Nome: José Tavares Marcelino
Ano nascimento: 1939
Local do registo: Algés
Data do registo vídeo: 06-10-2021

Transcrição

"Eu nasci em 29 de março de 1939, mas no meu registo está como tenha nascido a 29 de abril. Isto porquê? Eu sou da província, sou duma terra ao norte de Lisboa. É a última povoação do distrito de Lisboa. Arrifana, freguesia de Manique do Intendente. Portanto era família, sou de uma família de trabalhadores rurais. E neste tempo, nesta ocasião é quando há trabalho. Bom do meu pai para me ir registar tinha de perder o dia de trabalho, o que era importante para uma família na ocasião de 6 filhos, na ocasião. Então aproveitaram que a minha tia, madrinha, também estava grávida e estava à espera de ter um bebé, aproveitavam e registavam os dois no mesmo dia. De maneira que só fui registado em maio. E aí teriam que pagar multa. E então mentiram. Disseram que eu tinha nascido a 29 de abril e já estava dentro daquele tempo normal para o registo.

Eu sou filho de pequenos agricultores, uma família que vivia do trabalho rural. Eramos 8 irmãos. E o meu pai morreu quando nasceu o meu último irmão, que tem menos 4 anos que eu. Portanto, eu tinha 4 anos na ocasião. Foi uma vida muito difícil, que a minha mãe teve de nos criar a nós. O meu irmão mais velho tinha 18 anos, eram 4 irmãs a seguir, depois vinha eu. De maneira que tive de encarar, comecei a trabalhar desde que nasci, praticamente. Embora oficialmente só o começasse a fazer depois da escolaridade. Mas sempre me lembro de ter trabalhado no campo, a guardar a criação: os patos, os porcos. A ajudar a minha mãe a tratar de coisas, portanto, foi sempre... trabalhei sempre muito. Vi que a vida era muito difícil. Eu não sei, mas eu tenho impressão que comecei a ganhar consciência que isto era preciso modificar logo que nasci.

Mas especialmente há uma data, que é pelo Natal - eu não sei se teria uns 5 anos ou 6 - os nossos brinquedos eram a pinha do pinheiro, que lhe atava um cordel e passeávamos com essas coisas. Era o arco das vasilhas do vinho que estava estragado, nós fazíamos daquilo um arco, etc. Pelo Natal foram lá umas pessoas de Lisboa, em que tinham um filho que era mais ou menos da mesma idade que eu. E ele tinha um triciclo. Tinha um triciclo e aquilo ficou... Os miúdos estavam ali a ver, provavelmente nunca tínhamos visto um triciclo. E perguntei-lhe, lembro-me de lhe ter perguntado: «Epá, quem te deu o triciclo?». [Responderam]: «Foi o menino Jesus». E eu fiquei assim... «então a mim não me deu nada, que eu tanto preciso e a ti deu-te?» Eu tenho a impressão que a partir daí comecei a não acreditar naquelas coisas. Portanto, eu sou ateu. Eu tenho impressão que desde esse momento que me disseram que era Jesus, o menino Jesus que lhe tinha dado o triciclo e eu não tinha nada, penso que a partir desse momento comecei a ganhar consciência.

Depois lembro-me de determinadas situações, nomeadamente, 'tá a ver as eleições do Norton de Matos? Que foram em 40 e tal, portanto eu tinha menos de 10 anos. E o meu irmão mais velho juntava-se lá com outros rapazes da sua idade e faziam a propaganda do Norton de Matos, portanto eu lembro-me deles (...) estarem a fazer os cartazes lá na minha casa e depois eu no dia seguinte vi-os colados nas paredes. Eu vi que tinha havido um grande segredo para ninguém saber o que era. E as pessoas estavam na praça, os homens que iam para a praça para arranjar trabalho - «Epá! Eh!» - estavam admirados. Quem é que seria? E eu 'tava ali pequenino, descalço, e sabia quem tinha sido e estava ali todo orgulhoso de saber e eles estarem ignorantes, não saberem. Penso que a partir destas coisas, isto foi muito importante.

Depois, mais a sério, eu vim para Lisboa depois da instrução primária. Vim trabalhar para Lisboa, para uma oficina de bicicletas a motor e depois fui para a Material de Guerra. Entretanto eu tinha feito a quarta classe - não pude continuar os estudos por dificuldades económicas e porque não existiam escolas na proximidade - e então vim a ter conhecimento que se podia estudar à noite, porque eu tinha que trabalhar. Então para trabalhar de noite tinha de ter um horário. Esse horário então consegui que me arranjassem - eu fui trabalhar para a Material de Guerra. Já tinha o horário da oito às cinco, se não estou em erro, no Poço de Bispo, e a escola era em Alcântara e começava às sete da noite, portanto dava tempo. Eu saia do trabalho e ia prá escola. Comecei a estudar à noite.

É uma vida difícil e depois exploração. Eu fui para lá a ganhar 7 escudos por dia - se fizermos em relação ao que é hoje era uma miséria mesmo. Lembro-me que eu depois eu cheguei a ajudante de primeira classe e ganhava 44 escudos, portanto vê-se a diferença entre um aprendiz e um ajudante. Um oficial ganhava 55, era já um ordenadão. Portanto visto bem, [19]55 a 59 foi quando eu estive na Material de Guerra. E daí comecei a falar com outros operários, comecei a ganhar uma maior consciência. 

E então a minha primeira ação foi: o Salazar um dia foi visitar a Material de Guerra. E foi visitar a minha oficina. Aquilo eram oficinas grandes, eu era da oficina de artilharia, onde se reparavam os tanques, as peças de artilharia, etc. Uma coisa muito grande, os tanques andavam lá dentro, não é? Um hangar enorme. E então os meus chefes andaram a pedir para nós darmos uma subscrição para comprarmos uma prenda para dar ao Salazar. Eu já devia ter qualquer coisa cá no sangue, que fui ter com os meus colegas: «Epá, ninguém dá nada, pá. Então vamos dar para quê? Então nós somos explorados!». Modo próprio, ninguém me disse para eu o fazer. Mas eu fiz isto e ninguém deu um tostão naquela secção que eramos mais de 50 homens e rapazes - eu tinha na ocasião, fui para lá com 16, portanto deveria ter se calhar 17, 18 anos no máximo. Aquilo foi... Eu fui um herói - à socapa, escondido! Os chefes então ficaram alarmados: «Epá, o que é que tu fizeste?», não sei que mais...! Mas isto passou-se. Passou-se (...).

Então houve pessoas já com mais consciência que começaram a falar comigo e a levar-me para aqui e para acolá. Vieram as eleições do Humberto Delgado. Eu, como disse, estudava em Alcântara, e então encontro... o Humberto Delgado chega a Santa Apolónia - aquilo era um mar de gente - e eu meti-me no mar de gente. Epá, eu fiquei maravilhado: «Epá, o que é isto, pá? O que é isto?». Mas estava isolado, não estava organizado em lado nenhum. Então fui para a escola, ouvia as conversas dos outros e tal, comecei a apanhar e comecei então, comecei a contactar então.

Passado pouco tempo fui convidado para ser militante do Partido Comunista, o que aceitei, mas não cheguei a entrar porque houve uma descoordenação - não sei já qual é que foi - mas eu tive um encontro marcado na praça do Comércio no dia 1 de novembro de 1958 e fui à praça do Comércio e não apareceu a pessoa que devia contactar-me e ligar-me ao partido. Mas continuei sempre tentar, alguns que eu desconfiava que estavam ligados ao partido, pedia-lhes os Avantes, ia recebendo os Avantes.

Então, até que aparece o 5 de outubro. É a sério a minha primeira, penso eu, a minha primeira grande ação de rua. Em que fui convidado por essas pessoas que já tinham confiança comigo: «Epá, dia 5 de outubro, vamos ao Alto de São João. Em homenagem aos fundadores da república». E eu fui ao Alto de São João. Estava lá o Humberto Delgado. Precisamente o Humberto Delgado estava lá a discursar. Eu juntei-me àquela gente. Eu era miúdo.

