Nome: José Ribeiro Sineiro
Ano nascimento: 1935
Local do registo: Torres Novas
Data do registo vídeo: 17-01-2022

Transcrição

"Nasci numa família em que tinha um irmão mais velho. As suas relações eram com a juventude em Torres Novas, entre eles o Francisco Canais Rocha.

O [meu] tio tinha sido preso no 31 de janeiro de [19]34, na Marinha Grande. Ele trabalhava na Marinha Grande - foi para lá para a Marinha Grande porque era serralheiro, mas também jogava muito bem à bola. Esse meu tio teve cerca de dois anos preso. E por jogar à bola teve a sorte de não ir na leva para o Tarrafal.

Isso entusiasmou-me para querer saber mais alguma coisa com ele. O meu irmão continha-me e eu ia à procura de saber mais alguma coisa sobre a razão. A minha mãe ficou assustada de ver o choque com os dois filhos. Chamou-me à atenção: «O teu irmão é muito querido do teu tio, porque ele foi visitá-lo, quando era menino pequenino, ao Aljube comigo».

A vida deles era tipo negociante. Levavam daqui da zona hortaliça e iam a Lisboa ao mercado vender e traziam para Torres Novas bananas, especialmente, e o ananás.

Um dia apercebi-me que ele [o irmão] tinha um livro em casa que estava a ler que era O Crime do Padre Amaro. Ele escondia o livro para evitar problemas. E eu fui à biblioteca, em Torres Novas, cheguei lá [perguntaram-me]: «Então o que é hoje? Que vais levar?» - que eu costumava ir lá buscar livros - e eu disse: «Olhe, queria O Crime do Padre Amaro». O homem ficou [assustado] [diálogo]: «Mas quem é...?». «O meu irmão está a ler e eu queria ler. Ele não me deixa ler». «E fez muito bem! Eu vou-te arranjar um livro». E eu fiquei…. Foi mais uma pedra que me desemburrou em ponto de vista disso.

Eu tive a sorte de estar na escola com um colega que o pai era advogado - que se matou - que foi também um homem ligado ao Partido e aos trabalhadores, o doutor (…). E eu na escola com o Zé, que era o meu colega filho desse advogado, vínhamos a correr à segunda-feira no recreio direito à farmácia Lima, porque o senhor recebia a imprensa dos aliados, especialmente da Inglaterra. Ele recebia e fazia sempre uma recomendação. A gente entrava a pedir, ele já sabia o que é que íamos lá fazer, entregava-nos aqueles programas dos aviões. E ele dizia: «Agora os meninos que já sabem ler, fazem favor de lerem aos vossos pais o que vocês estão a ler nos vossos programas». Isto entusiasmou-me à procura de leitura.

Quando foi a eleição do Humberto Delgado, a minha tendência era já mais à esquerda. Sabia que o General não era grande coisa, porque ele tinha sido homem do Estado Novo. Eu conhecia-o, ele era daqui da Brogueira, sabia a história, já tinha lido alguma informação - aí já o meu irmão começou a abrir o leque das informações. A nossa tendência foi para o Arlindo Vicente.

Cheguei a uma situação, quando saí da tropa, não tinha aqui ninguém que me dava emprego. A pessoa com quem eu tinha aprendido a arte de eletricista mecânico, tinha ido com ele montar umas máquinas a UTIC [União de Transportadores para a Importação e Comércio] e lembrei-me de ir a Lisboa falar com ele - e fui para lá.

Depois da campanha acontece que aparece-me o António Santo - que eu conhecia e que era aqui de Torres Novas, tinha sido empregado de escritório na casa onde eu tinha aprendido o ofício - e ele lembrou-se, soube que eu estava no UTIC, de me contactar. A partir daí entrei no Movimento da Juventude - a partir do encontro de Sacavém em que o Domingos Abrantes foi o homem que galvanizou a juventude nesse encontro.

A minha responsabilidade foi ficar ligado ao Movimento da Juventude nessa altura, mas forçosamente as informações eram também partidárias. Isso levou-me a que eu, na UTIC, e depois do encontro [ficasse] com ligação dos Olivais até Sacavém [n]os contactos com a juventude operária e especialmente na UTIC.

