Nome: Manuel Martins Pedro
Ano nascimento: 1931
Local do registo: Algés
Data do registo vídeo: 14-10-2021

Transcrição

"Sou filho de um operário. De um operário que era comunista. Durante a guerra era preciso contê-lo, porque ele às vezes perdia as estribeiras e começava a gritar: «Stalin! Isto precisa aqui é de um Stalin!». Isto não me dizia nada (...).

O Bairro da Ajuda era um bairro praticamente só de operários e, portanto, era natural que eu fosse contra o Salazar. A noção de fascista, do que era o Partido Comunista, não tinha.

Era um bom aluno, dos melhores alunos da escola. Mas acabei a escola e um mês depois fui trabalhar, com 11 anos, para o Tavares Rico - não sei se vocês sabem o que é o Tavares Rico. Fui trabalhar de calçõezinhos. Como andava sempre descalço fui calçado, até ter uma farda. Fui viver para um quartinho no Bairro Alto, porque eu (...) começava a trabalhar às 9h na limpeza, depois a partir da uma hora a atender os clientes e às vezes trabalhava até às 5h da manhã - cheguei a adormecer em pé, encostado a uma parede, mas a adormecer com o patrão a sacudir-me.

Tavares Rico era nessa altura o mais célebre restaurante do país e ainda hoje está quase - em relação aquilo que eu conheci - na mesma. Era onde se concentrava a gente rica deste país, especialmente detentores de poder político e estrangeiros. E era um centro, também, de espionagem. Eu conheci alguns, um deles ainda estava vivo após o 25 de abril e ia ainda ao Tavares, embora estivesse a viver em Espanha - depois do 25 de abril regressou a Lisboa. Era um americano. E este era o meio em que eu vivia.

Pagavam-me 30 escudos por mês. Nunca recebi, porque com os 30 escudos tinha de pagar a farda [Risos] que o Tavares queria que eu usasse - eu e os outros, eramos cinco - e comia. Davam-me de comer - que era mau, é estranho, mas que era mau - mas era comer, pronto.

Eu vivi nesse quarto. Era gente muito boazinha. Dormia com um miúdo que trabalhava na cozinha, da minha idade, na mesma cama para ser mais barato. A senhora da casinha, todas as noites, nos primeiros tempos, tinha água quente à noite para tratar dos pés. Tinha os pés todos feridos porque não estava habituado a andar calçado.

Durante anos não vivi em casa dos meus pais.

A guerra acabou, os clientes desapareceram - eu vivia das gorjetas, ganhava muito bem. Entregava tudo à minha madrasta, porque, entretanto, o meu pai e a minha mãe separaram-se e o meu pai casou com uma senhora. Eu dava todo. Não pagava passe, não tinha de pagar refeição. O Tavares Rico já praticamente não tinha clientes, por isso eu regressei a casa.

Entretanto fui a um concurso no Banco Lisboa e Açores. Estudei que nem um maluco - tinha deixado a 4ª classe, durante cinco anos nunca mais estudei, mas fiquei apurado. Estava muito feliz porque ia ser empregado bancário. (...) Aos 18 anos automaticamente passava-se para a carteira - era assim que se dizia - tudo bem.

E comecei a estudar à noite. Na escola noturna de Ferreira Borges, em Alcântara. Entrou para lá um novo diretor, que era diretor de uma escola comercial e decidiu alterar os estatutos relativamente às questões que envolviam o pessoal. Portanto a passagem automática aos 18 anos acabava, tinha de ser submetido a um concurso. Eu estava à beira dos 16, já não me lembro. E disse: «Bem, toca é de arranjar um novo emprego, que isto não vai resolver nada».

O meu chefe - eu trabalhava sozinho num gabinete com um senhor que era o chefe do gabinete, por onde entrava toda a correspondência, dinheiro, etc. - arranjou-me emprego numa fábrica de curtumes em Sacavém. Eu fui trabalhar para lá e aquilo foi muito doloroso. Fiz esse trabalho de organizar o escritório e a contabilidade, a trabalhar todos os dias. Os operários trabalhavam todos os dias por turnos - e eu fiz isso, não por turnos.  E quando aquilo acabou eu disse [diálogo]: «Eu agora deixo de vir aos domingos». «Não deixas não». «Deixo, deixo». Resumindo, despediu-me. Uma semana depois aparece-me um recado em casa do meu antigo chefe lá no banco a dizer que tinha um emprego para mim [Risos] e eu disse: «Ó minha mãe!».

Fui trabalhar para um armazém de bananas, na rua de São Bento. Aprendi a tratar das bananas. Escrevi uma carta para vários bancos e companhias de seguros a pedir emprego. Só houve uma que me respondeu a dizer que não havia nenhum concurso próximo, mais ninguém me respondeu. Nunca mais pensei nisso. Estava no armazém das bananas quando recebi em casa uma carta a dizer-me que ia abrir um concurso, se eu queria concorrer para ir lá à companhia e inscrever-me - e eu fui. Cheguei a casa e disse ao meu pai: «Pai, não conto com nada. Eu não tenho uma cunha, aquilo é tudo gente com melhor preparação do que eu». Mas fui.

Fui e fui aprovado, fiquei em primeiro lugar - apuraram seis e eu fiquei em primeiro lugar. Tornei-me numa espécie de estrela da companhia. Resumindo, nessa altura na companhia de seguros houve um colega que me levou para o cineclube Imagem. O movimento cineclubista estava a ter um grande impacto no movimento antifascista de norte ao sul do país, com destaque para o norte, na altura. Eu fui e estava a ser organizado o cineclube Imagem. Eu fui para a comissão organizadora, depois fui para a direção - mais tarde, quando o cineclube foi oficialmente constituído e se elegeu a direção.