Há uma fotografia que eu tenho, que eu sou muito pequenino. Tinha já 19 anos ou 18. Sim 19, tinha 19 - eu nasci em [19]39, tinha 19 anos. Mas era muito pequenino. Fui para o Alto de São João. Aquela gente toda, os homens já de idade, eu era um jovem. Estava já baralhado com aquilo tudo, muita gente - muita polícia! Então era: de um lado estavam os homens a fazer a homenagem aos homens da república e do outro lado era a polícia com as viseiras. Eu nunca tinha visto. (...) Pensei cá para mim: eu tenho que estar de um lado. [Os polícias] estão deste lado, se já o pensava neste dia então fiquei a ficar do outro lado.

Há os discursos. E há um momento em que há um discurso que o Humberto Delgado discursa. Nós levantámo-lo no ar e vem a polícia e começa a carregar e a bater em tudo o que era gente. Cada qual fugiu para seu lado. Eu consegui fugir. Ainda levei lá uma bordoada dentro do cemitério, que eu 'tava mesmo ao pé do Humberto Delgado, que eu tenho uma fotografia que eu estou mesmo ali ao pé dele quando ele está já nos ombros de alguém. Consegui fugir e... Houve muita pancada. Houve imagens que eu ainda as tenho cá retidas, de uma pessoa que fugiu lá para uma terras que havia lá por trás do Alto São João que vai para uma rua que vai ter ao pé de Xabregas ou o que é, aquilo é uma Avenida nova que agora não me lembro como é que aquilo se chama. Aquilo eram baldios. E vejo um rapaz, que eu por acaso já conhecia. Já o via na rua, achava-o já diferente. Fugiu da polícia, levou lá muita pancada e ele depois conseguiu fugir, não sei se ele foi preso, se o que é que lhe aconteceu. Sei que nunca mais vi essa pessoa. Nos sítios onde eu o via, perto da escola, ali em Santos, Alcântara. Era uma pessoa que... nunca conversei com ele, mas sentia nele. A forma como ele andava e tal, que havia ali qualquer coisa. E, de facto, naquele dia fiquei a ter a certeza que havia. Não sei o que é que lhe aconteceu.

Então nós reagrupamo-nos na Paiva Couceiro. Eu consegui ir até à Paiva Couceiro e começou-se a juntar lá malta. E alguém que dá a voz de ordem: «Vamos todos para a praça do Município içar a bandeira portuguesa na Câmara». Epá, nós ficámos todos... eu nomeadamente! Eramos que? Uns vinte, trinta, quarenta. Eramos bastantes pessoas, jovens! E decidimos ir para Morais Soares. Na Morais Soares aparece a polícia a carregar. Nós fugimos para as ruas laterais. A polícia, só podiam ir os que iam a pé. Os carros não podiam ir para queles lados. Depois chegámos, andámos ali para aquelas ruas, juntamo-nos outra vez na praça do Chile. Já eramos mais. Já eramos muito mais. A polícia veio outra vez a carregar. Nós fugimos outra vez para as ruas de Arroios, aquelas ruas laterais. A polícia vai atrás de nós. Nós fomos nisto ao gato e ao rato com a polícia até ao Rossio.

Eu hoje sinto: isto é que foi o verdadeiro 5 de outubro. Chegámos ao Rossio. E então uma praça, um dia de feriado - neste tempo não sei se seria feriado, mas se calhar até era porque eu não trabalhei, ou era Domingo ou coisa assim. Não me lembro já. Até podemos ver no calendário se seria Domingo. Eu sei que já havia muita gente na rua. E se foi juntando muita gente até ao Rossio. O Rossio estava cheio. Começou tudo a gritar. Então a carga aí foi... eu aí levo umas bordoadas. Mas há uma imagem que eu ainda hoje se visse o homem o conhecia. Um homem baixo, da minha estatura mais ou menos, que lança a bandeira e começa a gritar: «Viva à Liberdade». Epá, o homem levou tanta pancada.

Depois cada um fugiu pró seu lado. Conseguimos reagrupar-nos na Rua do Ouro. Lembro-me de ter visto, como se fosse hoje, um fulano já com uma certa idade pôr uma bandeira - a tirar-nos a bandeira para nós - nós a (...). Epá voltemos todos para trás, que a gente não consegue lá chegar, que a polícia cercou aquilo tudo.

Portanto acho que foi a minha primeira ação e este o 5 de outubro que eu vivi em 1958. Porque eu o ano passado, ou há dois anos, vi uma reportagem na televisão com estas primeiras imagens todas que eu estou aqui a descrever, mas depois aparece o Humberto Delgado já entre a praça Couceiro e o cemitério do Alto de São João a refilar com o polícia, que eles queriam uma coisa e ele queria outra. Ele 'tava...! Eu já não estou aí - eu nesse momento - eu já não assisti a isso, vi na televisão. Eu já estou no meu 5 de outubro. Sei que depois eles chegaram ao Largo António José de Almeida e puseram lá uma coroa de flores, não sei que mais. E eu dava-me uma vontade de telefonar para a televisão: «Esse não é o 5 de outubro de 58. O 5 de outubro de 58 é aquele que eu vivi». Portanto, penso que esta foi a minha primeira ação.

A partir, portanto, tive mais uma série de coisas. Depois, isto eu fui para casa. Foi no outro dia comentámos tudo isto. Os meus colegas começaram a ganhar mais confiança em mim, porque depois vieram-me dizer: «Epá a tua fotografia está no jornal! Tens a tua fotografia no jornal», não sei que mais. Eu nunca vi essa fotografia, depois mais tarde eu consegui pesquisar num livro de coiso e vou apanhar essa outra fotografia da ocasião. Portanto, comecei a ter mais contactos, não é? É a partir daí que depois na Material de Guerra, pessoas mais politizadas me começaram a organizar mais e que tentaram levar pró Partido Comunista, que não cheguei a ir, por esta coisa que fiquei com muita pena. Vim mais tarde.

Depois eu regressei à Material de Guerra. Regressei à Material de Guerra. Entretanto já estava envolvido em tudo isto. Depois houve uma concentração que fizemos à porta da casa do Humberto Delgado na Rua Filipa de Vilhena, salvo erro, ali ao pé, entre o Marquês de Pombal e a praça de Espanha, acho que é. Ali ao pé do Hospital de Santa Maria, mais ou menos aí nessa zona. Fomos lá para prestarmos homenagem. Eu fui mobilizado por pessoas da Material de Guerra, é evidente, não é? Chegamos lá e ele já não estava lá. Então já ele tinha pedido asilo na embaixada do Brasil. Foi quando ele se despediu assim, foi no dia em que estive lá para lhe prestar homenagem. Depois escrevemos uns papeis, não sei quê, então fomos todos a pé até ao Rossio a denunciar que o Humberto Delgado tinha sido preso, junto das pessoas: «Humberto Delgado foi preso». Portanto, desde ali da Filipa Vilhena, que é ali ao pé do Marquês de Pombal, até ao Rossio aquilo foi... a dizer a toda a gente, todos felizes. Portanto foi uma das coisas.

Entretanto eu, passado pouco tempo, fui para Força Aérea. Fui para Força Aérea, fui para inspeção militar. Já estava mais ou menos politizado, já sabia, já tinha informação de que a guerra não ia acabar. Eu iria à guerra. Então para evitar a guerra fui prá Força Aérea. Assim foi. O meu ano, que eu seria militar de 1960, foram os primeiros contingentes que foram para guerra de Angola. Eu já não fui. Então alistei-me na Força Aérea e fui Cabo Especialista na Força Aérea durante cerca de 4 anos.

