Nome: Vicensa Ferreira Marques
Ano nascimento: 1934
Local do registo: Couço
Data do registo vídeo: 24-02-2022

Transcrição

"Sofremos muito aqui na nossa terra. Foi uma terra de muito sofrimento. A gente passou muito. A gente se queríamos ir buscar uns paus de lenha ou algum mato para queimar, a Guarda apanhava a gente e até as sacas tirava à gente - isto é tudo verdade! 

 

Eu tinha 22 anos. Cheia de vontade de fazer alguma coisa na vida e eles não deixavam. Não tínhamos nada, nada com que a gente se governasse. Quando tínhamos trabalho trabalhávamos, quando não tínhamos trabalho temos fome. Fomos fazer greve. Estava tudo em greve aqui e eles não queriam, é claro, que a gente fizesse greve. 

 

A gente trabalhávamos de sol a sol, pegávamos ao nascer e despegávamos ao pôr. Sempre a pé, a ir para o trabalho, para onde a gente apanhava, para muito longe. A gente chegamos a ir daqui além para o Sol-posto, para as Faias, ali lá para baixo - sempre a pé. 

 

De verão era o arroz e de inverno íamos arrancar mato, arrancar moitas. Não havia tratores, era a gente com as enxadas, os enxadões, a arrancar mato. Eles davam umas empreitadas à gente. Cada uma tinha um talhão para tirar, enquanto não o tirasse não ia para casa. Então a greve foi por isso, para a gente apanhar as oito horas. Mas era uma coisa louca. Foi uma coisa do pior. 

 

Eu não sei bem a data, sei que a minha menina tinha três anos e agora tem 66. A gente ajuntamos assim aos grupos. Eu estava num grupo, com a minha menina ao colo. [Emociona-se] Eu até nem gosto de falar nisto, mas isto passa. Eles mandaram-me largar a menina no chão e levaram-me para uma camionete - a mim e a um grupo de mulheres, todas da mesma idade mais ou menos. Eu devia ter aí 23 anos. Eles mandaram-me largar a menina, eu larguei a menina e levaram-me para dentro do carro. A mim e a várias. Tudo aos empurrões, tudo aos encontrões. 

 

Levaram a gente para Mora. Depois em Mora mudaram a gente para um carro diferente, à noite. Trancaram aquilo tudo, as ruas, com a guarda e meteram a gente para dentro daquele carro. Um carro grande todo em ferro. E fomos. Andaram toda a noite com a gente por aí. Chegou a uma certa altura - um carro cheio de mulheres - umas faziam chichi, outra vomitavam, outras choravam. Eu era sempre a chorar, eu chorava sempre. E mais como eu, mas eu era muita chorona. 

 

Até que chegaram a um sítio, não sei onde, foram buscar uma pouca de serradura e puseram - a gente todas descalças, naquele tempo ninguém tinha sapatos. Não fomos para Caxias logo nesse dia, ficámos numa esquadra. Vinham buscar a gente cá abaixo - ainda me lembro - íamos por uma escada em caracol lá para cima. Era sempre aos encontrões à gente. Cada um levava uma mulher de cada vez. O chefe uma vez chegou lá a uma janela. A gente já estava lá há oito dias, ninguém se vestia, não tínhamos roupa, íamos conforme estávamos. Mais de oito ou quinze dias sem nada... mulheres. Então ele mandava para lá às vezes uns maços de algodão, umas coisas assim para a gente se desenrascar. Ao fim de uns dias lá fomos para Caxias. Lá estivemos uma quantidade de tempo nos interrogatórios.

 

A mim não me bateram, mas houve lá colegas minhas que apanharam. Falavam muito mal para a gente, muito estúpidos, muito malcriados. Lá tivemos o tempo que eles quiseram, sempre a sofrer, sempre a penar, sempre. 

 

O meu marido ficou cá a tomar conta [da nossa filha]. Andava a trabalhar. Ele ainda fugiu, também o queriam apanhar a ele, mas ele andou uns dias fugido e aquilo depois acalmou. Só uns dias. Ele ficou com a menina e com a vida toda. 