Aí começo a ter relação com gente de vário tipo, mas vindo do meio - não era do meio pobre - gente que vivia bem, estudantes e intelectuais. Onde fiquei muito surpreendido. Era gente muito boa. E comecei a aperceber-me que havia ali gente ligada ao Partido Comunista. Eu não sabia o que era o partido e criava situações muito complicadas, porque eu era capaz, num café qualquer, se estivesse a discutir ou a falar e tivesse acontecido alguma coisa em relação à União Soviética, eu começava a falar alto e as pessoas aterrorizavam-se. Lá no meu bairro uma vez, malta da minha criação, eu estava nos meus discursos estentóricos contra os americanos [Risos] e a malta desapareceu toda - e eu dizia: «Isto é tudo gente cheia de medo».

Comecei a ouvir falar no Álvaro Cunhal, que estava preso. Deram-me um Avante assim à sorrelfa. E eu: «Um mais? Já sou sócio de não sei quê, mais não sei quê». Houve alguém que me convidou, disse: «Olhe, eu sou membro do partido…» - estávamos os dois sozinhos - «…vou para Inglaterra e queria que ficasses a substituir-me no partido». Eu fiquei todo contente, é que fiquei mesmo. E fiquei no partido desde então. Mas não fiquei organizado nem na companhia de seguros, nem no Imagem, no cineclube.

Em 1957 há o festival da juventude em Moscovo. Chamava-se - e chama-se - Festival da Juventude Para a Paz e Amizade Entre os Estudantes. E eu fui convidado a ir. Arranjei um esquema para não trabalhar durante um mês e fui. Fomos 30 e tal, não nos conhecíamos uns aos outros. E eu não sabia - nenhum de nós sabia - que entre nós ia um bufo, um jovem que era bufo. Aquilo durou 15 dias, foi uma coisa linda, linda.

Eu para conseguir o passaporte tive que ir à PIDE. Eu pedi-o normalmente e não mo entregaram. Deram-me uma resposta e eu disse: «OK, eu vou à PIDE. Vou lá e vou reclamar porque é que não me dão o passaporte». E fui.

Apareceu-me o Inspetor, que eu depois vim a conhecer das vezes que fui preso, um gajo importante [diálogo]: «O senhor quer ir a França? Quer o passaporte...?». «Para ir a França». «Para quê?». «Gosto de pintura, gosto de coisas que há lá. Em França aquilo está cheio de coisas que aqui não temos, eu quero ir ver». Ele deu-mo. Deram-me o passaporte.

Fui atrasado, um bocado atrasado. Fui com o Fonseca Costa, o realizador de cinema, não sei se conhecem - fomos muito amigos sempre. Ele e a irmã, que faleceu agora em janeiro. Muito, fomos os três amicíssimos.

Cheguei lá, tive aquela gripe asiática - que não tinha tido em Portugal - fui tê-la lá seis meses depois. Internaram-me. Eu não queria que me internassem, queria uma aspirina. Eles tinham um serviço de assistência médica por todo o Moscovo. A médica ria-se, dizia: «Niet, niet!». Lá fui internado. No dia seguinte estava bom e queria ter alta - eles: «Não, nem pensar». Depois percebi que estive um bocado mal. E vivi o festival, de facto, três ou quatro dias, cinco - tinha chegado atrasado, não interessa.

Viemo-nos embora. Quando, passado algum tempo, chegámos - isto foi julho / agosto de [19]57 - começaram a prender a malta. Dois, três - nós íamos sabendo. Eu acabei por ser preso com a Ana e o Fonseca Costa em 1958, em fevereiro.

Estive três meses numa gaveta no Aljube, que é das coisas mais horrorosas. Fala-se tão pouco de uma gaveta, que é das coisas mais imundas. Não há espaço para andar, não há cadeira para sentar, não há mesa para a gente comer, não há um urinol dentro da gaveta. O espaço, eu cheguei a medir com os braços, de largura é um metro e qualquer coisa, de fundo era dois metros e picos - não tinha espaço, portanto. Para andar tinha que me movimentar sempre apoiado num pé. Saí de lá coxo. Ao terceiro dia [Risos] ao almoço - eu cheguei à noite, não me deram de jantar.

Eu não tinha dinheiro, tinha cinco tostões. Já estava casado, tinha uma menina e levava cinco tostões, eu vivia muito mal também depois de casar. Casei-me em condições de não haver muito dinheiro para poder casar minimamente bem - minimamente.

No outro dia não me deram de jantar. Já tinha saído às 6 horas, eu cheguei lá por volta das 3h da noite. Não me tocaram, fizeram-me as perguntas da praxe. No dia seguinte vieram dar-me comer, abriram as portas daquilo que nós chamávamos os curros - aquilo era escuro, tinha uma lâmpada de 25 velas, era alto e as paredes eram um cinzento escuro - e vão-me levar um prato de sopa. Passado um bocado o sargento que andava a distribuir a sopa veio perguntar-me se eu queria mais, eu disse: «Não, obrigada». Foi-se embora. Passado um bocado começam a fechar as gavetas - a gente chamava gavetas ou curros. Fecharam a minha, eu comecei a bater, a bater e o guarda veio e disse [diálogo]: «Que foi?». «Então e o segundo?». «Segundo, qual segundo?». «Então, eu só comi a sopa!». «Não lhe ofereceram mais?». «Ofereceram». «Então, não quis!». «Pois, eu quero é comer alguma coisa sólida». «Ao almoço só há sopa». [Risos] E eu dei uma gargalhada, que eu sou brincalhão e otimista nestas coisas.