Aí continuei a ser o que nós chamamos o grande refilão. Que estava na Serra de Montejunto, assinava a República, o que já não era vulgar, e então para um militar... aquilo dava uma certa coisa lá nos militares. De tal ordem que depois sou convidado para fazer parte da organização do Partido Comunista na Força Aérea, o que aceitei. Portanto, tive lá alguns contactos. Alguns trabalhos. E depois quando estava lá na ocasião em que já estava a ser muito conhecido como tal. Mas na Força Aérea havia uma certa liberdade, não era o Exército. No Exército havia... eram situacionistas. Os oficiais, etc., a maioria eram situacionistas, embora tenham sido eles que fizeram o 25 de Abril, não é? Mas já são outros, já não são... São estes do meu tempo, mas já mais tarde, não é?

Na Força Aérea não. Era gente mais liberal, não no sentido económico, mas no sentido político. E eu era assim um bocado acaralhado ... Mas depois fiquei, fiquei muito estranho quando houve o assalto a Santa Maria entrámos de prevenção. Nós da Força Aérea não tínhamos armas. Quem tinha era o Exército, que 'tava lá a guardar as instalações. Nós eramos cabos especialistas, eu era de radar - o que hoje são técnicos de radar, na altura chamava-se mecânico de radar. Recebem todos armas menos eu. A mim não me dão arma. E eu fiquei todo contente! Epá! Então eles estavam lá (entrincheirados?) na Serra de Montejunto e ouvem: «Olhem, olhem eu mando aqui eu! Eu sou o patrão!». Vim a saber depois do 25 de Abril que foi por isto, eu não [tive] arma porque já não confiavam em mim, não me davam já uma arma para as mãos. [Risos] De maneira que foi assim.

Lá na Força Aérea tirei o curso de Radar, que era o curso mais evoluído de eletrónica nas Forças Armadas. Que eram os Radares (...) Havia três cursos: era eletricista, rádio e radar. Radar era o mais evoluído. Aqui posso dizer que mais ou menos fui um homem que teve sempre uma estrelinha de sorte. Eu fui para Radar por influências. Porque quando estava na recruta, eu nunca me esqueço de uma ocasião em que estávamos numa palestra e o oficial está a contar umas coisas. Eu não sei o que é que disse, eu evitava expor-me, mas era impossível. O tipo notou logo (...) e esse homem quem era? Era um que mais tarde veio ser um homem do MPLA, que foi até Ministro da Defesa de Angola, que foi o Iko Carreira. 

Ele desertou mais tarde, ele estava em Montejunto e depois desertou. Eu era amigo dele. Nunca dissemos quem eramos ou deixávamos de ser, porque mesmo que quiséssemos não o fazíamos, né? E muito menos que estava a preparar-se para desertar, embora eu estivesse de serviço no dia em que ele estava. Ele gostava muito de ir ao pé de mim e falar comigo. Ele era chefe dos operadores de radar, que eram aqueles que tinham os radares que faziam a pesquisa do espaço aéreo. Ele era chefe desse sector e eu era dos mecânicos de radar, que eram os técnicos que reparavam os equipamentos. E ele gostava de sair de ao pé deles e vinha para ao pé de nós. E dizia: «Epá, aqueles gajos não prestam». Eu hoje já vi porque é que ele gostava de ir pró pé deles. Ele já desconfiava quem eu era, ou já sabia mesmo não sei. Ele estava ligado também politicamente, depois desertou.

E, portanto, eu aí tirei o curso de eletrónica, mas saí da Força Aérea. Estive quase 4 anos na Força Aérea. Eu já andava a estudar na Marquês de Pombal, a tirar o curso de Serralheiro, cheguei ao 5º ano. E depois, como tinha esta parte eletrónica, então fui prá - fui mesmo para mesma escola que era em Alcântara, mas já não se chamava Marquês de Pombal, já se chamava Fonseca Benevides, porque, entretanto, a Marquês de Pombal passou para onde eram as antigas Salésias, que é onde estão hoje, que é para ali no Restelo, para essa zona. Então fui tirar o curso de eletrónica e lá andei, até acabar o curso.

Depois fui trabalhar. Saí da Força Aérea, fui trabalhar para a Siderurgia Nacional e é nessa ocasião que me comecei a ligar a pessoas que estava mais ou menos do contra, como se chamava no tempo. E informaram-me que havia uma concentração de estudantes na cidade universitária (...) Isto em (19)65 era um movimento estudantil e eu fui para cidade universitária, juntei-me aos estudantes como colaboração. Carrega a polícia, como habitualmente. Eu consegui fugir. Juntei-me a um grupo de estudantes e fomos em manifestação até, isto foi à tarde, e eu sou preso cerca da meia-noite. Portanto andámos nas ruas de Lisboa, um grupo de estudantes, umas vezes maiores outras menor, passámos ali da cidade universitária até à praça do Rossio. Andámos lá imenso tempo a fazer de gato e rato outra vez com a polícia, como no tal 5 de outubro. Eu aí já era mais experiente e tal.

Fomos até ao Rossio, depois houve alguém que lançou a palavra de ordem que era para irmos pró cinema. Então fomos ver um filme ao Éden. E eu nunca tinha assistido a bater palmas no cinema. Hoje é vulgar, naquele tempo não. Então estavam a dar um filme de desenhos animais e havia sempre o bom e o mau, e a malta batia toda palmas ao bom e não sei que mais. Pronto, lá estivemos. Quando saí, estava a manifestação, estava a polícia à porta. Pegaram-me e levaram-me. Portanto, foi nessas circunstâncias. Ainda me lembro que um dos dirigentes que estava na - nunca mais me esqueci dessa cara e depois começou a ser uma figura política foi um senhor que chegou a ser Ministro dos Negócios Estrangeiros, que era o Medeiros Ferreira. Esse era um dos dirigentes dos estudantis desse 16 de março de 65 que eu nunca vejo referido quando se fala no movimento estudantil. Fala-se nesta, naquela, na outra data. Eu até já tenho posto no Facebook, em páginas que tratam nestes assuntos: «Então lembraste do 16...?». «Eu sou preso nesse!».

Somos presos 20! Eu tenho a lista, pelo menos 20, que eu tenho a lista deles, que eu tenho ido à Torre do Tombo. Fomos presos 20 jovens. Eles prenderam-me e tal, prenderam os outros. Tive no Governo Civil, passámos lá uma noite, uns em cima dos outros que eramos... aquilo era um curro pequenino. E nós tivemos de lá passar a noite toda. Na noite seguinte fomos para PIDE. Para António Maria Cardoso. No dia seguinte depois fomos para Caxias, tivemos lá um dia ou dois, entretanto mandaram-me embora. Mas mandaram-me embora, identificaram-me. [Eu]: «Sim senhora, eu estive lá. Eu fui ao cinema, fui ao Éden e vinha a sair, não tenho culpa nenhuma, não sei o que é que se passou, não sei». Fiz-me sempre anjinho. «Não sei de nada, não sei de nada». E pronto. E mandaram-me para casa. Depois voltaram-me lá a chamar porque as coisas não estavam a corresponder, porque eles pensavam que eu tinha já ido a julgamento uma vez. Eu disse que nunca tinha ido à polícia, nunca tinha ido a lado nenhum, esclareci lá as coisas. Pensei eu que me largaram. Mas não. Continuaram atrás de mim.

Porque eu sei, hoje, que eu fui trabalhar para Porto Santo e sei que há pedidos de informação da PIDE à PIDE de lá para saberem o que é que eu andava lá a fazer, qual era o meu comportamento. Portanto, tenho essa troca de informações e que o PIDE de lá, com quem eu falava: «Não, ele porta-se bem. Só acho estranho uma coisa: ele anda sempre com o Padre e nunca o vimos na Igreja. Mas de resto não vimos nada». Quem era esse Padre? Vocês conhecem - era o Padre Martins. Lembram-se do Padre Martins que ganhou uma câmara? Portanto esse foi meu colega e eu hoje sinto uma certa... se calhar fui eu que lhe pus o bichinho do contra. Porque ele já era um homem, com certeza já tinha consciência, ele já não usava esta coisa, andava sempre a assumi-lo. E eu andava sempre com ele. E depois eu falava-lhe nestas coisas e pronto.