 

Tive aí quase sete meses, mas houve pessoas - esta que aqui está teve mais tempo. A gente não sabia nada. A gente estávamos lá, eles sabiam que a gente não sabia. Alguma mais fresquinha queria falar - eu não falava muito, porque tinha muito medo e só pensava na minha filha. Essas que falavam mais, eram maltratadas e apanhavam. Mas eu não, eu safei-me. Ouvi grandes ripostadas, malcriados, estúpidos. Maltratavam a gente.

 

Aí [em Caxias] eramos mais maltratadas no comer, comemos mais mal. Mas as salas eram melhores que lá onde a gente estava. A gente lá [António Maria Cardoso] dormíamos no chão e lá em Caxias tínhamos camas. Dormíamos no chão, assim. A gente sofremos assim, sofremos muito, mas não é como certos presos que tiveram. 

 

A gente tínhamos uns sinais lá na prisão que dizíamos uns aos outros, batíamos [na parede], lá uns sinais que a gente tinha, pessoas mais experientes do que nós. E sabíamos quando é que tinham levado porrada, quando é que tinham estado toda a noite no castigo - a gente sabia. Sabíamos mais ou menos. Não sabíamos, mas sabíamos. Passámos assim muito, sofremos muito, mas ainda houve quem sofresse mais do que aquele grupo onde eu estava. Eramos todas raparigas muito novas ainda. 

A minha filha tinha três anos, mas ainda se lembra de ir à cadeia. Ainda ontem à noite tivemos a falar disso - ela mora em Santarém. Ela disse: «Mãe, eu ainda me lembro», por isso ela nunca se esquece. E tinha três aninhos, ainda se lembra de me ver lá. E eu também me lembra, porque diziam-lhe a ela: «A tua mãe está presa». e ela pensava que eu estava presa com uma corda. Foi assim a nossa vida. Ninguém imagina o que é que se sofreu. Ninguém imagina. 

 

Deixavam a gente ter visitas ali na esquadra, mas lá em Caxias já não tivemos visitas. Na esquadra o meu homem ainda lá foi, uma irmã minha... ainda lá foram. Agora em Caxias nunca tivemos nada. Tivemos lá aquele tempo.

 

Não fomos julgadas. Íamos todos os dias ao interrogatório. A gente seguia sempre o mesmo, também estávamos amestradas nalguma coisa, já tínhamos reuniões clandestinas… E a gente seguia sempre o mesmo, não dizíamos mais nada que era aquilo. Levávamos encontrões [diálogo]: «Quem é que as mandou? Quem é que as mandou fazer isto?» E a gente dizia que era a gente, que a gente queríamos as oito horas. Só falámos isso: «A gente parámos». «Então mas pararam porquê?». «A gente queríamos as oito horas, trabalhamos muito, andamos sempre de noite, chegamos sempre a casa de noite». E era verdade, isto era tudo a verdade, a nossa vida. Íamos de noite, abalávamos de madrugada e vínhamos de noite para casa, sempre. Eu não sei como é que a gente aguentou. [Risos]

 

Eu sofri muito, mas houve quem sofresse muito mais do que eu. Arrancavam-lhes unhas faziam muito mal, punham-nos dentro de calabouços, lá em Caxias, com água a correr. Eu sofri, fui maltratada era assim: palavrões, empurrões e comer mal. E foi assim. Uma vida assim, muito má.

 

Chegou o dia que vieram levar a gente ao comboio, lá quando eles terminaram. Voltei para cá. Fui trabalhar quando apanhei. Quando apanhava trabalho, trabalhava. Depois a gente apanhámos as oito horas, depois de muitas tentativas, não foi logo naquela altura. Anos e anos.

 

Foi anos, esta vida sempre, até vir o 25 de abril. Depois isto aqui ganhou calma, aqui e em todo o lado, mas a gente aqui melhoramos muito".