Três dias depois comecei a sentir muita comichão na pele. Chamei o guarda João, que até era um homem porreirinho [diálogo]: «Ó senhor João, arranje-me DDT…». Nesse tempo o DDT servia para tudo, não sei se ainda se lembram do DDT - «…arranje-me um bocadinho de DDT». «Para quê?». «Tenho a cama cheia de pulgas, estou cheio de comichões por todo o lado». «Qual pulgas, qual comichões. Daqui a três dias já não tem comichão nenhuma». «Estou a falar a sério!». «Isso não é nada, isso é poeira». «Poeira?». «Sim, eu estou aqui há não sei quantos anos. Esses cobertores nunca foram lavados». «Hã?!». «Essa roupa aí nunca foi lavada. Daqui a uns dias passo aí». E foi assim.

Três meses depois saí com frieiras na pele, a coxear - por causa do tal pé que não assentava. Dois ou três meses depois dei entrada de urgência no [Hospital] Curry Cabral, estava com uma inflamação nas ... - já não me lembro como é que chamaram aquilo. E estive muito mal. De tal modo que o médico chegou a pensar que eu estava com um tumor, mas não estava. Ao fim de um mês e meio - deram-me de comer, muito comer - vim-me embora. Ainda tenho efeitos desse período.

Sou admitido na companhia, não sou despedido. E sou convidado para ir fazer o controlo do organismo de direção dos empregados de seguro - não conhecia nenhum deles, mas um deles era o presidente do sindicato. E fiz esse trabalho durante algum tempo, sendo membro do cineclube. Os comunistas não se conheciam, era proibido. Disseram-me logo quando entrei no partido: «Nem ao teu pai digas». Foi uma coisa que me custou muito, mas paciência, não disse.

Depois veio um segundo controleiro - que era como nós chamávamos - que não batia bem. Teve muita influência na minha vida prisioneira e política, porque enganou muita gente. Isso é outra história.

Há as eleições. Eu saio [da prisão] em fevereiro, durante a campanha eleitoral do Delgado - aquilo foi uma loucura, você nem imaginam. Estive em casa do Delgado. Ainda fiz parte de uma equipa - quando ele estava cercado pela PIDE em casa - para ir a casa dele e sacá-lo à força, armado. Mas ele não quis, arranjou outra solução que eu já não me lembro qual foi, e foi-se refugiar na embaixada do Brasil. Depois foi assassinado pelo Rosa Casaco, que é conhecido também... canalha.

A seguir a essas prisões, deram-se muitas prisões entre os comunistas. A malta desbragou toda. Começou a identificar-se uns aos outros, no meio daquela alegria das manifestações. Quando o Salazar se apercebeu caiu sobre a malta com uma violência...

Quando fomos esperar o (...) Delgado quando vinha do Porto, desceu em Santa Apolónia, uma manifestação medonha para o esperar. Íamos entrar no Rossio e estava a polícia e começou a disparar a sério.

Tempos depois, eu fazia parte de uma comissão - já não me lembro como é que se chamava a comissão - e um belo dia, de não sei quantos que eramos [só] apareci eu e outro. E decidimos que a comissão acabava. [Risos] Porque seguramente nós eramos os dois que faltavam e aqueles estavam a aguardar qualquer coisa - e estavam.

Eu já tinha sido denunciado, por esse louco que tinha sido meu controleiro, e sou preso. Sou preso com o organismo de direção de seguros, que estavam presos há dois meses - eu não sabia (...). Neguei tudo. Sabiam de tudo a meu respeito - quota, pseudónimo. Eu disse: «É tudo mentira, não me chateie».

A segunda vez fui preso no emprego. Ia passar à clandestinidade, três dias ou quatro dias depois - mas a vida de partido clandestino era uma vida que eu depois conheci. A gente via-se de mês a mês e quem me iria buscar foi preso - era o Brito. Eu não soube - e se alguém soube também não tinha condições para me contactar. Eu tinha estado em casa do Fonseca Costa - que ele tinha mudado de casa para junto da Estrela. Estive em casa dele a trabalhar na passagem à máquina de um documento sobre uma matança em Cabo Verde - uma matança de malta negra que foi fechada num barracão até morrer sufocada. Estive 15 dias em casa dele a bater esse documento. Digo assim: «Bem, se não me vierem buscar dentro de dois ou três dias, vou ser preso», porque me disseram para regressar ao emprego, regressar a casa. [Pensei]: «Bem, se regresso ao emprego sou preso». Depois de sair da prisão por ter ido a Moscovo, estes 15 dias desaparecido…

Bom, fui preso. Fiz uma cena, tratei mal o diretor. Fiz uma cena dos diabos na companhia. [Perguntei] porque é que deixava entrar aqueles sujeitos ali dentro. Ele foi a correr lá à sala onde eu estava a ser preso - ele estava aflito. Os PIDEs estavam atrapalhados. Vi-me livre de tudo o que tinha comigo, porque eles estavam apardalados, não esperavam uma reação daquelas da minha parte. Eu estava, de facto, com uma fúria. E sou preso.

Estive dois meses isolado, à espera todos os dias que a PIDE me fosse buscar. Porque eu recusei-me a dizer o que quer que fosse, eles mandaram-me para Aljube e disseram-me: «Amanhã vamos buscá-lo e começamos isto a sério». Portanto eu estive dois meses à espera que eles me fossem buscar - que é uma coisa horrível.

No Aljube a gente sentia chegar as carrinhas, que eram Volkswagen, ouvíamos abrir os portões, ouvíamos o telefone - eram eles lá de baixo a dizer ao guarda para ir buscar o preso tal, a qualquer dia, a qualquer hora do dia ou da noite. Portanto o tempo está suspenso. Eu passei dois meses, que comecei a sentir mal. Mandei um recado para a secretaria. Queria ir ao médico, porque eu queria ir à polícia. No dia seguinte estava a ser ouvido pelo médico e eles estavam todos de boca aberta porque eu dizia: «Eu quero ir à polícia acabar com isto». O que é que eles pensaram? Que eu queria ir à polícia para falar. [Risos] E ele mandou-me ir.