Claro, não lhe falava no Partido Comunista, não é? Mas emprestava-lhe livros anticlericais. Epá, ele ficava todo ofendido. Mas tínhamos muita confiança, somos quase da mesma idade. Entramos naqueles pormenores dos namoros, não sei quê: «Epá, não é possível. Tão, mas tu não me digas que...». Ele ria-se. Nós ficámos muito amigos.

Entretanto depois eu vim lá de Porto Santo, vim para Lisboa. E mais um ato revolucionário. Eles não me quiseram dar férias. Eles não dão férias. A TAP abriu um concurso, eu inscrevi-me na TAP e mudei de um sítio para outro - 100 metros de diferença. E então no outro dia fui lá gozar com eles! «Então tás aqui a estas horas?!». «Eu já não tenho nada a ver com isto, eu agora trabalho ali!». [Risos] De maneira que foi assim. Era a minha vida.

Na TAP conheci... tinha lá um grupo de amigos que uma das nossas primeiras ações que tivemos foi: a TAP numa ocasião aumentou o café de 8 para 10 tostões - já estão a ver! - e nós fizemos um grande alarido e recusámos, deixámos de ir ao refeitório. E então comprámos uma cafeteira, dessas que é de fazer o café, comprávamos café, púnhamos lá. Depois o grupo começou-se a alargar, enorme. E formámos ali uma célula do Partido Comunista depois. (...) Chegamos a ser uns 10 que íamos lá todos os dias tomar o café. Depois aquilo era muito... era uma amizade, uma fraternidade, uma coisa enorme! Nós comprávamos o café e a cafeteira e depois no fim de bebermos jogávamos às moedas a ver quem pagava. Os dois últimos: um pagava o café, o outro lavava a loiça. Depois gozávamos com aquilo. Depois tínhamos uma escala: «Epá fulano já pagou o café tantas vezes! O fulano não sei quantos! Tu é que pagaste!». Depois no fim de termos um certo dinheiro íamos todos comer. Íamos a um restaurante e íamos gastar dinheiro, depois gozávamos com isto. Portanto era uma amizade enorme.

Entretanto esta amizade transformou-se depois, veio a atingir o centro. Nós decidimos um dia: «Epá, eles pagam mal», não sei que mais. Então fizemos um abaixo-assinado. Fizemos um abaixo-assinado a pedir melhores condições de trabalho e aumentos, etc. Então ali em poucos dias - eu posso dizer - eu, não sei se vem aqui outro rapaz que vai contar esta história também, ele pensa que foi ele e eu acho que fui eu - decidimos fazer um baixo assinado e em poucos dias conseguimos 600 e tal assinaturas. Isto só no sector da manutenção. E fomos entregar à administração. Fomos entregar não. Viemos um grupo restrito - que quando recolhemos as folhas, que as numeramos para saber se estavam cá todas, a gente sabe se faltam uma ou duas. Houve uma ou duas que nunca mais me chegaram à mão. Depois começamos a pensar que era um fulano. E eu, muitos anos depois, vim a saber que não foi ele. É um outro que me veio dizer a mim, pessoalmente, que foi ele que ficou com a folha. Portanto, nós tivemos sempre a desconfiar que era outro rapaz, não vou aqui dizer o nome porque seria chato. E durante muitos anos esse rapaz se vier cá vai dizer que foi o outro, mas não é, não foi o outro. Porque há um outro, um terceiro que veio ter comigo já depois do 25 de Abril: «Epá, fui eu. Aquela folha que faltava fui eu que fiquei com ela». E, portanto, a gente às vezes desconfia... então fizemos o abaixo-assinado, fomos enviar para a administração, mas fomos através dos correios. Fomos aos Restauradores enviar para a administração aquele pedido. Passado uns dias sou chamado à administração. Eu e outro rapaz. Epá... A gente sabia que eramos nós. Nestas coisas há sempre uma certa precaução. A gente pede a um ou dois para assinar e depois assina a seguir. Para não ser logo o primeiro, porque os primeiros dão logo cana. Já havia uma certa consciência. Nem eu, nem esse rapaz fomos os primeiros a assinar. Fomos os terceiros, quartos, por aí. Fomos lá chamados. O que é que eles querem? Eu fui mais o rapaz. Ainda era no Conde Redondo, neste tempo a TAP ainda tinha as instalações do Conde Redondo. Somos chamados à administração. Vem a conversa que «Não, não é mentira não. É verdade, eu assinei. Acho que está correto as reivindicações que estão lá feitas. Portanto, pretende-se melhor condições, nesta e naquela natureza». E por acaso já não tenho esse abaixo-assinado, que o dei em Peniche, está lá no Espólio, esse documento está lá. Uma cópia desse documento. Eu tenho pena de não o ter agora, há bocado estava [a pensar]: «Olha deixei isto em Peniche, depois disseram que me davam e nunca mais me deram». Bom... e ficou assim. E viemos embora e começamos a pensar.

No outro dia chegamos ao trabalho e começaram todos a perguntar: «Epá, tão o que é que se passou?». Contámos. Toda a gente, aquele grupo restrito, sabia que eramos nós. E eu e ele em especial sabíamos. «Quem é que foi o gajo que denunciou? É um daqui. Só esta gente aqui é que foi. Epá, é o Manuel? Não. É o Francisco? Não. Não sei. Epá, deve ser fulano». Então embicámos para um senhor, mais velho que nós, que era assim mais conservador e não sei que mais. Foi o Baião Simões que os denunciou. Então arranjamos um estratagema que olhávamos fixamente para ele. Eu estava numa bancada, por exemplo aqui, ele estava numa bancada mais - aquilo era uma oficina que tinha várias bancadas, de vários serviços, eu era do piloto automático, ele era do UHF, mas estávamos ali perto uns dos outros - então combinámos. E combinámos meia dúzia de nós, daqueles que tínhamos mais confiança, fazermos uma perseguição ao homem. Então o homem começou a andar louco. Ele ia para a casa de banho, havia um que ia atrás. Se um não podia, ia o outro. Tinha que ir sempre um atrás dele. Ele ia ao refeitório, fosse onde fosse havia sempre um de nós, daquele grupo, que ia atrás dele. Um dia vem ter comigo: «Ó Marcelino…» - ele chamava-me Marcelino - «… Ó Marcelino, vocês pensam que fui eu que vos denunciei, mas não fui eu. Eu também não sei quem foi».

Então veio-me contar aquilo que é, depois, o evoluir das coisas da TAP. Por isso é que eu estou a contar este pormenor. Então ele conta-me isso, então conta-me mais: «Epá, até lhe digo mais, a TAP convidou o Celestino, o Careca» - e um outro, que agora não me lembro o nome, eu já tenho tentado... sei que eram três: era o Celestino, o Careca, que era o Santos Careca, que era o chefe - «… serem os representantes dos eletricistas». E eles vão anunciar um contrato, um regulamento qualquer, e esses eram os representantes dos eletricistas. «E, portanto, vocês pensam que sou eu, mas eles é que são os bufos». Epá, o que é que ele foi dizer. Ele disse-nos isso, disse-me isso a mim, eu secretamente disse aos outros o que é que se estava a passar. «E para os metalúrgicos vão fazer o mesmo. Já nomearam o Coimbra e mais não sei quantos, eles é que vão representar os metalúrgicos». Epá, o que é que está aqui a acontecer?! Falámos uns com os outros. E então fomos fazer, fomos uns 7 ou 8 - não sei, já não me lembro - ao Sindicato dos Eletricistas Regional. Nós sabemos isto, não dissemos quem é que nos tinha dito. «Mas vocês não podem fazer, nós é que queremos eleger as pessoas! Nós não admitimos que vocês façam isso!». Então conseguimos que o sindicato permitisse que nós fizéssemos as eleições para eleger os nossos representantes.

