Nome: Joaquim Pólvora Garcia Labaredas
Ano nascimento: 1944
Local do registo: Couço
Data do registo vídeo: 24-02-2022

Transcrição

"O meu nome é Joaquim Pólvora Garcia Labaredas, portanto com um nome destes tinha que sair daqui alguém com espírito subversivo. [Risos] Mas não, na verdade é uma coincidência, o meu pai chamava-se Joaquim Labaredas e a minha mãe era Francisca Pólvora. Juntaram-se os dois e saiu esta peça e mais uma irmã minha, que já faleceu.

Nascemos numa terra que é o Couço. Hoje é uma vila, mas era uma simples aldeia na altura em que eu nasci, em 1944. E que é caracterizada por ser um território bastante extenso - chegou a ser a 5ª maior freguesia do país em termos territoriais. Era a quinta maior freguesia. Agora quando houve a alteração da composição das freguesias, com a junção, passou a ser a nona freguesia em termos de território. No entanto em população é uma freguesia que teve altos e baixos.

Praticamente, [havia] cinco famílias que eram donas do Couço: eram os Aleixos do Gato, os Falcões da Amoreira, os Ribeiros do Sol Posto, os Durões de Lagoiços e os Garcias do Engal. Eram estas as cinco famílias que eram donas destes territórios à volta do Couço.

O Couço começa a ter desenvolvimento no princípio do século XX, aí nos anos 1890 e tais, 1900, com o começar a haver o desenvolvimento da produção de cereais. O arroz, porque é uma zona muito propicia para o cultivo do arroz, todo este vale do Sorraia; e os cereais, o trigo, o centeio, a cevada, e a cortiça. A cortiça começou nessa altura a ter valor. E isto é uma zona do melhor que há de cortiça. Tanto que o concelho de Coruche é considerado a capital da cortiça, porque é muito boa, é de muito boa qualidade todo o montado desta região.

Com isso os grandes proprietários das terras começaram a desenvolver alguma coisa, a produzir os cereais e a tirar a cortiça. Com isso foi necessário trazer gente para trabalhar a terra. Daí se cria um proletariado agrícola que vem trabalhar. Normalmente vêm de outros lados.

Ao mesmo tempo que aparecem os trabalhadores agrícolas, o proletariado agrícola, aparecem as profissões: os carpinteiros, os pedreiros, os barqueiros - que eram quem transportava cortiça daqui desta zona, ali no rio Sorraia. O rio era navegável até ao sul do Furadouro, que é a uns quilómetros daqui, antes de chegar a Mora. E os barqueiros vinham com os barcos até aqui, carregavam a cortiça e levavam-na depois rio abaixo até ao tejo, depois do tejo por aí abaixo até às fábricas no Seixal, no Barreiro, naquela zona. Daí que se criou várias famílias de barqueiros, inclusive os Casanova, que são uma família conhecida aqui do Couço e que também passaram pelas prisões.

Um deles é o Zé Casanova, que foi um dirigente bastante conhecido, já falecido, cujo pai era o barqueiro que fazia a travessia daqui do rio quando havia cheias. Daí que a ponte nova - porque dantes era uma ponte de madeira, agora é uma ponte boa - está batizada com o nome do pai do Zé Casanova: é a ponte Joaquim Casanova do Beco - que não era bem o nome dele, o nome dele era Joaquim Labaredas Casanova, era primo direito do meu pai. E o Zé Casanova também era meu parente afastado.