Cheguei à polícia e tinha um quadro um bocado assustador. Eram não sei quantos PIDEs e era gente que me conhecia. [Diziam]: «É ele. Este é o senhor Manuel Pedro». E havia um que dizia: «Não fala e, portanto, eles não vos põem em liberdade!». Eu estava encostado à parede e berrava: «Fascistas! Aqui não conheço ninguém, é só fascistas, são todos fascistas». Aquilo acabou, mandaram-me embora e no dia seguinte chamaram-me. [Risos] Começaram outra vez, mas agora só o chefe de brigada comigo. Ele sentado numa mesa e eu à frente de pé, com dois PIDEs, eles nunca faziam esse trabalho sozinho: «Não sei quem é esse. Não tenho nada a ver com esse sujeito que ontem falaram». A certa altura o tipo diz: «Você é louco!» e eu debrucei-me sobre a mesa, encostei a minha cabeça à dele e dizia «Louco é você!». [Risos] O homem ficou assim esparramado a olhar, mas de repente saltou e desatou à bofetada. Eu encostei-me à janela gradeada, de olhos abertos, a olhar para ele e comecei a dizer: «Eu vou-lhe dar um murro ou uma cabeçada». E ia-lhe dar uma cabeçada - esfrangalhavam-me! Ele percebeu que eu não estava bem, parou. Parou e acabou tudo. Fui-me embora, mandaram-me para a enfermaria, para sair dessa cela.

Depois tive cerca de 18 meses na enfermaria de Aljube. Da enfermaria fui para Caxias. Em Caxias tive, não chegou a 15 dias. Depois de Caxias fui para a prisão da PIDE no Porto, onde estive três anos. Depois fui para Paços de Ferreira, estive seis meses. E quando estava mesmo a chegar ao fim das medidas de segurança - eu já tinha cumprido a pena: apanhei dois anos e um mês de prisão e já ia nos cinco anos e tal de prisão. Mandaram-me para Peniche e em Peniche ouviram-me para a liberdade condicional.

Queriam que eu assinasse um documento em que aceitava as condições em que era libertado para a liberdade condicional. Faltavam-me três meses para acabar os três anos de medida de segurança, que poderiam ser prolongados por mais três anos indefinidamente - era a prisão perpétua se eles quisessem. E ele queria que eu assinasse o documento. Eu disse [diálogo]: «Não assino o documento sem ler». «Mas o senhor duvida daquilo que eu estou [a dizer]?» - ele leu [o documento]. «Não, eu não duvido. Porque é que hei de duvidar? O senhor leu em voz alta e eu percebi que estava a ler o que estava no documento. Mesmo não assinando o documento sem ler, eu percebi perfeitamente, mas não assino». E não assinei por uma razão muito simples - é que eles queriam, no documento, que eu garantisse que não voltava ao Partido Comunista Português. Queriam que eu, naquele documento para a minha liberdade condicional, admitisse aquilo que não tinha [admitido até lá]. Disse: «Não, não assino. Não vale a pena». O homem estava desesperado.

Um camarada meu, que é o Manuel Pedra, teve a mesma atitude. Levaram-no para Caxias, deram-lhe uma tareia tão grande que ele enlouqueceu. Vim a vê-lo a última vez - e a primeira depois de sair da cadeia - no Hospital Miguel Bombarda. Parecia outro homem, a olhar para mim com um ar assim muito triste. Era outro homem.

Mas a mim não me bateram. Só que saí no último dia e com dez contos de caução - e nesse tempo dez contos era dinheiro - que a malta da companhia de seguros e malta amiga deu.

Aqui há uns episódios com a minha segunda filha, que nasceu uns dias depois de eu sair da primeira prisão. Coitadinha, julgava que eu não tinha pernas. Porque a única coisa que ela tinha conhecido de mim era uma fotografia que tinha em casa em tronco, depois ia-me visitar ao Porto - e nós estávamos à espera das visitas sentados e, portanto, só me via sentado. Nesse ano a única vez que durante aqueles 11 anos tive visita em comum - tirando as vezes que tive no hospital - ela viu-me a pé, a andar. E passámos a visita toda a gramá-la a chorar - chorou todo o tempo. A mãe é que lhe conseguiu arrancar-lhe a razão: é que afinal eu tinha pernas.

Em [19]64 regressei à companhia. Eu fui sempre readmitido na companhia, mesmo antes do 25 de abril - um mês antes - tinha recebido uma carta a dizer que eu estava readmitido, porque eu ia sair. Tinham acabado as medidas de segurança, não tinha de cumprir esses três anos e ia ser readmitido.

Em [19]64 saio e 15 dias depois vem um camarada, que eu conhecia, dizer-me que eu tinha encontro marcado em Sintra, para eu ir a esse encontro. Foi-me posta a questão de passar à clandestinidade - que já tinha sido posta da outra vez. Passei à clandestinidade, levando comigo, logo, a minha companheira, a minha filha mais velha e a filha que julgava que eu não tinha pernas - que tinha na altura 8 anos e andava na 1ª classe.

A mais velha estava no 1º ano do Liceu. E fomos.

Nessa noite, cansados, exaustos. Tínhamos ido uma semana antes comprar uns móveis baratinhos, para montar uma espécie de casa. À meia-noite estava a pôr uma tranca na porta, batem à porta a murro.

Deu-me uma fúria. Virei-me para a mulher e para as filhas e disse: «Desculpem. Devo ter cometido muitos erros, porque a PIDE está aí». Eu dei um berro, lembro-me tão bem: «Quem é?!». E uma voz muito tímida: «Desculpe, senhor Padre, é que o meu tio está a morrer e quer a extrema unção». Eu disse: «A igreja é aqui ao lado, a casa do padre é aqui ao lado desta!». [Risos] Depois virei-me para dentro, com a boca tapada ria, ria de satisfação, porque aquilo não cabe na cabeça de um piolho. [Risos]

A clandestinidade, com muitas coisas, grandes dificuldades, falta de dinheiro. Ao fim de seis meses o controleiro, que era um camarada da direção do partido, foi preso. Fiquei desligado, sem dinheiro, sem nada. Não podíamos ir, que eu era o responsável pelo Baixo-Ribatejo, que agora chamam-lhe Lisboa e Vale do Tejo. O Baixo-Ribatejo que era uma zona imensa, que ia de Loures quase até Santarém. Mas não podia passar por zonas que fossem controladas por outro camarada - que eu não sabia quem era - para não haver cruzamentos e encontros e o perigo de levarmos a PIDE atrás de nós e identificarmos outros.

