Nome: Carlos Cruz
Ano nascimento: 1938
Local do registo: Algés
Data do registo vídeo: 07-10-2021

Transcrição

"Comecei a trabalhar com 12 anos. Nasci perto de Aveiro e vim no comboio para Vila Franca de Xira para uma padaria - tinha lá umas pessoas conhecidas e lá fiquei a trabalhar e aí entrei num movimento chamado JOC - Juventude Operária e Católica - que eu, costumo dizer que é, foi a minha primeira universidade. 

Aí tomei consciência dos problemas dos operários. Tomei consciência de que de facto na política nem tudo ia bem porque... ainda sou do tempo do Carmona. Vi o Salazar e o Craveiro Lopes num dia em que eles foram inaugurar a ponte de Vila Franca de Xira, a primeira vez que os vi. Mas já nessa altura sentia que não gostava deles. 

Portanto, neste movimento JOC - Juventude Operária e Católica - aí sim, nós fazíamos uma reflexão semanal sobre os problemas laborais, sobre a situação das pessoas, dos trabalhadores. E aos 17 anos resolvi - influenciado também por este movimento - entrar no Seminário. Fiz um percurso de 12 anos. Quando saí voltei outra vez para Vila Franca de Xira, contra a vontade do Patriarca Gonçalves Cerejeira que diz [diálogo]: «Não, não vás para aí, porque isso é uma paróquia com sabor operário, (…) portanto não vás para aí.» Eu disse: «Vou. É para aí que eu quero ir». «Mas eu não te nomeio». «Mas eu não preciso da sua nomeação. Vou». E fui. Ele diz-me assim à saída - morava ali no Campo Santana, Mártires da Pátria, não é? - «Então vais, vais por tua conta e risco. E quando tiveres fome hás de vir cá pedir-me pra te pôr numa paróquia onde possas comer». Tudo bem - e fui-me embora. 

A minha primeira decisão quando cheguei a Vila Franca de Xira foi voltar para a padaria donde tinha saído 12 anos antes, portanto já com cabeção de Padre (…) — e aí trabalhei 3 meses. Acumulava o trabalho da Paróquia - os casamentos, os batizados, aqueles... o chamado trabalho clerical. Trabalhava de noite na padaria e de dia na paróquia. O Patriarca soube, por queixas que fizeram e mandou-me chamar: «Quem te deu ordem pra ires trabalhar?» e eu disse-lhe: «Pra trabalhar é preciso ordem? Não me disse que quando tivesse fome que viesse cá ter consigo? Eu, eu ganho o dinheiro com a... Nós da Paróquia não recebemos nada, todos os serviços litúrgicos são gratuitos. Trabalho para viver».  E foi assim a minha entrada. 

E, mas ainda voltando um bocadinho atrás, a minha consciência política de que era preciso fazer alguma coisa, politicamente, porque pra mim a religião, naquela altura, pensava eu, que iria modificar o Mundo. 

A minha consciência política nasce no dia em que, ou na noite em que se anuncia a tomada de Goa, Damão e Diu. Porquê? Em dezembro de 1960. Porquê? Porque, aí sim, o Patriarca, no fundo, acabou por se juntar às preocupações do Salazar e colocou-nos todos na Sé a rezar, a fazer penitência, para que os nossos soldados na India tivessem coragem para resistir à invasão determinada por Nehru que era o primeiro-ministro. E há uma frase importante que o Salazar no discurso diz: «A vossa missão é defender o Porto de Mormugão até ao último homem». Isto de facto impressionou-me. Quer dizer, era uma condenação à morte pela pátria daquela gente. Ainda hoje sou vizinho duma pessoa que esteve prisioneiro lá na India, ele conta coisas maravilhosas - ainda está vivo. 

Portanto a minha consciência política começou aqui: há aqui qualquer coisa que está mal na igreja e no poder político. Como é que se junta tudo com aqueles discursos emocionais, coitadinhos estão todos a morrer? (…) Foi aqui de facto a minha tomada de posição, de consciência. 

