de - lá na Força Aérea isso conseguiu passar-me, com os voos melhorou e passou - mas eu continuei a ter crises de bronquite asmática. Portanto, naturalmente, resisti. Até ao ponto em que eles trouxeram os autos, dizendo que estava tudo nos conformes: «Não assinas a bem, assinaste a mal». Com as ameaças que fizeram - recordo-me de dizerem: «Se não assinares, vamos buscar a tua família. A tua mulher, o teu filho, os teus amigos, vamos-lhes dizer que tu é que os meteste cá». Todas estas situações, eram situações que me deixavam, psiquicamente, completamente destruído. 

Fiquei em isolamento 69 dias - numa cela sozinho. A uma determinada altura, por erro meu, por desconhecimento ou por ignorância, eu recusei uma oferta que me fizeram para ir para o recreio. Eu sou chamado para o recreio a primeira vez e metem-me entre quatro paredes, no cimo da cadeia de Caxias. Eu só via o ar, podia apanhar sol, via o guarda andar lá em cima com a metralhadora de um lado para o outro - para vigiar um recreio, outro recreio (...). Eu estava no recreio sozinho, nunca tive um recreio acompanhado. Fiquei de tal maneira desiludido que, quando me foram convidar para os outros recreios, já não quis. Mais tarde vim a saber que tinha sido um grande erro, porque os camaradas mais antigos, quando tive possibilidade de contactar com eles, disseram-me assim: «Isso nunca se faz, porque no recreio a gente apanha sol, a gente ganha energia, vitaminas. Faz muita falta. Deixas de estar ali, naquele sufoco». Mas a minha inexperiência nesse campo - eu não tinha experiência de prisão, tinha experiência noutras coisas - passou-se.

Entretanto, mais tarde, sou tirado do isolamento e vou ficar numa cela com vários companheiros - alguns deles conhecidos, outros conheci-os depois. Estabelecemos contacto e começámos a organizar-nos lá dentro, começámos a fazer logo coisas, até que se deu a entrada do Zé Pedro. Quando foi para o pé de mim, vinha de tortura, todo massacrado, a minha primeira preocupação foi perguntar-lhe: «Então, trataram-te com tortura? Aguentaste-te? Falaste?». E ele disse: «Não pá». De vez em quando falamos nisso. Assim como falo com os outros companheiros com quem a PIDE [me pôs], que eu fui obrigado a duvidar deles. Há um do Sobralinho, que parecia um menino de bem, um menino todo bem posto, chamávamos-lhe o menino copinho de leite, mas era um revolucionário. Puseram-no ao pé de mim, na sala, à espera da identificação. Quando ele chega ao pé de mim, começa-me a fazer perguntas. E eu disse: «Epá, mas o que é que você quer? Conhece-me de algum lado?». [Ele]: «Não, não. 'Tão, mas o que é que a gente está aqui a fazer?». Portanto, todas as vezes que a gente se encontra numa festa, num convívio, ele diz: «O que é que a gente está aqui a fazer?». Porque eu não o conhecia e ele estar ao pé de mim, eu estava preparado para não aceitar nem falar com ele, porque eu pensava que era um PIDE que estava ali a tentar sacar coisas, para me comprometer. 

O julgamento teve alguma divulgação, porque teve acompanhamento de Centrais Sindicais estrangeiras, a CGT francesa, houve muita solidariedade na Holanda, na Suécia. Eu recordo-me, num dia que houve um programa noticioso nos Países Baixos, nesse dia levei uma grande tareia da PIDE e não sabia porque era. Veio a coincidir, possivelmente foi porque houve uma fotografia que apareceu, de um fotógrafo do Montijo, uma fotografia que me tinha tirado. E essa fotografia apareceu no programa. Eles tiveram essa informação com certeza. [Diziam]: «Então você andou a dizer que a gente trata mal, no estrangeiro?», e aí acabei por ser mais castigado. Tudo isto eram situações que eram paralelas. Nós estávamos lá dentro, tínhamos alguma informação, pouca.

As visitas em comum era pelo Natal ou pelo aniversário. Em Caxias não tive visitas em comum. Nas visitas em comum era quando a gente tinha oportunidade [de passar informação], ou através de um maço de cigarros, havia várias situações que nós tínhamos de engendrar. Fazíamos as coisas com uma mina, numa mortalha de papel e depois, se tivesse a olho nu que se conseguisse ver, aquilo tinha de ser aperfeiçoado - tinha de ser visto com a lupazinha para ser transportado depois para outro relatório. (...) Aprendi o [código] morse, que tinha aquela chaveta que tinha ali com os códigos - para quem não sabe a primeira pancada era o A, o B era duas, o C era três, assim sucessivamente o alfabeto, de forma a compor uma palavra, para transmitir era uma carga de trabalhos, mas lá se conseguia fazer isso.