Fomos aos metalúrgicos e eles encetaram também uma luta. Aí já foi uma luta muito superior. Porque eles conseguiram chegar à direção dos metalúrgicos, mas começou aqui. Deste tal fulano eu às vezes digo: «Você é o precursor das juntas da TAP». Porque foi com a denúncia que ele fez daqueles, a mim, que eu informei nos eletricistas e informei na zona dos metalúrgicos - eu que já estou organizado no Partido Comunista e, portanto, já, não sabíamos quem eramos uns dos outros, não sabia com quem é que lidava. Vou aos metalúrgicos aviso-os, através da pessoa responsável por mim, ele lá avisou. Os metalúrgicos movimentaram-se e chegam ao sindicato dos metalúrgicos. Bom, então aqui o que é que fizemos? Fomos eleger. Então foi um processo que se calhar é inédito. Não houve candidatos a lugares nenhuns, todos votavam em todos. Eramos todos eletricistas, cada um votava.

Eu sou eleito com a segunda maior votação, portanto, tenho cerca de 600 eletricistas, ou o que era, eu tive alguns 500 votos. Era para três comissões. Era para a comissão mista, para a comissão de segurança no trabalho e para a comissão corporativa. E portanto eu sou eleito e fico na comissão mais importante, que era a comissão mista. Entretanto nós estamos na comissão mista, a elaborar regulamentos, reunimos com a administração. Portanto, isto é tudo muito pouco tempo, você veja. Olhe só para gente ver mais ou menos o espaço de tempo, isto é muito pequenino. A decisão deste baixo assinado, é feita com a organização que tínhamos, mas porque os ferroviários tinham feito uma greve aos bilhetes. E nós: «Epá, os ferroviários fizeram, nós também devíamos fazer». Então o que é que decidimos fazer? Portanto, para ver o tempo que se passa aqui. Eu já fui ver aqui há tempo à internet ver que isto já é com o Marcelo Caetano, já em [19]69 mais ou menos 68 / 69.

Então nós vamos para a comissão, começamos a enrolar os regulamentos, mas aquilo não chegava. Temos de ir mais à frente, temos é de fazer um contrato coletivo de trabalho. Falámos com a direção do sítio, eu sou nomeado como representante para o contrato coletivo de trabalho. Começamos a elaborar uma proposta. A proposta é elaborada. Fizemos um projeto. Foi feito aonde esse projeto, depois de fazermos aquele documento para ser aprovado pelos trabalhadores? Por mim e por mais dois rapazes, também ligados ao Partido Comunista, numa igreja em - nunca disse à pessoa quem era e para que era aquilo - dum Padre, numa igreja em Loures. Foi lá. A primeira proposta de contrato coletivo de trabalho da TAP é feita na Igreja em Loures, que era o Padre Perestrello. Penso que era pai dum fulano que é hoje dirigente do Partido Socialista, não sei quê Perestrello. Penso que é filho dele. (...) Durante muitos anos tentei dizer ao tal padre Perestrello - mas ele já morreu, não lhe disse - mas foi lá feito a proposta. (...) Aquilo era em stencil, aquilo era muito complicado nesse tempo. Hoje a gente vai à internet (...). Depois tinha-se que fazer, depois calhou mal, depois era mais ou menos uma folha. Chegamos, viemos depois com os carros, com sacas serapilheiras cheias dos restos dos stencils. Deitámos ali na Serra de Loures. Portanto, então começamos a fazer isso.

(…) Eu ainda faço uns plenários e aquilo é aprovado. Entretanto em maio, mais ou menos, há prisões de dirigentes do Partido Comunista. Há a prisão de 6 ou 7 e depois em junho, fins de junho / julho, somos mais de 200 e tal presos. Como é que é? Eu não tenho ainda certezas, (...) não sei se ele era um infiltrado, se se rendeu depois de ser interrogado e não suportou a tortura. Portanto há um fulano, que ia a minha casa. Que eu emprestava a minha casa, porque ele era clandestino. Que emprestava a minha casa para ele ter reuniões. E, portanto, sabia disto. Ele, acho que estava neste sector, sabia disto e denunciou. E entre eles denunciou-me a mim. Portanto, sou preso.

Eu não sou preso na mesma leva. Sou outra vez o homem da sorte. Porque, entretanto, eu vou fazer um curso a França, quando são as prisões. Eu já tinha a informação que estava a ser gente presa, já estava a tomar precauções. Mas tinha garantias que as pessoas que estavam a ser presas eram de confiança, tinha esse à-vontade, que não havia problema nenhum - houve. Que ele vendeu-se ou já estava vendido. Eu fui a França, fiz o curso, tenho conhecimento que são presas mais pessoas. Já de base. Primeiro foram pessoas, mais ou menos, dirigentes, de topo, etc. Em julho são presos dois rapazes da TAP, que estavam nestas andanças comigo. Um metalúrgico - que foi para direção dos metalúrgicos - e um dos eletricistas que estava comigo que estava comigo nestas comissões. Este dirigente dos metalúrgicos é um dos que - essa coisa do abaixo-assinado ele se vier cá vai dizer que foi ele o autor, né? Então como nós fazíamos as coisas, as coisas surgiam. Às vezes nem se sabia quem era o autor. Era uma pedra que se mandava ao ar, não se sabia quem é que a tinha atirado. Não sei se ele virá cá, é capaz de cá vir.

De maneira que foi assim. A minha mulher escreveu-me, informou-me que tinham sido presos esses dois rapazes. Que era o Candeias e o Afonso Rodrigues. E então eu fiquei assim: epá...! Mas como eu não tinha nada com eles politicamente. Politicamente, isto é, organicamente. Eu estava numa célula que não tinha nada a ver com eles, foram eles que se meteram numa alhada. Porque eu tinha estado a combinar com um deles, antes de ir para França, fazermos uma ação dentro da TAP que não se chegou a concretizar. Que era, começaram a surgir lá o parque de estacionamento começou a ser infestado com privados. Era o chefe tal, era o chefe tal, não sei quê. E a malta que tinha carro, chegava lá não conseguia estacionar o carro. Era só para chefes. E nós tínhamos, estávamos a combinar ir lá uma noite com uma lata de tinta e pintarmos aquilo tudo. Mas depois eu fui para França e não fiz. Quando me mandaram [a carta, pensei]: «Olha os gajos meteram-se naquilo e foram apanhados». Pensei eu que tinha sido por isso. Vou, não vou, vou, não vou - decidi regressar. Regressei.