Em 1966 terminei o curso, comecei em 55, e vou outra vez para Vila Franca de Xira, por decisão minha. E é aí então que, com o trabalho (já estamos em período de Guerra Colonial - que começa em 61 como sabem) - e aí a minha preocupação era, não era ensinar a Religião e Moral às pessoas, quer dizer… era… era a vida, era pensar o Mundo, o problema da fome - e com os jovens depois preparamos uma grande exposição sobre a fome, o problema da Guerra Colonial. Portanto, mas tudo isto era perigoso, complicado e… esta foi a minha preocupação, foi depois formar os jovens para isso. (…)

Em Vila Franca de Xira para que os jovens na Paróquia não ficassem só pelas rezas, só pela parte litúrgica, criamos um jornal chamado Rampa. Criámos um jornal chamado Rampa - ainda existem alguns exemplares, não há coleção completa - que depois foi proibido. Enfim, teve pouco tempo, não sei se saíram alguns 5 ou 6 números, depois foi proibido também. Onde os jovens, enfim, analisavam os problemas da cidade, da terra.

Criámos também um espaço físico para eles se poderem reunir chamado Secretariado Paroquial, o movimento de jovens chamava-se SEJO - Secretariado Paroquial, de resto em consonância com um outro que existiu em Santarém liderado pelo Padre Chico Nuno, que ainda hoje é muito conhecido, muito lembrado, que se chamava o SCOJE e era neste âmbito que os jovens, portanto, se encontravam mesmo com jovens ligados a partidos políticos (um deles o conhecido Pedro Soares). 

Aí fizemos várias atividades, várias intervenções. Na escola onde eu era professor, a certa altura há um problema, o diretor exigia a cada aluno trimestralmente 7 escudos e 50 centavos. Parece hoje uma coisa ridícula, mas na altura era importante e era difícil encontrá-los. Houve duas ou três jovens que não pagaram porque não tinham dinheiro, ou enfim os pais não podiam, foram expulsas da escola. Foram expulsas. Aí nasce um movimento de solidariedade pelos jovens da escola, mas naturalmente também   pelos jovens do Partido Comunista como pelos jovens da Paróquia, do tal SEJO e aí. 

Eu era professor de Religião e Moral. É melhor separar, porque às vezes juntando - juntando-se é capaz de dar resultado, de dar certo [Risos]. E moral, portanto. O diretor até dizia: «Você vem para aqui para ensinar a Religião, e o Credo e o Pai Nosso, não é pra andar para aqui a falar de política e da fome e da guerra, etc.». Pronto. Estes jovens, quando estas colegas foram expulsas resolveram manifestar-se, resolveram de facto tomar posição. De dia paralisaram a escola. Os meus alunos da noite chegam e perguntam-me: «Os de dia estão em greve, o que é que a gente pode fazer?». (Mas os alunos da noite eram operários da Cintura Industrial de Vila Franca de Xira, de Lisboa até Vila Franca é de facto uma zona cheia de operários e poderosa). E eu disse-lhes: «Vocês é que têm de pensar. Juntem-se aos colegas e vão perguntar ao diretor o que é que ele faz ao dinheiro que exige». E foi assim que paralisaram a escola durante uma semana inteira. Foi de facto um movimento... isto em 60 ... 68 provavelmente, não tenho a data exata que estas coisas, como eu não as escrevia... (Um anarca nesta... não as escrevia). Mas penso que será 68, eu sou expulso em 69, por estas coisas todas. 

Juntam-se, paralisam a escola. A polícia, comandada pelo chefe Lopes, que era meu conhecido, aparece de noite - que para a escola tinha de se subir uma escadaria grande - com as suas, os seus soldados, os seus polícias. E queria invadir e correr com as pessoas do parque da escola, (estavam lá de noite, sentados ali à espera que o Diretor aparecesse, de noite não apareceu e os alunos ficaram). E eu quando vejo o Chefe Lopes a subir disse: «Ó Chefe Lopes, tenha cuidado que isto é tudo gente operária, isto é gente de força. Você, veja a desproporção das forças. Além do mais estão lá sentados, eles não fazem nada, eles só querem o Diretor». E então o Chefe Lopes diz-me assim: «Ó Padre Cruz, você garante que não fazem nada?». [Eu]: «É claro que garanto. Garanto, não fazem nada». E de facto não fizeram. Só que esta minha posição arrojada de dizer «eu garanto», (de facto garanti e não houve nada), mas fui inculpado de mentor da greve, que não tinha sido. Foram os alunos. Não fui. Pronto, esta foi uma das primeiras vezes em que tive depois de dar explicações à Polícia porque é que tinha tomado esta decisão. 