Isto para contar a história do Couço e de como é que o Couço se desenvolve e como é que se cria algum movimento que depois deu origem às lutas. Porque há lutas logo desde o princípio. No princípio do século XX há aqui um trabalhador agrícola de Coruche chamado Manuel Ferreira Quartel, que chegou a ser o fundador das associações de trabalhadores - nessa altura ainda não eram propriamente sindicatos, eram as associações de trabalhadores agrícolas - que desenvolveram um conjunto de greves, logo desde o início dos tempos da república, 1910, 1900 e qualquer coisa. Movimentos grevistas dos trabalhadores, a lutarem por melhores salários e por melhores horários já dessa altura. Este [Manuel] Ferreira que é trabalhador agrícola e nascido aqui em Coruche chegou a ser o secretário-geral da confederação dos trabalhadores dessa altura e, mais, tarde, chegou a ser secretário-geral do Partido Comunista, fundado nessa altura, que teve logo aqui influencia nestas lutas dos trabalhadores agrícolas desta zona.

O Couço continua a desenvolver-se e chega a ter uma população - eu tenho aqui um quadro que mostra a evolução da população do Couço, dos censos, desde 1864 que tinha 1.861 habitantes, chega a 1950 com 5.267 habitantes, em 1960, 5.551 e a partir daí começa a baixar e hoje, no censo de 2021, está reduzido a 2.271 habitantes. Isto mostra também o decréscimo deste proletariado agrícola, que teve o pico nos anos [19]50 / 60, foi a altura das grandes lutas e da reivindicação por melhores salários e pelas oito horas de trabalho, que em 1962 foram conquistadas aqui no Couço. A transformação da própria agricultura em mecanizada deu origem a um decréscimo desse proletariado agrícola e hoje está reduzido a uma população... isto não tem indústrias, não tem nada, não tem desenvolvimento, a freguesia está cada vez mais pobre.

É neste contexto que eu nasci e que eu cresci. Naturalmente fui influenciado por toda esta situação. Só para dizer que em 1950 um dos meus tios foi um dos primeiros presos políticos, aqui no Couço, que estiveram em Peniche. Um conjunto duns cinco ou seis. Pessoas aqui do Couço: era o meu tio João Labaredas, o Renato Braz, o Joaquim Castanhas, o João Camilo. Foram camaradas que já nos anos [19]49 / 50 estiveram presos e condenados e cumpriram penas em Peniche.

Eu fui influenciado, naturalmente, por isso. Com os meus 14 anos, já em Lisboa comecei a estudar, fui estudar para Lisboa. Depois comecei a trabalhar, portanto ia estudar à noite. Fui aprendiz de eletricista. Comecei por aprendiz de eletricista aos 14 anos. E nessa altura, em [19]58, quando foi das eleições do Delgado, logo aí comecei a ter a minha atividade. Já a participar na campanha eleitoral do Arlindo Vicente e depois do Delgado, pela mão do camarada Zé Casanova, que era mais velho que eu e que me ensinou muita coisa, que me dava livros a ler.

Mais tarde vim para o Couço trabalhar com o meu pai - não me portei bem a estudar [Risos] e o meu pai trouxe-me para vir trabalhar com ele como pedreiro. Aprendi pedreiro, trabalhei aqui no Couço.

Passei a ter atividade política logo desde muito novo, com 16 anos. Fazia reuniões com os trabalhadores agrícolas quando era nas vésperas das praças de jorna, para discutir o que é que se ia reivindicar, o que é que se ia pedir. Nessa situação ingressei no Partido Comunista, ainda muito jovem.

Em 1962 a PIDE, nas vésperas do 1º de maio, na noite de 26 para 27 de abril de 1962, a PIDE fez um assalto aqui ao Couço e levou nessa noite uma quantidade de gente. Está aqui uma notícia que veio no Avante nessa altura: «Assalto terrorista da PIDE ao Couço», em que relata que na noite de 27 a GNR com a PIDE, assaltaram e levaram uma quantidade de gente presa. Tem aqui os nomes das pessoas que foram presas nessa noite.

Foram ainda assaltadas as casas de Henrique Passareco, que foi ameaçado, e de António Gafaniz. De Joaquim Gafaniz, de João Aranha, de Jerónimo Bom, da Luísa Ramos, do Joaquim Caetano, de Joaquim Labaredas, António Galvão. Foram casas que ainda foram visitadas, mas que não foram encontrados em casa, pessoas que não foram encontradas em casa. Eu por acaso estava em casa, mas fugi pelos telhados. A minha mãe teve a entretê-los enquanto eles batiam à porta. Chegaram mesmo a arrombar a porta da minha casa, mas já eu tinha conseguido fugir pelos telhados.