Vim no fim-de-semana. Nós eramos para ir acabar o curso na América, mas depois decidimos passarmos por Portugal para vermos a família e depois íamos para a América a seguir. Eu já não cheguei a ir para América, porque, entretanto, sou preso. Então eu venho e no dia 15, portanto à quarta-feira, salvo erro. Tinha vindo no fim de semana. Aparece a PIDE lá no meu local de trabalho, que queria falar comigo. Sim senhor. Eu vi logo quem era. (...) Percebi logo, fiz-me de anjinho e tal. Eu nesse dia cheguei bastante nervoso a casa. Para já sabia desta situação, se é ou não é. Mas na véspera eu senti que a minha casa estava a ser vigiada. Por um fulano que eu desconhecia. Eu saía com a minha mulher e a minha sogra, saímos de casa, fomos até um largo onde havia uma coletividade, que 'tava sempre lá muita gente ali à porta - isto era no Verão. E quando saio de casa, passado um bocadinho, vi uma pessoa que vinha perto de mim. Quem é este fulano? Já andava desconfiado, fingi que não estava a ver nada. Continuei a andar, disfarçadamente e tal. Vi que ele continuava. Andamos 100 metros. Eu cheguei um momento - também já não eramos parvos - parei, descalcei o sapato e fingi que o sapato me estava a aleijar. Bati com o sapato, como se fosse uma terra que estava aqui assim. E ele passou. E quando passou ficou muito aflito. Senti que ele olhou para trás a ver onde é que eu estava. Ele viu. [Eu]: «Pronto, já está. Vens mesmo a seguir-me». Corri, fui direito à minha mulher e à minha sogra e disse: «Olha, vamos para casa». Elas voltaram. Quando começo a andar para trás outra vez, vejo que o fulano - senti - continuava atrás de mim. Preguei-lhe outra partida do mesmo género, ele despistou-se. Eu avisei a minha mulher: «Olha, eu estou a ser seguido, vocês vão para casa, mas não acendam as luzes». Porque eu morava numa casa, num local em frente, e via-se logo que se acendia a luz e saberia logo onde é que eu vivia. Disse para elas não acenderem a luz, para o fulano não identificar a minha casa. Entretanto despistei-o e então dei-lhe uma corrida. Eu sabia que ele ficou assim... eles eram estúpidos. Esta gente era estúpida. Só tinham um poder: era a pancada, era a tortura, era tudo isso. Hoje as polícias são científicas - descobrem isto, descobrem aqueloutro, não sei que mais. Eles eram estúpidos, completamente! Portanto este homem é despistado por mim - ele se me estava a vigiar tinha de fazer coisa dele. Mas eu consegui topar que ele estava a vigiar. Porque eu depois vi-o na PIDE, depois vim a revê-lo na PIDE. Então elas conseguiram ir para casa, em casa eu tinha já poucas coisas, porque desde que esses moços foram presos evitei ter... as coisas estavam especialmente bem escondidas. Entretanto alguma coisa que tinha, que eu sabia que tinha destrui. Queimei uma série de papéis ainda, umas coisas que tinha em casa. E fui descansar.

Mas no dia seguinte fui trabalhar. Fui trabalhar cheguei lá, 'tava nervoso, era uma oficina com muita gente e eu tinha que preparar as coisas para ir prá América nesse fim-de-semana. Então decidi ir para um gabinete trabalhar sozinho. Passado um bocado aparecem-me cinco pessoas à entrada do gabinete: o meu chefe; um fulano que oficialmente dizia que era da judiciária, mas não era, ele era um PIDE que estava na TAP a vigiar - eu fiquei a desconfiar logo na ocasião, mas hoje sabemos depois do 25 de Abril que ele era PIDE, não era Judiciaria - era o Miguel, que toda a gente dizia que ele era Judiciária e andava em todo o lado e tal, que era o polícia. Não, o gajo era o homem da PIDE. É ele que me leva a PIDE aonde eu estava a trabalhar. Eles disseram que queriam falar comigo. E eu: «Sim senhor». Nem pedi identificação, nada, eles iam para tirar o crachá eu nem olhei, fiz-me de parvo, não é? E pronto, quando chegaram cá fora o meu chefe foi-se embora, o outro PIDE foi-se embora também e eles disseram [diálogo]: «Precisamos de ir a sua casa». «Tá bem, vão a minha casa sim senhor. Então, mas eu tenho ali o carro, eu vou no meu carro». «Tá bem».

Foram até minha casa, fizeram a vigilância lá a casa, eu deixei-os à vontade: «Vejam, vejam tudo o que tenham a ver». Epá, só que eu pensava que não havia nada que me comprometesse e estavam lá seis Avantes. Eram seis Avantes que eu tinha precisamente para distribuir à minha célula. Mas eu já tinha encontrado alibis prá coisa…: «Então, isso está aí assim. Olhe, encontrei». E eles começaram-se a rir «Então e este?». «Olhe, foi ontem quando cheguei ao trabalho, quando vim de França estava dentro do meu armário. Foi alguém que lá foi pôr isso. Vi o que era, até com medo não o quis deitar fora, com medo de que alguém o visse. Trouxe e escondi, até pensei que vocês não davam com isso. Mas estavam aqui escondidos que era para deitar isso fora». Mas eles comeram isto, eu consegui. Entretanto fui para Caxias."

"— Portanto foi levado logo para Caxias?"

"—Portanto eles levaram-me logo para a António Maria Cardoso e a seguir levaram-me para Caxias."

"— Então... e em Caxias? "

"— Então em Caxias... eu tive quê? eu tive isolado..."

"— Mas primeiro fez algum interrogatório? Ou foi só para...?"

"— Não. Identificaram-me, tiraram-me uma fotografia. Depois puseram um tipo ao pé de mim, que eu também já sabia a história do PIDE bom e do PIDE mau. Conversei com ele. Disse quem era. Eles perguntaram: «Então o que é que sabe do Partido Comunista? O que é que sabe da ARA?». [Eu]: «Nunca ouvi falar nisso. Não sei de nada disso. Eu sou da Comissão Sindical da TAP. Faço parte disto, faço isto». Tive ali dois ou três dias nisto e eu não saia disto. E eles ou convenceram-se ou não, mandaram-me embora. E andamos nisto, ao gato e ao rato, durante 4 meses. Fui chamado três ou quatro vezes sempre com esta história, aparecia o tal PIDE bom sempre ao pé de mim, ele conversava comigo sobre o Benfica. Sobre o Benfica, sobre aquilo que estávamos a fazer na TAP, as reivindicações que estávamos a fazer. E dizia-lhe: «Depois não cumprem os horários...!». Depois fingi que pensava que a PIDE trabalhava nisso, que resolvia esses problemas: «Se eu soubesse já tinha vindo cá informar isso! Tão eles fazem assim, fazem assado. O horário... Eles mudam a gente de horário de um dia pró outro, sem dizer nada. E eu ando na escola e depois já não posso ir às aulas, pá. Estamos a reivindicar para que isto deixe de acontecer». «Ah pois!». E eu a fingir que estava a contar uma história a um gajo bondoso, eu também já não era parvo de todo, não é? E fiz-me sempre assim. Ele depois dizia que jogava râguebi no Benfica: «Opá! Eu também corri atletismo e fiz ciclismo, pá!». Falávamos sobre a bola, sobre o Joaquim Agostinho e passávamos assim, conseguia entreter-me assim nos interrogatórios.

Eu 'tava isolado num quarto sozinho. E eu 'tava convencido que vinha para casa, já estava mesmo a pensar. Eu consegui dento da prisão ter referências [de] quem é que estava e quem é que não estava preso. Portanto eu já sabia que esses dois rapazes da TAP estavam presos, mas eles não sabiam nada de mim, que eu era do Partido. Eles eram, mas nem eles sabiam de mim, nem eu sabia deles. Eram de células diferentes, eram as células estanques. Portanto eu sabia que da minha célula não estava ninguém preso, sabia também que o controleiro que me deu aqueles Avantes e que reunia comigo não estava preso. Portanto estava mais ou menos à vontade, eu continuei com esta tese de estava no armário. Até que ao fim de 4 meses há um rapaz que nos interrogatórios, através da tortura, etc., disse que me tinha alistado para o partido. Eles chamaram-me lá. Eu continuei a desmentir. Entretanto eles propõem-me uma acareação. E eu tive medo da acareação. [Eu]: «Isso é mentira, mas se ele diz isso..., mas é mentira. Mas eu assino o papel». E assinei em como de facto era do Partido Comunista. Portanto, desmentindo. Eles diziam-me que era outro fulano que 'tava a dizer que era eu. Eu nunca falei com ele sobre isso, se ele tinha dito isso ou não. «Se ele diz isso, o problema é dele. Mas é mentira, ele está a mentir. Mas eu assino isso». E assinei. Portanto a minha acusação foi ser membro do Partido Comunista e que recebia os Avantes. Foi isso.