Por um lado, procurar ganhar trabalhadores para o partido. Depois era estruturar a organização, para a criação de um secretariado clandestino - tudo clandestino. Depois, em função disso criar condições de natureza unitária para se desencadearem lutas por melhor salário, contra isto ou contra aquilo - que aquilo era uma desgraça. Por exemplo, uma comissão organizada por membro do partido, numa empresa cujo nome agora não me lembro, era composta por um católico, dois sem partido, por um comunista - mas o homem que militava aquilo tudo era um que não era do partido, mas que tinha uma importância muito grande em relação aos outros operários. Nós conseguimos pôr isto a funcionar independentemente de quem é que tomava a dianteira daquele colectivozinho. O meu camarada Veloso, quando eu lhe disse isso, disse [diálogo]: «Ó Manuel, diz lá ao camarada que não largue esse. Operários desses é que a gente quer». «Que não largue como?». «Então, se ele for ao futebol, ele vai ao futebol com ele. Se ele for pescar, ele vai pescar». [Risos] Quando eu disse isto, o camarada olhava para mim: «Eu ao futebol?». «Sim, sim, vais ao futebol». E passou a ir! E passou a ir buscar os membros mais responsáveis do Partido, lá da direção do Partido, em cargos importantes. Veio para o Partido com 18 anos - eu digo que tinha 18, ele diz que tinha 19. Não interessa.

Sofríamos um golpe aqui, um golpe acolá. Era tentar reconstruir. Era difícil, porque os golpes eram muitos, as prisões eram muitas. Era este trabalho permanente, construir, reconstruir. Organizar, criar organismos. Mobilizar para a clandestinidade quando houvesse condições para isso. Tínhamos que conhecer onde é que havia polícia, escolas. Em Vila Franca nessa altura e no concelho só havia uma escola. A gente procurava recrutar muitos jovens da escola de Vila Franca, porque dali saiam jovens quadros para o trabalho administrativo das empresas, ou para o trabalho fabril. E, portanto, aquilo era um alfobre. Era um dos objetivos, era onde tínhamos mais jovens que frequentassem a escola. E a certa altura havia grupos com malta com o Marx debaixo do braço e pelas estações a discutir.

Isto era difícil para a PIDE, porque são grupos de jovens, que se percebe que existem por todo o lado, e que eles não conseguem dominar. Procuram depois, nuns casos conseguiam, noutros casos não. Mas era um trabalho permanente.

Para entrarmos em casa dos camaradas com quem estávamos a trabalhar, tínhamos encontros marcados antes de lá ir. Deixávamos um sinal a uma certa distância, se não estivesse o sinal não avançávamos, ou iam lá. E nestas coisas encontrei as coisas mais deliciosas. Não era fácil, a gente chamava a isso os pontos de apoio. Encontrei coisas cómicas e ternurentas.

Uma coisa cómica [Risos] era a casa do Batata. O Batata era casado, era operário na SODAPOVOA, creio eu. A casa era próxima e ficava junto à linha do comboio. Eu ia para casa dele aos sábados e a partir daí movimentava-me pelo Baixo Ribatejo. Aos sábados ia ter com ele a um certo sítio, que era a taberna, onde ele ao sábado ia descansar. E lá estava ele, estava a uma certa distância, estava tudo bem e eu ia. Ele era casado tinha uma filha já quase mulher que vivia com ele. E, portanto, alguém se ia lixar. A mulher dormia com a filha e o Batata dormia comigo. Só que o Batata, quando chegava a casa já ia com os copos. [Risos] Então de noite eu não dormia, porque de vez em quando lá vinha a perninha do Batata para cima de mim! E eu sacudia a perna do Batata e ele resmungava.

Coitadinhos, quando souberam que eu não queria voltar lá mais, por causa de um funcionário que fez uma alarvidade. Eu não pude usar mais esse ponto de apoio. O marido encontrou-se comigo, longe dali. Eu disse: «Olha, eu não posso lá voltar». E ele disse: «Pois, nós calculámos. Ela desatou a chorar quando calculou que tu não voltavas». Era gente muito boa.

Outra é uma cena de uma ternura. Eu tinha dificuldades em ter pontos de apoio, eram sectores muito batidos pela PIDE, gente muito queimada - queimada é gente que estava identificada pela PIDE, ou que tinha estado preso. Então havia um professor (...) tinha sido operário na fábrica da loiça, fez o quinto ano e foi ser professor numa escola industrial - numa área que agora não me lembro (...). Eu tinha encontros com ele em Sacavém. Sacavém estava-me vedado, porque tinha havido uma grande vaga de prisões e aquilo era uma localidade adjacente a Sacavém.