Vila Franca de Xira era uma paróquia de poucos ritos. Tínhamos uma casa de rapazes da rua, criada em 44 pelo Prior de quem eu tive a honra e a felicidade de ser coadjutor [Vasco Moniz]. (…) Chamava-se CASI - Centro de Assistência Social Infantil. (…) Convém registar também, era uma obra de acolhimento a jovens sem família, mas não era um lar só para dormir. Tinha escola primária lá dentro. Os professores eram pagos pelo Estado, claro. Os rapazes eram caldeados da vida, e lá de dentro. Tínhamos oficinas, carpintaria, serralharia, sapataria, tipografia, onde eles aprendiam ofícios. Os que quisessem e tivessem capacidade para estudar iam estudar. 

O grande lema do Padre Moniz era assim: «Carlos Cruz você quando for às barracas, não leve nem pão, nem colchões, nem cobertores. Traga os rapazes para cá. Ponha-os a estudar. Eles depois vão tratar da vida dos pais». Portanto esta era a pedagogia do Padre Moniz, era a cultura, a formação profissional e não só. Ensinava-os a pescar, e eles depois que fossem, de facto, tratar da (…), dava-lhes os instrumentos e eles depois iriam... 

E então um dia - ia a dizer há bocadinho e dei este salto - havia em Vila Franca apenas uma procissão na rua por ano, que era o chamado Encerramento do Mês de Maio. E ficámos a pensar, mas vamos pôr os andores todos na rua, mas a propósito de quê? O que é que a gente há de fazer? Portanto surgiu a ideia de os andores ficam todos dentro da Igreja, como isto é homenagem à Nossa Senhora vai só a Nossa Senhora. E na vez dos andores vamos pôr cartazes com frases, com estatísticas de falta de camas de hospital, com faltas de... infelizmente não há uma fotografia desse acontecimento. Que foi de facto, foi chocante para os beatos, para os praticantes, foi chocante também para o poder político que não tolerou aquilo. O próprio Prior, que era um homem que falava muito bem, ia ouvir as homilias de fora e dizia: «Você fala e depois eu é que vou preso». Mas, portanto, eu era mais ativista do que ele. E ele diz-me: «Carlos Cruz você coloca-me sempre dentro de factos consumados». Ele só se apercebeu disto no próprio dia, já na rua, na procissão. [Risos] Ele não via os andores. Portanto isto foi com os jovens. (…)

Eu penso que a procissão foi aí em 70. Também não há datas exatas. Como isto não foi escrito e não há fotografias. Têm andado atrás de mim a ver se eu me recordo. Recordo-me disto: do cenário, das datas. Não tenho hipóteses agora de…mas foi entre 69, 70 que isto deve ter acontecido. Este tal CASI, uma das preocupações que teve também para ocupar profissionalmente os rapazes, foi arranjar trabalho. E então transformou-se também em construtor civil (por isso é que o Patriarca não queria que eu fosse para lá que isto Padres Operários isso é coisa que, é impensável, é inadmissível). E então estes da Construção Civil, construíram bairros de casas económicas, uma série de vivendas, ainda lá estão, ainda existem. 

E a certa altura, já estava eu como professor, há um amigo - um Padre que tinha sido meu professor de Filosofia no Seminário dos Olivais, que me perguntou se eu podia arranjar trabalho também como professor de Religião e Moral, na escola de Vila Franca de Xira. E arranjei. E consegui, tive a sorte de uma das tais vivendas vagar e ficou para ela. Só que essa minha amiga (que morreu, era uma ativista espetacular, grande guia cultural do património de Santarém chamava-se a Rosalina Melro. Ainda hoje pessoa de memória) ficou lá dois anos (portanto do ano 68/69 ela resolveu ir para Santarém, exatamente no ano em que eu também sou expulso da escola e da função pública. Ela não foi expulsa porque mudou para Santarém). Quando ela foi embora eu cativei o espaço exatamente para dar a possibilidade de jovens poderem usar aquilo. Esse é o tal 34. 