 

Eu depois fui julgado, na Boa Hora, em janeiro, com esses dois rapazes da TAP e o Daniel Cabrita, que era presidente do Sindicato dos Bancários, que eles conjugaram isto como se fosse uma célula sindical e então juntaram-nos os quatro. Penso eu que foi por isso, porque eu não conhecia o Daniel Cabrita de lado nenhum. Os outros dois rapazes eu conhecia-os lá da TAP, um mais que outro. E fomos julgados na Boa Hora. Portanto isso foi uma farsa. Há uma acusação dizendo essas coisas, depois eu arranjei advogado através da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, arranjaram-me um advogado que foi o (...) Baptista, que foi ver-me uma vez a Caxias, depois apareceu no tribunal.

Eles perguntam se queremos alegar, eu disse que não tinha nada a dizer, não adiantava. Não fiz declarações nenhumas no tribunal. Estava lá muita gente. Se calhar metade eram PIDEs, mas estavam lá os meus familiares, alguns deles, que eu tenho uma família... uma coisa enorme? Só irmãos somos 8, não é? Todos com filhos… E já alguns sobrinhos, nessa ocasião já havia sobrinhos. Eu tinha uma filha que nessa ocasião tinha dois anos e tal. E, portanto, fomos julgados. Os juízes foram uma farsa. Eu já publiquei isto no Facebook, o nome deles e tudo. Enquanto o Cabrita e o Candeias e o Afonso defenderam-se disto e de aqueloutro, eles estavam assim. (...) Eu fui o último a ser chamado e disse: «Mas eu estou a falar para quê? Para o boneco? Não, não tenho nada a dizer». De maneira que fomos condenados. Eu sou o que leva menor pena. O Cabrita levou pena maior. O Candeias e o Afonso levaram ou 18 ou 20 meses, não me lembro. Eu apanhei 16 meses. Mas depois fomos os quatro para Peniche.

Estive lá até outubro, salvo erro. Entretanto eu adoeci e consegui vir para Caxias novamente. Tive aqui até acabar a pena. Era muito mau estar preso. Era horrível. Mas era o menos horrível, para mim, foi a prisão. O mais horrível para mim foram as visitas. Foram as visitas e o desconhecimento de como é que a família estava a viver.

Portanto as visitas. Nós íamos para um gabinete com vidro à frente. De um lado estávamos nós, do outro lado estavam dois familiares. Não nos podíamos tocar. Eu tinha uma filha com dois anos e tal que nunca a pude beijar. Nunca a pude beijar. Não podia dizer - isto agora que eu vos tive a dizer - não podia dizer nada disso. [Dizia]: «Não, não sei, alguma confusão qualquer pá. Vocês estejam descansados que eu vou para casa. Não, eles tratam-me bem, como bem, a cama é boa! Não, é mentira tudo o que dizem que tratam a gente mal».  Eu depois saia dali. Aquilo era meia hora, uma coisa assim, e ia para cela. E eu dizia: «Não quero mais visitas nenhumas». Porque aquilo era uma aldrabice que eu 'tava a fazer à família. A família também não podia dizer para eles não saberem. Eu saia de lá completamente rouco, porque tinha de estar a falar alto para eles ouvirem o que é que eu estava a dizer. A pior tortura que eu tive na prisão foram as visitas. Claro, no próximo dia que tinha as visitas, que era uma semana depois, já estava a desejar ver a família, não é? Era aquele momento... estava durante sete dias a dizer que não queria mais visitas, mas ao oitavo dia quando diz: «Tem ali visitas». Eu hesitava primeiro que não ia, mas ia lá. Durante este tempo todo que estive preso todas as visitas foram assim. Ali e em Peniche.

Depois de sair, outro problema enorme. Portanto eu saí, sou despedido da TAP. Entretanto eu vou à TAP à mesma dizer que eu tinha acabado a pena, queria trabalhar. (...) Argumentei com a administração, não em aceitaram. Comecei à procura de emprego. Como felizmente tinha uma boa profissão, que era técnico de eletrónica. Ainda hoje, mas nesse tempo mais, que eramos poucas as pessoas que tinham esta área. Apercebi-me que eu dava o meu currículo, que tinha trabalhado na Material de Guerra, que fui eletricista na Siderurgia Nacional, que tinha trabalhado na Força Aérea, tinha estado na TAP, tinha os cursos, tinha estado na Aeronáutica Civil. Sim senhora, ficavam encantados, depois começavam a notar. «Sim senhor, a gente diz-te alguma coisa». Nunca mais me diziam nada. Alto. (...) Comecei a mentir. E a outros depois comecei a dizer: «Então e depois saiu da TAP?». «Pois, eu não estava satisfeito, emigrei, tive em França, mas depois chateei-me e agora vim e quero retomar».

Consegui ir pró Metro. Fui para o Metropolitano de Lisboa, estive lá 4 meses. Estavam encantados comigo. Portanto eles estavam a fazer renovação dos sistemas de comunicação dos comboios, que era um género de um sistema de GPS que eles estavam a montar e que 'tava cá um francês. E eles não tinham ninguém lá no metro com credenciais, quando me apanharam a mim ficaram encantados, dadas as minhas habilitações. Que eu nessa altura já tinha concluído o curso de eletrónica da Fonseca Benevides, já tinha feito uma especialização em computadores, o curso que eu tinha estado em França era de computadores. (...) Era o primeiro computador que veio para Portugal, fui eu que tiro esse curso. Primeiro computador. Só para verem a versatilidade deles. Primeiro computador, era de 48Ks atenção. Mas fazia somente isto. o piloto automático do 707 eu demorava uma semana, mais outro rapaz, a fazer o ensaio. Uma semana. Saía do avião porque tinha qualquer queixa, qualquer desconfiança, vinha para a oficina. Eu e outro rapaz, já completamente ligados um com o outro: um a ler as instruções, outro a registar o que é que tinha, era uma semana, se aquilo corria bem. Esse computador quando chegou a Portugal, fazia aquilo em 3 horas. De uma semana passou para 3 horas, só para verem - apesar de ter os tais 48Ks. Tão eles ficaram encantados comigo lá no Metropolitano, então um dia vão dizer à administração. O francês foi lá à administração dizer: «O homem, sim senhora, estamos descansados que este homem toma conta disto».

Vou à administração. Entretanto eles já sabiam que eu não tinha estado em França, já sabiam que eu tinha estado preso. Ou a PIDE ou eles pediram. Então o administrador deles - já agora eu vou dizer, um canalha, eu chamo-lhe canalha. Porque ele aparece, vejo-o na televisão várias vezes armado em arauto das empresas. E queria que eu assinasse um documento, aquele que assinavam os funcionários públicos: «Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social», aquela coisa que assinavam os funcionários públicos. E ele queria que eu assinasse um documento daqueles. E eu disse: «Olhe, queira desculpar. Eu só posso assinar a dizer que sim, que estou de acordo com isso. Tanto pode ser mentira como pode ser verdade. Não tem outra hipótese. Olhe, mas eu estou aqui como técnico. Tão satisfeitos comigo como técnico, tão satisfeitos. Como político não tenho nada a ver com vocês. Isso já passou, foi a prisão, portanto não assino». Ficou assim, não assino. Estava lá o engenheiro comigo, o engenheiro meu chefe, ficou também... Não sei quanto tempo depois veio ter comigo: «Epá, nunca esperava você ter essa coragem». Esse homem ficou tão sensibilizado com a minha coragem, que arranjou-me trabalho para outro lado. Claro, já foi também dizendo que eu tinha estado emigrado.

Então fui trabalhar para a Matos Tavares, a sociedade comercial Matos Tavares. Não lhe contei a história. Vinha já credenciado desse engenheiro, que conhecia o engenheiro-chefe. Por acaso acabámos depois por saber que tínhamos relações. Esse engenheiro lá da Matos Tavares era o dono ou o responsável de uma revista de eletrónica e que publicava coisas sobre digitais. E eu tinha esse curso. E eu depois disse: «Olha que no artigo tal isto tá mal e o outro tá não sei quê». portanto eu próprio fazia emendas na revista, que era uma revista conceituada, era o melhor que havia cá no país. Fiquei lá, estavam encantados comigo. Uma posição muito melhor do que tinha na TAP, portanto, eu 'tava na electromedicina. Portanto, adaptei-me lá aos raio-x, a todos esses aparelhos, aos eletrocardiogramas, tudo isso. E depois estava a montar um equipamento, que era o primeiro, que era um aparelho de angiografia no Hospital de Santa Maria. Estive lá a montar aquilo tudo.