Eu chegava aos fins de domingo cansado e não tinha para onde ir. Tinha que ir inventar. Andei a convencê-lo em duas ou três reuniões para deixar-me ir dormir lá a casa, fazer de ponto de apoio para mim. Ele dizia: «Não, camarada. E a minha mulher? Aquilo tem muita gente, conhecemo-nos todos». Mas eu tanto bati nisso que um dia cheguei à noite e disse: «Tem paciência, eu estou esgotado» - e estava, mas fiz de propósito - «Estou mesmo esgotado, cheio de fome. Tu vais-me deixar ir dormir a tua casa, tem paciência. A tua mulher que tenha paciência e que aguente». E ele foi e levou-me. Eu entrei, a mulher estava na cozinha. No meio da salinha por onde entrei havia um berço de bebé e havia um puto, estava a dormir no quarto deles. Ao que parece dormia com eles. (...) E eu ouvi uma grande discussão lá dentro na cozinha e pensei: «Bem, estou tramado». Era a mulher a ralhar com ele. [Pensei]: «Ele tinha razão». De repente aparece a mulher, encabrestada pela sala dentro: «Ó camarada!». Eu fiquei assim! [Ela]: «Este estúpido! Não dizia que tu eras um camarada, mas não papei aquela história que ele me contou que tinhas vindo aqui para arranjar uma casa. Que ficavas cá esta noite para andares de dia a ver casas…» - que eu tinha contado a história que vivia em Torres Vedras - «…. este estúpido. Deves estar cheio de fome, deves precisar de dormir». E eu estava de boca aberta a olhar para ela. [Risos] A tratá-lo mal!

Ela tinha sido operária na fábrica e aquela gente toda era malta toda comuna! Sacavém era uma terra de comunistas e ainda hoje é. Então lá queria fazer-me o jantar. Disse [diálogo]: «Não quero. Se me arranjares uma sandesinha, como». «E vais dormir na nossa cama». «Ai isso é que não vou». «Não vais dormir no chão!». «Isso é que vou». Mas aquilo foi de uma ternura tão grande. Ela tão aflita, se eu tinha comido: «Tu estás com um ar tão cansado. Este estúpido a dizer-me que eras um colega professor que queria viver aqui». Há muitas cenas destas.

A terceira prisão é uma situação muito... Eu tenho uma ideia, mas nunca houve condições para a discutir. Eu e o Veloso - que era o camarada mais responsável, que coordenava uma parte dos funcionários de Lisboa, um quadro importante do partido - tínhamos percebido que a PIDE estava em cima de nós. Nós fazíamos as nossas reuniões, o Veloso, eu e um outro que era o Cabral Matos, e a certa altura comecei-me a queixar, porque eu tinha sempre coisas a referir e o Cabral Matos nunca tinha nada. Levantei o problema «Isto é estranho. Veloso, tu primeiro até gozavas comigo. Até que também começaste a dizer: «Manuel, a PIDE está em tal sítio», «Manuel, a PIDE foi vista em tal sítio, e eu tive de fugir». Mas o outro nunca via nada.

Nós fomos para um ponto de apoio naquele edifício - era o edifício mais alto que havia no Areeiro. E esse camarada tinha lá um ponto de apoio de alguém que não era do partido, trabalhava num organismo de estado para as questões financeiras, mas era amigo dele. E deixava-nos reunir lá. Era casado com uma senhora americana, vivia bem e tinha uma bolsa da Gulbenkian para ir para a América fazer um doutoramento à maneira. Porque era um quadro importante do ministério da economia.

Eu ia para esses encontros - não sabia onde eram - de olhos tapados. Portanto eu não sabia para onde ia. Mas sei que ia muito preocupado, que dormi numa pensão ali para a Estrela, São Bento, e que não dormi quase nada. Estava tenso, com a noção de que havia qualquer coisa que não estava bem.

Fui para lá, entrei na casa - não sabia onde estava, como é natural. Fui metido num quarto, onde estava o outro. O Veloso é que me tinha ido buscar. E ali ficamos os três. Não vi o dono da casa, não vi a senhora na outra parte da casa. Eu andava adoentado, andava a tomar comprimidos para dormir. Havia só uma cama - tiramos à sorte para ver quem é que dormia na cama. Calhou-me a mim e o Veloso e o outro dormiram no chão. Eu estou a contar isto, porque depois dá lugar a uma anedota. (...) Antes da noite estivemos reunidos.

E eu levantei de novo esta questão: «Mas o que é que se passa? A gente vê PIDE, mas este camarada…» - tinha um pseudónimo, só depois é que eu soube qual era o nome - «…não vê nada. Nunca acontece nada. Nós estamos preocupados». E percebi que ia haver alterações. Nunca cheguei a falar com o Veloso, nem na cadeia, nem depois do 25 de abril sobre isso, não havia tempo. Deitámo-nos. O dono da casa tinha oferecido uma daquelas garrafas de whiskey das boas, que tinham lá dentro. Eu não bebi, que estava a tomar os tais comprimidos.

E de manhã oiço bater à porta - eram 6:50h. Lembro-me de estar virado para a porta: «6:50h? Bem, isto deve ser o leiteiro, ou o padeiro». E continuei de olhos fechados. Nisto oiço a porta a ser arrombada, levanto a cabeça, encheu-se tudo de PIDEs e de PSPs, pistolas e metralhadoras: «Mãos ao alto! Mãos ao alto! Encostados à parede!» [Risos] E eu, com uma ingenuidade do caraças, viro-me para trás e dou um berro: «É a PIDE!». Eles já se estavam a vestir! O Veloso já tinha percebido que era a PIDE - eu é que não, continuei a dormir, estava tão bem. Então levantámo-nos. Nós usávamos todos uma caixa de fósforos para queimar o que fosse possível e necessário.

Levantámo-nos, não levantámos os braços. Eles aos berros: «Braços ao alto!». [Nós] nada. Os polícias, da PSP, com um olhar muito espantado a olhar para nós e oiço um a dizer: «Olha para isto, comunistas, ali a beberem o whiskey, rica vida». Diz o outro assim: «Vê lá tu, gente desta e a dormir no chão». Ia dando uma gargalhada! Se aquilo não fosse tão tenso. (...)