O 34 tem uma função espetacular na vida cultural da terra, quer dizer, porque tornou-se um Pólo por onde passaram figuras — estou a lembrar-me do Jaime Gralheiro, que foi depois Presidente da Câmara de São Pedro do Sul (o Cineteatro tem o nome dele). Que veio ali estrear peças proibidas, a ler as peças proibidas de teatro que ele escreveu ali. E o Fanhais, a Catarina Pestana, que foi diretora da Casa Pia. Passou por ali muita gente, alguns, muitos deles já morreram. Esse 34, portanto, lá viveu o Pedro Soares também e muitos outros jovens. Eu tinha lá sempre um espaço cativo, para dar um bocado a imagem de que aquilo não era... estava arrendado em meu nome, eu estava a pagar a renda ao CASI, estava arrendado em meu nome. 

Aí viveram, aí enfim, aí conviveram, aí conheceram as namoradas e as companheiras, como o caso do Chico Braga com a Rosa Braga. Ainda hoje muitos destes jovens de lembram do bem que foi e têm manifestado em testemunhos a importância que [o CASI] teve na vida deles, na formação deles. E era um espaço onde veio o Zeca Afonso duas vezes, naquelas noites de baladas. De resto, o Zeca Afonso foi uma personagem importante na minha viragem, aí sim, política, não é? O Zeca Afonso vai lá e até estávamos ligeiramente ligados a um movimento chamado LUAR, na altura do Camilo Mortágua, etc. (...) agora que me lembrei do Camilo Mortágua, que me lembrei da LUAR, conto um episódio. A certa altura o Palma Inácio estava preso na cadeia do Porto e conseguiu fugir, conseguiu evadir-se de lá. E então aparece em grandes parangonas nos jornais, primeira página que davam 50 contos, em 1967, 68 talvez, ou 69 já, não me lembro (...) e então 50 contos a quem denuncia-se o paradeiro de Palma Inácio. E eu agarrei este tema dos jornais para o trabalhar com os alunos nas aulas de Moral. Dizendo: «Olha, houve um traidor de Jesus Cristo - o Judas, também por 30 dinheiros vendeu-o. Agora vejam lá, de facto, a decência destas atitudes». Portanto, aproveitava estes factos para despertar a consciência das pessoas, a consciência critica. 

A minha preocupação não era por estar ligado a partidos - nunca estive ligado a nenhum partido a não ser à CDE que ajudei com uns jovens de Vila Franca, da Paróquia, também a fundar. Viemos a várias reuniões ao Palácio Fronteira, quando se começou a formar… a constituir a CDE. Lá conheci o Presidente que morreu, o Jorge Sampaio. Aí foi preso um amigo que não está cá infelizmente, está em Paris (que também devia ser ouvido que é o Joaquim Alberto). E o Jorge Sampaio acompanha já nessa altura, ficamos a noite no Governo Civil. Ele foi preso pelo Capitão Maltês, porque estávamos no Palácio Fronteira nestas reuniões - semiclandestinas, claro - e o Capitão Maltês dá ordem de dispersar do Palácio Fronteira e este Joaquim Alberto, mais aguerrido, acaba por ... enfim por provocar o Capitão Maltês. Ele prendeu-o... veio pró Governo Civil. 

Com o aparecimento do 34, (...) há necessidade também de tentar combates à Guerra Colonial. E aí, ligado também à LUAR, qual foi a minha participação com este tal Joaquim Alberto que estava em Paris? (…) O Joaquim Alberto teve que desertar para Paris - e aí criou uma casa (que era a dele, mas também uma casa de acolhimento). Principalmente de apoio a portugueses que chegavam — na altura era a época da emigração clandestina. (A gente hoje esquece-se quando recebe os emigrantes que vêm, coitados, mas esquece-se daquilo que passou e o que viveu, o que foi Champigny, o que foi de facto essa exploração). Tínhamos lá essa casa, mas sobretudo para recolha, para acolhimento e apoio a oficiais desertores do exército. Portanto uma das coisas que eu tentei (ligado a este movimento) foi… não era eu que os aliciava, eles eram aliciados, mas iam ter comigo à paróquia de Vila Franca de Xira. E daí eu fiz um estágio, entre aspas, numa terra chamada Quadrazais, lá prós lados de Sabugal, que é, era a zona dos contrabandistas. Aí acampei e curiosamente o Padre Moniz quis ir comigo e fomos. Tivemos ali assim uns dias para ver como é que se podia passar a fronteira, dar apoio a esta gente. Não resultava porque as pessoas eram muito curiosas: «O que é que estão aqui a fazer?», portanto pensámos: «Somos descobertos logo à primeira, na primeira passagem». 