Fugi, fui para a clandestinidade. Depois, fui convidado pelo Partido a frequentar um curso à União Soviética, estive lá seis meses. Regressei, vim para Beja. Mandaram-me para Beja. Mas estive na clandestinidade sempre a trabalhar como pedreiro na construção civil. Fui para Beja trabalhar na construção civil. Tinha encontros com os camaradas do Partido e tinha alguma atividade. Depois fui localizado em Beja, fui visto por rapaziada da tropa e quando havia essas situações de quando uma pessoa era localizada onde estava, a orientação era para sair de lá e mudar de sítio. Fui para Setúbal. Em Setúbal também continuei a trabalhar na construção civil. Tinha lá um quartito.

Em 1964 há um conjunto de prisões, uma quantidade grande de camaradas do Partido, à volta de maio de [19]64. Eu, quando soube que eles tinham sido presos, mudei de quarto, assim por precaução. Mudei de quarto, porque se não ainda tinha ido dentro nessa altura.

Acabei por ser preso em novembro de 1964, em Setúbal, sozinho. Fui levado para a António Maria Cardoso. Tenho aqui a ficha do meu registo na António Maria Cardoso. A minha ficha de entrada de lá no dia 23/11/64, em que fui fotografado. [Risos] Tiraram-me a fotografia nessa altura.

Estive no Aljube durante os primeiros tempos. Passei por aquele período, estive 11 dias e 11 noites. A tortura que me fizeram foi a tortura do sono. Baterem-me quase não me bateram. Houve uma vez que um PIDE tentou... A tortura do sono penso que já muita gente descreveu, mas eu posso descrever a minha versão que é isto: entrei para uma sala onde me puseram com um agente comigo dentro de uma sala, em que o agente a única coisa que estava ali a fazer era não me deixar dormir. Fazia barulho. Se eu me encostava à parede e fechava os olhos ele: «Não pode dormir!». Batia com os tacões na parede para fazer barulho. Na secretária batia com o lápis ou com a caneta para fazer barulho. E eu andava por ali, na sala.

Ao fim de quatro dias a pessoa está completamente maluca. O cérebro começa a ver coisas mirabolantes! Eu olhava para o chão e parecia-me que o chão era transparente e que na sala de baixo estava a minha mãe a exigir que queria visitar-me. E eu olhava para o chão e punha-me a fazer assim, a acenar para a minha mãe. E o PIDE: «O que é que você está a fazer?». [Eu]: «Não estou a fazer nada», a disfarçar. Eu hoje conto isto, mas naquela altura eu não me apercebia. Pensava que o que estava a ver era realidade, no entanto, hoje percebo que eram alucinações. Ao fim de quatro dias eu estava completamente maluco.  O Sacchetti, que era o inspetor, todos os dias entrava na sala, abria a porta e dizia: «Então, já contou a sua história?» - eu não respondia, não dizia nada - «Ai não? Não quer falar? Olhe, daqui só sai de duas maneiras: ou sai a contar a história, ou sai com os pés para a frente», como quem diz ou se conta a história ou se sai morto. Fechava a portinha e ia-se embora. Continuava ali um PIDE, rendido de quatro em quatro horas, apenas com a função de não me deixar dormir.

Eu dormi uma noite. Deram-me um divã, puseram um divã na sala. Dormi essa noite, mas no dia seguinte voltou outra vez, até ao 11º dia. Tive 11 dias e 11 noites sem dormir.