Começaram a fazer perguntas: «De quem é este casaco?». É claro que o Veloso não respondeu, o outro não respondeu, eu não respondi. Levam o Veloso, com o casaco - era um casaco enorme, ele era um calmeirão. E a seguir o chefe de brigada - esse tipo terrível, um assassino - o Zé Gonçalves, vira-se para o PIDE que estava ao lado dele, que era um calmeirão também: «Segurem o homem!». E eu olhei para o lado. E o outro, o tal que nunca via nada, estava a ir pela parede abaixo, a desmaiar, suava. E eu fiquei cheio de medo.

Levaram-no e eu fiquei sozinho. Com 50kg. O Zé Gonçalves veio com o outro ao lado e traz um porta-moedas que tinha a dentada da minha filha mais nova, que é a Elsa, que nasceu na clandestinidade. [Perguntam]: «De quem é isto?». [Eu]: «Não respondo». «Diz lá, de quem é isto?». Eu estava tão angustiado. Era da Elsa, tinha a dentada dela, tinha os dentinhos e tudo: «Não respondo, não me chateie!». Eu estou a falar assim, mas era assim que eu falava com eles - isso aí tem outras consequências. E a seguir diz assim: «Daqui a dias já está de novo a fazer seguros». Não liguei nenhuma. Ele voltou a perguntar-me. Eu disse: «Não respondo». E o gajo que estava ao lado manda-me duas estaladas. Eu fiquei encostado à parede. Ele voltou-me a perguntar, eu voltei a não responder. O tipo atira-me um pontapé no abdómen, só tive tempo de me encolher. E o gajo faz-me a terceira pergunta. E eu disse: «Não respondo». Levei um soco nos queixos, como nunca levei na minha vida, mas uma coisa... Parecia que só tinha esqueleto, parecia que só tinha ossos. Até fiz um comentário para mim próprio: «Se calhar eu era mesmo dotado para jogar boxe». [Risos]

Depois levaram-me e depois fomos cada um para seu lado. Levaram cada um. Como souberam eu fui com os PIDEs. Chegamos à António Maria Cardoso, levaram-me direitinho ao gabinete do diretor. Uma honra especial. Estava o diretor, estava o subinspetor superior Sacchetti - que era um nome famoso nessa altura, porque dirigia os interrogatórios, a tortura - e estava um médico. E o diretor [diz]: «Então senhor Manuel Pedro, não se quer identificar?». Eu disse: «Não». «Então o que é que isso lhe custa?...» - e diz-me qual é a orientação do partido, que eu conhecia muito bem - «…então o senhor sabe que o partido não o impede de se identificar, que isso é de lei e não o impede. Portanto o senhor não se identifica porque não quer. Como não se identifica arrisca-se a um julgamento especial só por isso».

Fui lá para cima para a sala de interrogatórios e aí começou o bailarico. Se quiserem ir para aí... A tortura do sono é das coisas mais selvagens, mais violentas. Para sintetizar, o meu camarada Gervásio levou tanta pancada quando foi preso, que esteve três meses quase sem andar. Subia as escadas do Aljube de joelhos. Ele estava de tal modo que o guarda quis ajudá-lo e ele recusou. Encontrei-me com ele na cadeia anos depois e disse: «Ó Gervásio, a ti deram-te porrada que te fartaste. Então e agora?». [Ele]: «Epá, ó Manuel, não me fales nisso. Mil vezes a porrada que a tortura do sono». E eu fiquei a olhar para ele: «Como?». [Ele]: «Mil vezes a porrada, Manuel, tortura é muito pior». Fiquei a olhar para ele e disse: «Eu sei o que é a tortura do sono. E a mim deram-me a tortura do sono e deram-me a porrada, tudo ao mesmo tempo». Ficou assim a olhar para mim [Risos].

Aquilo era um horror. Cheguei lá, sentei-me. Passado um bocado chega esse filho de puta, do tal inspetor superior [Sacchetti]. E o PIDE que estava a tomar conta de mim deu um berro: «Levante-se!». Não me levantei, fiquei exatamente como estava. «Levante-se!». E o tipo foi lá dento, trouxe uma carrada de PIDEs e deram-me uma sova tremenda. De cada vez que paravam eu deitava-me no chão - ou melhor, eu atirava-me para o chão e cada vez que eles paravam eu sentava-me. Isto começa com muita tareia, com coisas cómicas, tareia violenta, escolhida. Por exemplo as pancadas aqui, eu não sabia que causavam efeito na cabeça - causam. Julgava que causavam uma dor e não é. Causam um lume! Pontapés no abdómen, a gente quer-se proteger, eles metem-nos aqui [ver vídeo] as mãos e não nos protegemos. Levantaram-me em prancha - dois de um lado, dois do outro - iam com os testículos na mão e diziam: «Olha para isto». Levantavam-me ao ar, depois deixavam-me cair. Fizeram-me isto não sei quantas vezes. Eu ficava no chão e eles diziam: «Levante-se!». E eu: «Enquanto não me derem a cadeira não me levanto». Depois punham-me em cima da mesa: «Pronto, aqui fica quieto». Largavam-me e eu atirava-me para o chão. Isto foi durante sei lá quanto tempo. 

Depois resolveram fazer uma roda - não sei se foi na primeira noite, se foi na segunda noite - de espancamento. Uma roda, um tipo metido no meio e a baterem. [Risos] De repente pararam. E eu olhei para eles, para perceber o que é que tinha acontecido - estavam parados a olhar. Eu estava com as mangas do casaco furioso a querer arregaçá-las, furioso - casaco não era meu, tinha-me sido dado sei lá como, não passava daqui - eu queria arregaçá-la e ir-me ao murro a eles. Para o que é que me dá? Para me começar a rir. [Risos] Quando me comecei a rir eles atiraram-se outra vez a mim.

Na segunda manhã deixaram-me sentar. Na segunda manhã entra o tal sujeito [Sacchetti] e lá o PIDE: «Levante-se!». [Ele]: «Deixe estar, deixe estar. Disseram que o senhor tratou muito mal os meus homens». [Eu]: «Pois, eu tratei-os mal a eles e eu estou cheio de nódoas negras, não é?».