Num relatório em que era preciso dizer o que é que se estava a passar, os nomes que eles indicaram, que falaram, os nomes que eram conhecidos, para nos protegermos tínhamos de dizer cá para fora. Eu sei que nesse meio transmiti, para depois a minha mulher passar da mortalha para um relatório normal, a informar os amigos que eles tinham referenciado, que eles tinham apertado, dizendo que eu tinha falado neles - que eu não tinha. Dizendo que eles podiam estar à vontade, que eu não sabia de nada, não os conhecia, não tinha nada com eles - e isso tive algum efeito.

Depois sou condenado e sou transferido para Peniche - 20 meses de prisão. Eles consideram prisão maior, com os direitos políticos cortados - aquela coisa com os custos da justiça convertível em tempo. Sou transferido para Peniche, tenho até a guia de marcha. Fui algemado, mais dois companheiros - apesar de irmos na carrinha íamos algemados, com um carrinho à frente e outro atrás. Parámos no caminho para fazer as necessidades. Eles pararam o trânsito, tinham um processo de defesa com os carros que acompanhavam, celulares, ficavam para dar oportunidade de nós virmos, depois saia um, tinha que sair o outro. E lá fiquei até sair para Caxias novamente. Saí de Caxias, estava internado no hospital com vários problemas. Saí do hospital à meia-noite, fiz uma direta, de manhã já estava em Peniche à espera dos outros - que saímos quatro nesse dia. Uma grande festa com os amigos, viemos todos por aí fora, inseridos no processo. 

Já não pude ir para a TAP, só entro para a TAP com o 25 de abril, com a amnistia aos presos políticos. Foi dramático, porque eu tive várias pessoas com influência na TAP, que queriam que eu fosse reintegrado, e a informação que a PIDE dava era que não podia ser. Havia a tese que se eu fosse reintegrado, (...) era porque me tinha portado mal: porque tinha denunciado. Eles não quiseram correr o risco e não me quiseram aceitar.

Eu saio da cadeia, a primeira coisa que faço e ir agradecer aos companheiros que faziam o ordenado todos os meses, mas que eram centralizados pela Comissão de Socorro aos Presos Políticos. O que é hoje a URAP, União de Resistentes Antifascistas [Portugueses], a herdeira dessa comissão que foi criada para dar apoio aos presos políticos - para organizar colónias de férias para os filhos dos presos, para dar algum apoio, alguma solidariedade. Intelectuais, algumas pessoas que tiveram na formação dessa comissão, de grande valor democrático, antifascistas, que se arriscaram e que também tiveram o seu papel na história - grande parte deles já desaparecidos, mas que fica bem de vez em quando lembrar-nos deles. Porque correram riscos para solidarizar. Centralizávamos a cotização dos companheiros de trabalho, até formar o ordenado dos que tinham filhos, conforme o ordenado que cada um tinha. Enquanto eu estive preso, só nos últimos meses comecei a ter algumas dificuldades, porque começou a haver um desleixo, começou a haver uma desorganização, a coisa começou a falhar. Mas, durante aquele período quente, nós sentíamo-nos confortados. Com os amigos que às vezes nos podiam ir visitar, as informações que nós tínhamos, a solidariedade era imensa.

Quando eu saio da cadeia a primeira coisa que faço é ir visitar os companheiros de trabalho, mas como estava impedido, com os direitos políticos e não podia frequentar os sítios que me tinham levado à prisão, que tinham dado argumento para que eu fosse para a prisão - era a TAP, era os sindicatos bancários, que eles diziam que eu não podia frequentar, os metalúrgicos. Sítios que eu não podia [ir], que eu tinha os direitos vedados. E eu queria continuar a trabalhar. Concorri a umas sete ou oito empresas, todas zonas de Cabo Ruivo - algumas aceitavam-me, mas quando sabiam já não tinha hipótese nenhuma.

Na TAP, na esperança de ir para lá trabalhar, fui falar com eles. Fui informado que era desconhecido - não podia ir à TAP. Até à entrada, depois com o 25 de abril, com a apoteose. Queriam até que fosse para outros cargos, que não fiquei, fiquei sempre como execução - até vir novamente para a direção do sindicato [dos metalúrgicos].

Fui eleito, logo imediatamente houve eleições. Fui eleito para a direção do sindicato. Comecei a trabalhar logo no sindicato. Formámos um sindicato obedecendo às orientações do Movimento Sindical Unitário, da Intersindical, formar um sindicato por ramo de atividade - em vez de ter 20 sindicatos na TAP, formar um, que era o nosso objetivo. Formámos um, que dava condições para todos os trabalhadores que podiam ser sócios, que é o SITAVA - felizmente foi-me atribuído o sócio número um, fundador - hoje ainda sou sócio desse sindicato. Que é o maior sindicato do sector, que tem as suas características próprias, mas não era o sindicato dos metalúrgicos, era um sindicato com as características com alguma especialização - é diferente. Mas que teve o seu papel no momento e que ainda hoje está consolidado. Deixei de estar nos metalúrgicos, mas sempre ligado aos meus companheiros, que foi lá que eu ganhei raízes e fiz algum trabalho que eu julgo que é positivo".