Não me armo em herói de dizer que nunca disse nada. Acabei por me identificar, por dizer quem era, que tinha estado na União Soviética, por confirmar coisas que eu sabia que eles já tinham conhecimento. Eles já tinham conhecimento do grupo que tinha estado na União Soviética, praticamente já tinham sido todos presos antes de mim. E pronto, foi assim. Depois não avancei mais nada, não dei informações sobre ninguém. Como eu me mantive nesta posição de não colaborar mais, levaram-me a julgamento e em 1965 fui condenado a dois anos e meio de prisão, com medidas de segurança.

Passei pelo Aljube, nos últimos tempos do Aljube. O Aljube naquela altura, em [19]64, estava muito exposto, porque foi na altura da luta dos estudantes e estiveram dezenas e dezenas de estudantes presos, aliás, estiveram presos comigo. Ali no Aljube era no centro da cidade, as famílias dos estudantes iam lá todos os dias fazer barulho à porta, na rua, ao pé da sede de Lisboa. Aquilo era um escândalo. Depois com a Amnistia Internacional e com a pressão internacional sobre o regime fascista, eles tinham que arranjar uma solução. Estavam a fazer obras em [Caxias], no Reduto Norte. Entretanto puseram os presos políticos no Reduto Sul e fizeram obras no Reduto Norte, criando celas individuais para substituir os curros do Aljube.

Eu fui dos últimos presos que estivemos no Aljube. Quando a gente foi transferida para Caxias o Aljube fechou. Estive ainda no Reduto Sul até ao julgamento. Depois do julgamento passei, pouco tempo, no Reduto Norte de Caxias.

No Reduto Sul de Caxias estive com aquela malta estudantada toda numa sala. Aquilo eram salas enormes, porque aquilo eram casamatas do tempo do forte militar. Naquela altura com a malta dos estudantes não havia disciplina que os guardas prisionais pudessem impor àquela rapaziada. Por outro lado, eram malta que tinham as famílias - não eram propriamente pobrezinhos, como aqui a malta do Couço - e todos os dias iam levar comida aos filhos. Eramos de certo modo bem tratados pelas famílias. A comida da prisão praticamente nem a comíamos.

Eu vou contar uma história que aconteceu comigo relacionada com isto. Na mesma altura estava aquela malta do caso de Beja, do assalto ao quartel de Beja. Essa malta saía um bocadinho fora do comum dos presos políticos tradicionais, eram um bocadinho mais anarcas do que a malta dos presos políticos tradicionais. E eles, o que é que inventaram? Inventaram uma [maneira] das famílias trazerem bebidas alcoólicas para dentro da cadeia. Então era com os pacotes de leite. Com uma seringa tiravam o leite do pacote de leite e depois metiam whisky ou outras bebidas. Até que um dia isto foi descoberto. [Risos] Um dia os guardas, pelo cheiro, tanto cheiraram aquela brincadeira proibiram as famílias de levarem leite para os presos. Isto gerou um movimento de descontentamento e de reivindicação. «Ai é? Estes gajos proíbem a família de trazer leite, a gente vai reclamar leite». Eu também fui reclamar leite. Quando chego lá ao médico da cadeia de Caxias, o médico manda-me para cima da balança, pesa e diz ele assim: «Epá, você quando foi preso pesava 67kg, agora pesa 84kg?! Olhe, você tenha cuidado, eu não lhe vou cortar na ração». Eu já não tive coragem de pedir leite [Risos] de pedir reforço de leite. [Risos] Porquê? Eu andava a trabalhar na construção civil, era um jovem, comia que nem um alarve para me aguentar no trabalho, que era um trabalho violento. Vou preso, vou para ao pé de malta que todos os dias trazem coisinhas da família. Eu comia que tanto que era um alarve, engordei assim nos meses que lá estive.