Entretanto veio o 25 de Abril e eu fui-lhes dizer a eles [diálogo]: «Epá, vou-me embora». «O quê?! Vais-te embora?». «Epá, então você teve aqui...!» - tive lá um ano e tal, portanto o 25 de Abril é em 74, eu sou solto em fins de 72, portanto tive lá em 73, um ano e picos provavelmente. Ainda saí lá do Metropolitano, tive lá uns 4 meses, tive lá à volta de um ano. «Epá!» «Não, não pá» - e ganhava mais! Eu ganhava lá 8 contos e tal e fui para a TAP a ganhar 6 contos e 500. Era dinheiro nesse tempo, mas tenho que ir lá vingar-me deles, eles agora têm de me gramar. E fui para lá, momento revolucionário, etc., portanto regressei à TAP. Aliás eu ganhava esses 8 contos e tal, mas tinha mais. Eu como normalmente andava deslocado, ia a Coimbra, ia a Faro, ia aqui ia acolá, reparar equipamentos a consultórios, tinha ajudas de custo, tinha os quilómetros do carro e tinha as refeições. Estava bem, estava muito bem, não tinha problemas nenhuns. A minha mulher nem trabalhava nem nada, que, entretanto, ela depois saiu do emprego, que houve muitas complicações com ela também no emprego. Então saí, fui para a TAP e, entretanto, aparecem também os tipos do Metropolitano, foram lá à minha procura: «Epá, você é que tem de ir para cá!» «Epá não». Depois contei-lhe a história e tal. Depois, entretanto, o Metropolitano que me tinha despedido, naquele movimento revolucionário queriam que eu fosse. Entretanto não. Fiquei na TAP e por lá fui ficando.

Uma ocasião, eu me lembro quando estávamos na prisão, estávamos a falar da nossa vida no futuro, não sei quê e gozávamos. Não pensávamos que íamos ter a sociedade, nem íamos ver outro - a gente desejávamos e lutava por isso - mas era por confiança. Mas cá dentro... será que é possível? Estão tão bem organizados, pá. Fazem tudo o que querem. E assistir ao 25 de Abril, assistir ao 1º de maio. Eu disse muitas vezes: «Olhe, podia vir o fascismo outra vez. Deram-me a maior alegria que eu podia imaginar». Hoje olhe tenho tristezas pá, olha os resultados eleitorais do último fim de semana, fiquei triste. (...)

Eu só votei tinha 30 e não sei quantos anos pá. Nunca tinha votado. E hoje pelo menos então posso dizer: «Não gostas, foste tu que escolheste. Se não escolheste, podias ter escolhido». Dão-nos essa hipótese, apesar de tudo. Com as restrições, com esta comunicação social que temos, etc. Mas apesar de tudo é completamente diferente. É completamente diferente. Eu tive um dia destes na assembleia geral do Benfica, que eu sou benfiquista, e ouvi lá fulano chamarem: «Isto é uma ditadura!». [Eu]: «Você sabe o que é uma ditadura? Epá, meça essa palavra. Vá ao dicionário e veja o que é ditadura. Você 'tá aqui a falar, não concorda com aquilo, eu não concordo consigo, mas podemos dizer frente a frente que não concordamos um com o outro. No tempo da ditadura isto não era possível. Você dizia isso e eu calava-me e ia-me embora. Ou tinha muita coragem, ou 'tava sujeito a isto». E a pessoa ficou assim.

Isto é completamente diferente, vivemos num país...! Olhe uma coisa, que eu estava em França, houve uma manifestação lá em França. Epá, que beleza! Eu 'tava lá, eu 'tava a sentir-me no paraíso a sentir-me ver aquelas bandeiras, aquelas pessoas a gritar. Não sei a título de quê, foi a seguir ao maio de 68, nesse momento. Epá, estou numa manifestação pá! Depois a gente assistiu tanta coisa em Portugal... Não valeu a pena? Valeu a pena.

Então eu fui estudar, como disse há pouco, com 16 anos. Os meus netos têm no mínimo o 12º ano, com 17 anos! Olhe um que está hoje no hospital bastante mal, mas isto é outra coisa. O 12º com 17. Eu com 16 é que fui para o 1º ano! Eu nessa ocasião dava 50 erros numa redação, porque já tinha feito a 4ª classe. Há 5 ou 6 anos já me tinha esquecido destas coisas todas, já não sabia o que era o verbo, o que era um advérbio, o que era uma proposição, o que era tudo isso. Aos 16 anos, eu lembro-me que era uma turma, na Marquês de Pombal, de 40 alunos numa sala! O ensino noturno abriu mais ou menos nessa época, epá, era milhares. A minha turma tinha 40 alunos! Era tudo de 20 erros para cima. E eu consegui acabar o meu curso. Acabei o curso com 30 anos. Olhe, acabei o curso no ano em que sou preso. Se sou preso um mês antes não acabava o curso. Claro, tive em Porto Santo, mudei de curso, tive na Força Aérea - nunca chumbei! Acabei aos 30 anos, mas nunca chumbei. Tenho dois cursos, não é? O meu curso de eletrónica era 9 anos na escola! O meu curso de eletrónica era 9 anos. 9 anos! Era mais que o curso de um engenheiro, que são 4 ou 5. E eu quando acabei - não sei se tão a gravar ainda, então se calhar isto é importante! Eu quando acabei o meu curso de eletrónica, 9 anos, com matemática aplicada e com tudo inerente à eletrónica, se quisesse prosseguir os estudos tinha de fazer 14 exames. Catorze! Tinha que ir pedir equivalência ao 7º ano para poder ir para o Instituto Superior Técnico. 14 exames. Se quisesse seguir para engenheiro.  Então hoje o meu neto tem 17 anos, está no 12º, para o ano pode ir para Engenharia - 17! Eu neste momento já tinha 30. Já tinha estudo, tinha o curso da Força Aérea, tinha trabalhado sempre no duro. (...)

Isto era assim, o ensino era assim, porque havia o curso comercial, o curso industrial e os cursos dos Liceus. Estes eram prós trabalhadores, os cursos dos Liceus eram para as pessoas que tinham mais posses. E eram esses que depois prosseguiam para doutores, para isto, para aqueloutro. Havia alguns que foram engenheiro, eu tenho colegas meus que fizerem os 14 exames e foram. A mesma coisa que eu faria se tivesse só o 2º ano! Porque davam a matéria de tal ordem enviesada, que eu não tinha as equivalências das Histórias Universais, disto e de aqueloutro. Não tinha o Inglês e o Francês, tinha só o Inglês. Epá, então isto não valeu a pena, esta modificação? Ainda hoje estava a ouvir, hoje ou ontem, 'tava a ouvir os professores estão em greve. Epá eles não deviam saber, eles se calhar não sabem isto. No dia das eleições havia um Sindicato dos Professores que estava em greve porque não sei quê, não sei que mais. 'Tá mal? É sempre justo que a gente queira mais. Recuem 50 anos e vejam como é que era. Porque se não a juventude pensa que isto está mesmo mau. Não está. Eu fui para escola descalço, eu andei descalço até aos 14 anos. Lembro-me dos primeiros sapatos que tive. Eu lembro-me ainda hoje perfeitamente quais foi os primeiros sapatos. E já não era de uma família que passava fome, porque tinha lá umas territas. Trabalhava-se, é evidente, tinha de se trabalhar. Isto hoje está completamente diferente.

Salazar nada! Quando se diz: «Ah, precisávamos [do Salazar]», as pessoas não sabem o que era isso. E deviam saber, deviam saber".