Com o tempo - eu tive 11 dias e 11 noites na tortura do sono - comecei a ter pelos no corpo todo, coisa de que nunca ninguém me falou, nem nunca ouvi falar. Os pelos foram mudando de cor, parecia um carneiro. Eu olhava, olhava. Ia ao espelho era a mesma coisa. Eles não me diziam nada, eu não dizia nada, não me queixava, mas aquilo fazia-me um bocado de confusão.

Passava as noites a levar pancada, golpes especiais aqui de lado. A gente a certa altura não se senta - essa é a brincadeira da cadeira. A certa altura deram-me uma cadeira, só que a gente não se aguenta na cadeira, com o sono cai. E a gente começa a andar de pé, que é uma forma de nos proteger. Então a PIDE estava lá numa certa posição, por onde eu passava [e batiam, quando passava]. De tal forma que a certa altura passou a fazer o gesto e eu saltava. E eu dizia para comigo: «Grande filho da puta que me fazes saltar». Fez-me saltar sempre.

Uma outra forma era: entrava um trangalhadanças que eu nunca o vi, mas que devia ser um gajo enorme, agarrava em mim por trás e atirava-me contra a parede, até que ficava completamente cego e a sentir que ia perder a consciência. Olhava e tinha um copo de água ao lado - portanto havia alguém que punha um copo de água. Eu bebia da água e continuavam a seguir. Aquilo repetia-se, era quase uma noite inteira naquilo.

Chegaram a tentar que eu andasse com um PIDE de cada lado - eu arrastava-me.

Na última noite comecei a ver as paredes a mexer, o chão a mexer - isso logo na primeira noite, o chão a mexer. Depois comecei a ter aqueles sintomas [alucinações]. Via uma janela, cá fora havia um varandim onde havia pessoas à espera de ir ao médico. Eu estava à espera de ir ao médico, mas nunca mais me chamavam e eu comecei a ficar furioso. Depois digo assim: «Eu vou é fazer uma coisa, eu vou saltar aqui esta janela, vou fugir, vou avisar o Manuel que estou preso» e, de repente, o PIDE diz qualquer coisa. Eu dou comigo com um pé na parede, que era o meu momento de saltar. E o tipo diz: «O que é que se passa? O que é que foi?». Eu disse um palavrão e continuei na minha. Foi uma noite horrorosa. A certa altura, andavam-me a arrastar, porque eu já não andava. À medida que começou a amanhecer digo assim: «Não faço mais. Estou aqui há 11 noites e 11 dia. Não, nem mais nenhuma».

Mudou o turno e eu disse ao gajo que veio substituir o que estava a tomar conta de mim: «Diga lá ao seu chefe que eu não faço mais noite nenhuma. Nenhuma». Aquilo foi um correrio, que eles sabiam que se eu disse que não fazia mais noite é porque não fazia. Fosse como fosse. Queriam saber o que é que eu ia fazer. Vinha o Sacchetti, vinha o chefe de brigada. Eu disse: «Olhem, acabem com isto, eu quero é uma cama para me deitar, que eu não faço mais noite nenhuma, não vale a pena». Estiveram nisto o dia todo. Entravam uns, entravam outros, perguntavam: «Então, ao menos diga o seu nome!», porque eu continuei a não me identificar. «É só dizer que se chama Manuel Pedro e a gente manda-o embora». Isto era tudo treta, se eu dissesse que me chamava Manuel Pedro naquela fase do campeonato, era um bailarico para eles!

À noite o Sacchetti vem: «Está bem, vou mandar buscar uma cama para você». Veio o chefe de brigada: «Se fosse comigo você dizia tudo e mais alguma coisa!». Eu só dizia: «Traga lá a cama, traga lá a cama». Sei que acordei de manhã, dormi profundamente. Devem ter sido eles que me deitaram. Conheci camaradas que ficaram sempre muito doentes e durante dias depois de poderem dormir, não conseguiam dormir. Eu dormi que foi uma beleza.

Apareceu o sujeito, que me quis apalpar o rabo, com um tabuleiro - eu estava numa cama dessas de campanha, com um sol lindo - e ele aparece-me com uma bandeja com um café com leite e uma carcaça com manteiga. Eu sentei-me, agarrei o tabuleiro, comecei [a comer]. O tipo estava de cócoras, que a cama era muito baixa, e eu disse: «Olhe, acabei. Agora traga-me outra dose». «Se fosse comigo! Eu tenho aqui o ...» - um cassetete que eles usavam, que é de aço por dentro e só por fora é que tem borracha - «… eu utilizava isto e você falava e tornava a falar». Eu dei um salto na cama e disse: «Epá!» e o gajo deu um salto para trás, ia caindo, ia-se espatifando. O tabuleiro aguentou-se - foi-se embora, nunca mais o vi na vida.

Depois mandaram-me para Caxias, eu estava à espera de ir sofrer outra dose, que era o costume - faziam um dia ou dois de intervalo e depois faziam outra série. Não, fui para Caxias. E entrei na fase normal de estar isolado. Depois fizeram a fineza de me meter numa sala, em Caxias, com cinco presos que tinham deixado o partido e tinham formado um outro partido, contra o nosso partido. Tinham falado todos na polícia, todos, não havia nenhum. Era o [Rui] d’Espiney mais não sei quantos.

E ali fiquei sozinho durante meses até ser julgado. Eles não hostilizavam, eu não os hostilizava, simplesmente não tinha com quem conversar, porque eu não conversava com eles, nem eles comigo. Fui julgado e fui diretamente para Peniche até ao 25 de abril - aos dois minutos do dia 26 [de abril]. Isso foi uma loucura. As famílias em Caxias, as famílias em Peniche".