Depois fui condenado e fui transferido para Peniche, que era o normal sermos transferidos para Peniche para cumprir a pena. Tive até 1969 em Peniche. Saí já no primeiro período de medidas de segurança. Eu fui só condenado a dois anos e meio, mas havia as medidas de segurança, que era uma lei que o fascismo tinha criado em que desde que a PIDE considerasse e fizesse no relatório que uma pessoa continuava a ser perigosa, na opinião deles, levava as medidas de segurança: que era poder estar mais três anos na prisão, que eram prorrogáveis por mais três e mais três. Houve camaradas que estiveram várias dezenas de anos presos à custa das medidas de segurança, por serem considerados perigosos.

Eu estava já no primeiro período de medidas de segurança e fui amnistiado já na primavera marcelista. O Marcelo Caetano, fruto da pressão internacional, quando foi da visita de um papa cá a Portugal foi prometido que iam aliviar as medidas. E na altura foram abolidas as medidas de segurança. Quem estava em medidas de segurança saiu em liberdade - liberdade condicional. E eu saí em outubro de 1969. Saí em liberdade condicional. Tinha de me apresentar todos os meses na António Maria Cardoso, mas vim para a liberdade.

A partir daí ainda estive até ao 25 de abril. Primeiro vim para o Couço trabalhar com o meu pai na construção civil, mas depois em 1970 fui para Lisboa e fui-me aventurar como empregado de escritório.

Consegui arranjar emprego na empresa que estava nessa altura no princípio, que era o Pão de Açúcar. Entrei primeiro pela Manpower como trabalho temporário, mas depois acharam que eu era jeitoso, portanto convidaram-me para ficar como efetivo na empresa, porque a empresa estava em crescimento. Isto foi em 1970. O Pão de Açúcar foi inaugurado no dia 1 de maio de 1970. A primeira loja, que agora é do Pingo Doce, na Avenida dos Estados Unidos da América. Depois foi a loja número 2, que era a antiga cantina da CUF. Porque o Pão de Açúcar do Brasil fez aliança com a CUF. A CUF tinha cantina em Alcântara e foi transformada na loja número 2 do Pão de Açúcar. E foi para aí que eu fui trabalhar. Primeiro como temporário, depois como [efetivo]. Entretanto fui ascendendo dentro da empresa, desde escriturário básico até que consegui chegar a chefe de serviços na empresa.

Havia um administrador delegado que era o doutor João Flores, que era um acionista minoritário, mas que era o fiel da balança entre os dois - tinha 5% das ações. Mas era ele na prática que era o principal executivo dentro da empresa. Quando eu fui convidado a ir para lá, fui ao serviço de pessoal inscrever-me e perguntaram-me qual era a minha situação militar. Eu disse: «Eu não tenho situação militar. Eu não fui à tropa, nem sequer fui à inspeção, porque na altura a PIDE foi para me prender e eu fugi. Depois fui preso, estou condenado». [Eles]: «Ah, então tem de trazer o registo criminal». Tive de entregar no serviço pessoal. Sei mais tarde, já depois do 25 de abril, que o chefe da contabilidade (...) era camarada. E o doutor Flores perguntou-lhe [diálogo]: «Epá, está aqui a propor um gajo, mas é um gajo que tem um cadastro…» - segundo ele me disse, que me contou depois - «… tem cadastro de preso político». «Ó senhor doutor, o que é que você quer? A gente ou aproveita pessoas com qualidade, ou por causa dessa situação rejeitamos pessoas que são de qualidade». «Bem, sabe lá o que é que faz». «Eu sei». «Então avance». E foi assim que eu fui admitido como efetivo no Pão de Açúcar. Eu tenho de fazer justiça ao Doutor Flores, que apesar de ser um capitalista e de uma grande empresa, não exerceu aquilo que muitos faziam, que era: «O quê? Esse gajo? Nem pó! Não o queremos cá». E aceitou-me.

Não é para me gabar, mas era uma pessoa competente e pela minha competência eu fui crescendo dentro da empresa. Toda a gente sabendo o que eu era. Nunca neguei aquilo que era e que tinha estado preso. Eu fui chefe de serviço num serviço de conferência faturas que tinha 50 trabalhadores sob o meu cargo e no entanto eles confiavam em mim. Eu era chefe deles, mas eles confiavam em mim - tanto que me elegeram como delegado sindical.