Então depois descobri um outro processo, como eu já tinha saído no SudExpress para França, verifiquei que a PIDE acompanhava até Vilar Formoso, mas depois saía. E o comboio ficava ali parado meia hora, ficava um tempo razoável. 

Eu tinha uma 4L que foi de facto uma carrinha da resistência, não é? Uma 4L. E então na 4L o que é que eu fiz? (...) As primeiras pessoas que me chegaram a Vila Franca e queriam..., veio um Oficial da Guiné e lá o fui levar. A ele e a outros. Meti-os na minha 4L com um lanchezinho, uma merenda. Na altura levava-se um dia inteiro para chegar a Vila Formoso, porque [Risos] a estrada era... não é o que é hoje! Não [havia] autoestrada! Parávamos pelo caminho para comer alguma coisa e quando chegava a Vilar Formoso eu ouvia o comboio chegar, não estava por ali perto, sabia o tempo que aquilo... E então estava parado para partir e no momento da partida já não havia PIDE dentro do comboio, portanto eles saiam ali, fiz essa análise. Metia-os dentro do comboio e, sem bilhete, sem malas, sem nada, portanto só com a roupa e alguns trocos, digamos assim - e compravam o bilhete na estação (...) seguinte - penso que é Fuentes de Onor, já não me lembro bem qual é a seguinte onde o comboio parava, pronto. 

Uma das tais pessoas, desertoras que eu levei, um dia em 72 (…sim é 72), veio comandado pela LUAR para algumas ações. Portanto havia (...) gente cá dentro. Nessa altura havia um sujeito que também morava aqui em Algés em casa de quem me apanharam (nessa altura eu vivia com a mãe do meu filho, Madalena Pestana, irmã da tal Catalina Pestana. E esse, o pai estava no Alentejo, numa herdade que tinha também em nome da LUAR, para uma herdade, armado em grande senhor) (…). Para quê? A LUAR tinha aí dez mil quilos de explosivos não para pôr pontes abaixo, como a PIDE depois dizia: «Vocês querem é tal tal tal…». [Eu]: «Não, a gente não quer nem pôr pontes abaixo, nem escolas abaixo. Olhe eu não quero nada, eu quero é que o Mundo seja bom». E pronto, foi assim. Mas esse tal Agostinho Pestana depois acabou por saber que nós tínhamos sido presos aqui, foi avisado, e foi-se embora, fugiu, conseguiu passar. Portanto, e um desses tais jovens que eu tinha ajudado a passar, veio, é apanhado aqui num dos cafés, aqui assim em Lisboa. E é apanhado com agenda e com nomes e com contactos. E são esses contactos que vão levando dia após dia gente pra Caxias. Eu ficava admirado, mas porque é que isto está a acontecer? 

Portanto eu fui apanhado aqui de surpresa. Eu vivia em Vila Franca de Xira e vinha aqui, na Duarte de Almeida já aqui ao cimo desta subida à esquerda, numa destas ruas. Fui apanhado de madrugada, eles arrombaram a porta, entraram e depois instalaram-se lá dentro. Levaram-me a mim, à Madalena que estava grávida quase de... eu fui preso em maio, o meu filho nasceu a 29 de Julho, portanto ela estava com uma barriga razoável. Levaram a mim, a ela e à mãe. Fomos todos presos todos na mesma carrinha, lá nos separaram. 

Mas eles mantiveram-se dentro de casa durante vários dias. Recebiam o pão, recebiam o leite, desmontaram as janelas para ver se via... reviraram os vasos porque estavam à procura dos tais explosivos. (…) Porque esse tal Nelson… não sabia onde é que estava o homem dos explosivos, mas resolveu falar. (Pronto, ... isto aqui não é um julgamento, porque quem lá esteve é que sabe o que é que é difícil, como é que consegue safar-se ou não). E esse Nelson deu algumas indicações e, portanto, andavam à procura do homem dos explosivos. É por isso que me encontram ali. Quando me encontram conheciam-me como coadjutor de Vila Franca - estou a lembrar-me da expressão do Chefe Capela: «'Tão você está aqui? 'Tá aqui?». Pronto e levaram-me. E aí estive também esse tempo razoável. 