Quando eu vou ao encontro com o funcionário e com outro amigo, que tínhamos marcado, [junto] à Assembleia da República, para aí para essa zona. Quando eu lá chego o meu amigo diz-me: «Vamos embora, quero-te contar uma coisa». Eu fui com ele, depois diz-me: «É que fugiu um grande camarada». Foi no dia a seguir à fuga do Álvaro Cunhal, no dia 3 de janeiro. Só que, entretanto, a fuga do Álvaro Cunhal e dos camaradas com ele, deu origem a uma busca diabólica por todos os cantos - até a pessoas que já nem sequer quase sabiam que tinham estado ligados ao Partido. Por todo o país. Aqui, em Torres Novas, aconteceu aqui nalgumas zonas de irem a casas antigas.

Fui preso a 17 de março de 1960. Quando assaltaram a casa - assaltaram, foi um assalto autêntico - em Moscavide, acontece que o dono da casa, quando eu venho a sair acompanhado - tive de me vestir e ir à casa de banho e aquilo tudo acompanhado por um PIDE enquanto outro PIDE estava a fazer busca no quarto - quando venho a sair, o dono da casa, que era empregado na Sacor, teve a infeliz ideia de me dizer: «Ó senhor José, [queria] pedir-lhe desculpa, porque eu estava convencido que eram os seus amigos que vinham aqui, que costumavam cá vir a casa». Não tinha nada que dizer: «Amigos? São colegas de trabalho que vêm para combinarmos para irmos ao fim de semana a um lado ou a outro e às vezes vêm aqui para combinar». Eu tinha um molhe de chaves, eu tinha chaves de casa em Torres Novas, tinha as de Peniche, do quarto e da casa da entrada - tinha uma série de chaves. As chaves e a [questão] de quem eram as pessoas deu origem a espancamentos. A queimarem-me com o cigarro, apagarem-me o cigarro na cara - tentaram, eu mais rápido que consegui vi o gesto e queimaram-me a mão.

Eu devo dizer que foi de 17 a 26. Fiz os 25 anos na António Maria Cardoso.

Fui-me abaixo do ponto de vista físico. Eu não sabia que sofria do coração, tive um colapso. Não posso dizer de outra maneira, porque eu não me lembro de mais nada. Lembro-me de na sala estar a ter visões e os pés - é a primeira coisa que a gente nota logo, da [tortura da] estátua e do sono, o pé ser maior do que o sapato. [Risos]

Acordei mais ou menos, estava ainda na maca, nos rés-de-chão, (…) com o médico. Fiquei com esta perceção. Eles chamarem, um murmúrio, comecei a ouvir um murmúrio e ele a dizer: «Cuidado com o coração». Esta situação prolongou-se mais um tempo. Apercebi-me, depois com os amigos falamos sobre isso, e mais tarde em Caxias. Eu fui mais duas vezes - fui três vezes à António Maria Cardoso. A última foi para apresentar. Juntaram todos os jovens do processo a dizer que íamos a tribunal.

Quando fomos para Caxias já estávamos junto com outros presos. E é nessa altura, [que] estava o (…) e o Maia que eram médicos jovens formados e eles aperceberam-se que eu estava com uma pulsação bastante grande e fizeram barulho até eu ir outra vez ao médico. Foi uma visita ao médico à António Maria Cardoso. Aqui é uma coisa que me marcou e que eu vou contar: (…) foram-me buscar à sala, eu estou à espera, o PIDE está ao pé de mim e vem o Mário Soares. O Mário Soares chega, cumprimenta o PIDE e o motorista e nem olhou assim para mim, que eu estava na parte de trás. Nem bom dia, nem boa tarde, nada. Sentou-se, foi em conversa toda até à António Maria Cardoso. Eu fiquei logo nos rés-de-chão para o médico me auscultar - não fizeram mais exames só estiveram a auscultar e a medir a pulsação, mais nada.

Eu soube, depois por contatos, que ele [Mário Soares] estava com o Salgado Zenha em Caxias. Entrou, cumprimentou. E esses amigos - o Cavaco Garcia (…), ou o que era: «[Risos] O menino queria que o Doutor o cumprimentasse! [Risos]». Mais uma lição a explicarem-me o que é que era o Mário Soares, o que é que ele representava e como é que ele estava preso.

A partir do colapso que tive, as fases já não foram tão prolongadas, de [tortura de] sono, de tentar bater, ou queimar com o cigarro. Estas reações e esta consciência que eu tenho foi em conversa com os amigos. Foi sorte para mim ter aqueles médicos perto, porque era capaz de ter algum problema mais tarde. Depois tive injeções, aquilo tudo.