Depois do 25 de abril fizemos a ocupação da empresa. Também é bom contar a história da ocupação do Pão de Açúcar, que muitas vezes é contada como dizendo que os trabalhadores ocuparam aquilo e destruíram - é mentira. A intervenção do Estado no Pão de Açúcar foi feita porque, em primeiro lugar, todos os diretores de serviços da empresa - não era a administração, a administração era composta por cinco pessoas, mas depois abaixo tinha uma dezena ou mais de diretores de serviços - diretor dos serviços financeiros, diretor de operações, das compras, da publicidade, etc… fizeram um documento dirigido ao governo provisório do Vasco Gonçalves pedindo a intervenção do Estado, porque os administradores - a CUF e o Pão de Açúcar do Brasil - tinham decidido cancelar a expansão da empresa que estava programada. Eles decidiram que perante a situação que houve, com o 11 de março em que houve a nacionalização da banca e por tabela a CUF foi nacionalizada, eles assustaram-se e disseram que cancelaram todo o programa de crescimento da empresa que estava em curso. Os diretores aperceberam-se disso, que aquilo ia afogar a empresa, que se parasse a expansão iam parar a empresa e fizeram eles um relatório a pedir intervenção do Estado. A comissão de trabalhadores, na altura, teve conhecimento disso e numa noite fez um relatório a pedir a intervenção do Estado pelos mesmos motivos, ao gabinete do Vasco Gonçalves. E foi decretada a intervenção do Estado e nomeada uma comissão administrativa, nomeada pelos trabalhadores. Em que tínhamos pessoas da própria empresa e um economista. Só veio um economista de fora, o resto eram tudo quadros da empresa que foram para comissão administrativa. Durou um ano ou dois, depois com as voltas que isto deu no tempo já do Magalhães Mota a comissão administrativa foi destituída e foi restituído, como se fez aí em tantas outras empresas.

O resto da minha história foi sindicalista. Fui para o sindicato. Tive 40 anos no sindicato até agora me reformar, embora continuando sempre a ser trabalhador. Reformei-me e agora cá estou reformado, mas a continuar sempre do mesmo lado da barricada, sempre com os mesmos pensamentos e a mesma determinação que tinha quando comecei em jovem.

E por isso quando há bocado cantámos ali a canção, porque para mim continua a ser muito válida a canção que aprendi na cadeia, o hino de Caxias como um símbolo da luta que a gente estamos dispostos a continuar.

Em Caxias aprendi esta canção, que é um lindo hino de combate e de esperança no futuro:

 

[Canta o Hino de Caxias]

 

«Longos corredores nas trevas percorremos,

Sob o olhar feroz dos carcereiros.

Mas nem a luz dos olhos que perdemos

Nos faz perder a fé nos companheiros.

Nos faz perder a fé nos companheiros.

 

Vá, camarada, mais um passo!

Já uma estrela se levanta!

Cada fio de vontade são dois braços

E cada braço uma alavanca.

Cada fio de vontade são dois braços

E cada braço uma alavanca.

 

Podem cortar meu corpo às chicotadas.

Podem calar o meu grito enrouquecido.

Que para viver de alma ajoelhada

Vale bem mais morrer de rosto erguido.

Vale bem mais morrer de rosto erguido.

 

Vá, camarada, mais um passo!

Já uma estrela se levanta!

Cada fio de vontade são dois braços

E cada braço uma alavanca.

Cada fio de vontade são dois braços

E cada braço uma alavanca.

 

Ouço ruírem-se os muros

quebrarem-se as grades de ferro da nossa prisão.

Treme, carrasco, que a morte te espera

na hora do fogo da libertação.

 

Ouço ruírem-se os muros

quebrarem-se as grades de ferro da nossa prisão.

Treme, carrasco, que a morte te espera

na hora do fogo da libertação!» [Risos]"