Como eu tinha sido preso com a Madalena grávida do meu primeiro filho, do Mário. (E que está hoje a fazer um exame na Ordem dos Médicos, deve estar aflito [Risos]). Disseram: «Você enquanto não falar, não só não sai daqui, mas a sua companheira também não sai. Também não sai». E aí fiquei um bocado preocupado, porque pensei assim...: «Bem, grávida, cá dentro». 

E outra preocupação que eu tinha: eu já tinha abandonado, de facto, o serviço paroquial e tinha sido convidado por um ex-aluno meu (também já faleceu, metalúrgico) a trabalhar com eles, com os metalúrgicos. Portanto, nesse âmbito ainda de coadjutor abri-lhes a Delegação dos Metalúrgicos em Vila Franca de Xira, que ainda hoje existe. Existe a União hoje. Ainda existe. E era aí que eu ia buscar o meu ordenado, para meu sustento e da família. Portanto a minha preocupação quando fui preso: «Agora como é que a Madalena e a mãe vão sobreviver?». Mas aí tive a sorte que a direção do Sindicato - um deles era este Jerónimo de Sousa, na altura foi meu patrão, digamos assim. Eu era secretário interino do Sindicato nessa altura. Mas eles garantiram-me. (...) Houve dois que conseguiram entrar e falaram comigo e disseram: «Fique descansado, que nós garantimos o salário até ao julgamento. Depois se for condenado...». E aí fiquei tranquilo. Mas fiquei tranquilo também por outra razão. É que a Madalena tinha um xaile daqueles de Viana do Castelo, das minhotas, não é? É um xaile espampanante. E a certa altura eu estava virado para o Estádio Nacional. Portanto as pessoas podiam vir a pé até quase à entrada, vinham a pé. E há um dia que eu venho à janela e vejo a Madalena com o xaile. E pensei: «Pronto, afinal ela está livre». Eles continuavam a dizer que ela estava presa, e eu não reagia. Disse depois: «Vocês acham que fazem bem a uma criança que está, que isto é…», enfim. Ia também jogando a minha chantagem. Mas fiquei tranquilo e assim. 

Depois disto tudo é que eu vou estar lá os tais 10 dias e 10 noites na tortura de sono. Aí os diálogos foram interessantes e graças à minha (...) enfim, tenho impressão de que inspiro um certo ar de bondade. E um dos PIDEs que me guardava, era um tal de Benquerenças guardava-me enfim, da meia-noite às duas. Depois aquilo mudava de duas em duas horas. «Ah, você uma pessoa tão boa. Diga o que tem pra dizer. Escreva pra estes gajos. Você nem imagina como eles são», e tal. E depois começou-me a falar dos problemas familiares dele. E eu transformei-me em conselheiro dele. E é, nestes diálogos, durante 4 noites que eu consigo saber quem é que tinha fugido, que eles queriam prender, quem é que estava preso. E, portanto, a partir daqui, julguei eu, eu consigo saber quem é que não…: «Está aqui um tal Nelson, está aqui um tal Anjos que sabe tudo de si e já falou e já escreveu». E disse ao senhor Benquerenças: «Eu anjos, só conheço o meu anjo da guarda, não conheço mais anjo nenhum». E de facto não sabia quem era. Mas penso que lá para terceira noite ele diz o nome Nelson. Quando ele diz o nome de Nelson eu digo: Nelson de Rosário Anjos - fixei o nome do tal que fui levar. E aí é que eu soube que ele estava preso, pronto. E pensei: «Bem, por aqui estou um bocado tramado, ele também não sabe muito da minha vida, nem sabe que eu que sei da história dos explosivos lá em baixo em Portel». Mas pronto, foi assim. Joguei, mas joguei à conta do meu corpo. Isto é, não me safei da tortura do sono. Que eles queriam que eu dissesse, que eu escrevesse.  Sobretudo violência verbal. E ameaças físicas, sim, sempre no intuito de me fazerem falar. Mas a tortura mais [difícil], de facto, foi a tortura do sono. De resto não me chegaram a bater. Atiravam-me as cadeiras para os pés. Quando a gente descai com o sono e qualquer ruído é uma coisa, de facto, pavorosa. Psicologicamente ficamos muito perturbados. Portanto, a partir de certa altura a sala de interrogatório é praticamente metade, deve ser metade desta. Portanto andamos pra trás e pra diante. Lembro-me porque de facto o grande drama era ver nascer o sol: «Como é que eu vou passar isto até à noite?». E quando caía a noite: «Como é que eu vou passar a noite?». Era isto. Era estar de dia, começar o dia sem saber como é que ia acabar o dia. Depois sempre na esperança de que me mandassem embora. 