A partir daí fui a julgamento. Estavam também uns amigos de Alpiarça. Eu fui julgado ainda nos finais de novembro e a 19 de dezembro vou para Peniche. Sou condenado com pena menor, ou o que é aquilo, 24 meses - mas estive cinco anos e meio. Foi uma fornada deles e fomos inaugurar um pavilhão das celas - o pavilhão B.

Eles faziam isto quando a gente estava em Peniche: estávamos um mês incomunicável, mas uns dias depois juntaram-nos, alguns dos que tinham vindo, numa sala no pavilhão A, no primeiro andar.

Em Peniche subíamos e ia para a chamada copa. O guarda abria a porta: «Senhor fulano, vá pôr a sua fruta». E eu fui por a minha peça de fruta. No fim de todos, penso que foi todos tal como saímos para ir almoçar, verificámos que o José Vitoriano não tinha - ele tinha ido lá pôr uma peça de fruta, que era hábito, e o guarda foi tirar. Isso deu origem a um levantamento logo, fizemos um «escanção» dos diabos. Sei que passado umas horas [disseram-me]: «O senhor Zé Sineiro, prepare-se para sair». E eu [pensei]: «O que é que estes me vão fazer». Meteram-me numa cela - fui para a cela 15 do bloco B do 1º andar.

Aí foi uma experiência muito gratificante para mim. Estava o António Dias Lourenço, estava o Zé Magro - que tinha fugido em [19]61 de Peniche, quando eu ainda lá estava - e depois apareceu o Zé Carlos mais tarde, o [Severiano] Falcão. Esta gente começou a entrar comigo, eu era o mais jovenzito. Uma coisa que qualquer preso tem pretensão quando é preso é tentar arranjar forma de fugir. É nessa altura que o Zé Ribeiro conseguiu levantar um taco encostado e comecei a tirar o reboco do que sobrava. (...) E arranjei um vão para esconder o que havia lá. Se quisesse [o guarda] podia lá ir.

Um dia o [Octávio] Pato disse: «Meu menino…» - porque sabíamos que não podíamos ter lá nada que pudesse denunciar a atividade que se fazia, as relações, o Octávio disse «… o menino tem lá condições para fazer isto». Passou-me um papel e pediu-me para passar isto nas folhas de mortalha. Eu como tinha aprendido a fazer a caligrafia pequenina, tinha partido o bico daquela caneta de tinta-da-china, tinha tirado uma perna e tinha só com outra, e conseguia, sem arranhar na tábua, conseguia fazer com tinta-da-china (…). Isso foi para mim uma alegria muito grande, o partido dar-me esse trabalho. Foi uma aceitação de um jovem - eu era um miúdo do Movimento da Juventude, estava a receber informação. Uma das situações que me marcou foi uma das mensagens, fui eu tomar conhecimento que estavam presos que não estavam a acompanhar-nos nas lutas das greves que fazíamos, ou de fome, ou de protesto, de escrever - isso não faziam. Isso magoou-me. Pensei: «O partido também é dado a isto, também está a conhecer estas situações». Para mim ficou-me, chocou-me.

A grande alegria que depois mais tarde vim a saber - a gente teve lutas terríveis. Uma delas, a última, foi quando fizemos o alarido à janela que alertou a população: «Queremos visitas! Temos fome!». No dia 1 de junho de [19]65 abrem-me a cela, o guarda, e diz-me: «O Senhor Sineiro prepare as suas coisas para sair». Sair - julguei que me tinha dito que ia para outro lado - levaram-me ao gabinete do diretor, um relatório, a fazer-me ameaças. Entregam-me, tenho aí, um salvo-conduto para cinco dias depois da saída me apresentar em Lisboa na António Maria Cardoso. Tinha havido um movimento a nível internacional a pedir a minha libertação, juntamente com outros camaradas que estavam presos.

Muitos dos amigos falavam que a divulgação não tinha eco na opinião pública. Tinha! Desde o Brasil, América, Inglaterra, Bélgica, Holanda. Da União Soviética, da altura, e da Holanda eu tenho correspondência, fora aquela que a PIDE nos correios ficava. Mas esta conseguiu chegar à minha família e a minha família teve um comportamento - tanto o meu irmão, como o meu pai, do ponto de vista de me ajudarem, bastante grande".