Certa altura, ao fim desses dias, mandaram-me embora... mandaram-me embora, quer dizer, mandaram-me em isolamento pró quarto. Não obtiveram nenhuma informação nem verbal nem escrita, mandaram-me pró quarto. A certa altura apareceram, para fazer a barba, fizeram-me a barba. E depois foram-me buscar para ir ver… tinha visitas. A primeira e única vez que tive visitas. E quando chego, de facto, aquilo era, portanto, uma sala com um vidro ao meio. E quando vejo, quando entro, vejo a minha mãe, que veio de Aveiro, coitada. Aquelas pessoas, vir de Aveiro... Nem sei como é que chegaram a Caxias! Tenho uma irmã gémea, também vinha. Um outro irmão, que morreu o ano passado, também veio. Mas o que me ficou na memória e no coração foi: «Como é que esta gente chegou aqui? Com dificuldades económicas, não é? Como é que chegou aqui?» E a outra coisa foi a minha mãe dizer: «Vês? Há tanto tempo que te ando a dizer para não te meteres nisto», e o PIDE a ouvir. Disse: «Ó mãe, mas eu não estou metido em nada. Olhe, vão-se embora, vão pra longe e não voltem cá porque não é preciso cá voltar». E de facto não voltaram. Portanto tudo isto são torturas, são torturas. 

Estive praticamente um mês no isolamento, depois passei ao regime comum. E foram-me um dia buscar à noite (...) e eu pensei: «O que é que será agora?». (...) Insultaram-me, maltrataram-me. Eu tinha tido 10 dias e 10 noites de tortura de sono antes, não é? Enfim, passar outra vez a noite nisto. Mas não passei a noite, passei só a meia-noite. Maltrataram-me. Insultaram-me. Enfim, com aqueles palavrões todos deles: «Afinal andou práqui a mentir. Você foi buscar uma mala a Pombal. O que é que a mala tinha?». Eu assim «Mala a Pombal?». Quer dizer, comecei a tentar dar voltas à memória - eu sabia exatamente o que é que era. (…) Aconteceu eu ir a Pombal, com a tal 4L, coitadinha, levantar uma outra mala. Mas com essa 4L eu tinha tido um acidente. Tinha tido, isto é, ia uma outra pessoa a guiar (uma Charlotte que mais tarde também andou embrulhada nisto, uma francesa). E tinha tido um acidente e a carrinha ficou em Pombal, eu vim de ambulância para Lisboa. E então tive que voltar à oficina já com a carrinha e aproveitei para levantar uma mala em Pombal. A mala era deste Francisco, deste Chico Braga). Mas lá lhes disse: «Pois, já me lembro, eu tive um acidente em Pombal. E um dia que tive de ir à oficina. E uns amigos pediram-me para levantar uma mala que tinham despachado de Paris. E eu... Mas eu a mala não a abri». Pronto, eles depois souberam da mala, lá fui um bocado mais… tive um mau bocado porque senti que tinha mentido. E nós no seminário temos esta formação de que mentir é mau, é feio. 

Estive no isolamento, mas aí ao fim de talvez uns 10 dias, entrou-me um sujeito pelo quarto (...) — e o que é curioso é o seguinte, eu estudei 6 anos no Seminário dos Olivais, 3 num lado - 3 em Santarém, 3 em Almada e 6 no Seminário dos Olivais. E quando chego a Caxias, Caxias é exatamente - tem a mesma configuração do Seminário dos Olivais. Um quartinho, com uma casa de banho. Eu pensei: «O arquiteto foi o mesmo, lá o grande homem, Nuno Teotónio Pereira - que já morreu também, que foi um grande ativista».  Tinha beliches, que nos Olivais é um quarto, não há beliches, é uma cama, de resto nós não podíamos (...) não se pode partilhar quarto no Seminário. (…) Caxias tem, de facto tinha beliches. Tinha e devem ter os quartos em beliches. E a certa altura eu vejo entrar pelo quarto dentro um sujeito com uma toalha debaixo do braço, e eu pensei: deve ser algum PIDE pra me espiar. Portanto ficamos os dois desconfiados um do outro, durante tempo. Comíamos lá dentro - iam lá trazer-nos o comer. Pra nos entretermos, (ele era casado - tinha aliança pelo menos, eu achei que era casado). Tinha uma aliança. Nós com moedas tentávamos enfiar as moedas dentro da aliança. Ficou com algumas mossas para nos irmos entretendo. «Mas porque é que estás aqui preso?» [pensei], e a gente cautelosamente não diz tudo, até que lá percebi que ele estava ligado ao mesmo movimento da LUAR, é um tipo de Árgea, ali perto de Torres Novas (...) que é o Quintas. Lá esteve preso também comigo ali, até passarmos depois ao regime comum. E conheço outros que tiveram presos, claro. Conheci várias pessoas. (Este Quintas também sugeri que o contactassem, para ser entrevistado também. Depois ele saiu para a Bélgica e teve ao serviço do Rei da Bélgica como motorista, e agora está reformado). 

Encontrei um documento de quando eu fui preso no dia 12 de maio de 72, quando estava à procura de uns documentos. (...) E encontrei um texto que o grupo de Vila Franca de Xira, (…) mais gente ligada ao Partido Comunista, que fizeram um documento, no fundo de protesto da minha prisão e um pedido ao Patriarca - que já era outro, era o Dom António Ribeiro - para ele intervir. Dizendo as razões: que tinha sido preso, não sabia de mim, que estava doente, enfim…, está lá escrito. E que foram ao Dom António Ribeiro pedir-lhe para ele intervir. E ele responde-lhes que em Caxias não podia fazer nada, mas havia uma coisa que ele podia fazer e ia fazer. (...) Quando nós nos desligamos da Igreja ou pedimos, ou não pedimos nada. A minha tese era não pedir nada: «Eu acho que tenho vocação para ser Padre e é assim que eu quero ser. Não me querem assim, mas não saio daqui». Então eles elaboram um processo chamado Processo de Redução ao Estado Laical, portanto uma saída compulsiva.  E ele diz: «Há uma coisa que eu posso fazer. Vou parar este processo, porque se ele sair agora eles vão buscá-lo, vai pra tropa e vai pra Guerra Colonial». E pronto, de facto o processo... oficialmente sou ligado ainda [à igreja]. Não estou desligado de nada, nem ligado a nada, mas continuo a ser um ativista. Costumo dizer que eu não sou um Cristão praticante, sou um Cristão militante. 

Mas esse foi de facto, foi um mau bocado também que passei. Lá estive. E depois graças à intervenção deste homem que morreu ontem, o Padre Vítor Feytor Pinto, lá consegui daí a uns dias sair. Mas saí com esta ameaça do Inspetor Tinoco: «Você tem muitas velas acesas lá dentro. E não conseguimos ter provas políticas contra si. Mas só pelo muito mal que fez à juventude em Vila Franca devia ficar cá preso». E eu disse: «Oh, um bonito critério para prender uma pessoa». «Mas vá, daqui a pouco voltará a estar cá» [concluiu o Tinoco]. 

Esta situação, quando eu fui preso a última vez, não fui condenado por razões políticas porque de facto tive a sorte de conseguir saber quem estava preso e quem não estava preso. E percebi que quem não estava preso, ou melhor, quem conseguiu fugir não estava, e, portanto, não me podia incriminar a mim. Tive a sorte de sair afiançado para assistir ao nascimento do meu filho. E foi este tal Padre Vítor Feytor Pinto que morreu ontem, amigo da Catarina Catalina Pestana, que me conseguiu. Emprestaram-me aqui 30 contos pra eu sair. Saio afiançado. Depois a PIDE elabora um outro processo por passador clandestino. Uma vez que eu tinha levado as pessoas. Disse sempre que não, que não levei, mas enfim. Quer dizer a certa altura a tal 4L também servia para distribuir cadernos que se fazia aqui (...) em Belém, era o Padre Felicidade, chamado GEDOC. E eu fazia, tinha uma rede de distribuição. E disse [diálogo]: «Não, um dia apareceram umas pessoas, dei-lhes boleia até à Guarda». «Ah, estenda mais um bocadinho, vá até Vilar Formoso». «Não, não fui até Vilar...» Pronto, isto para dizer que depois acabei por ser julgado na Guarda e foi o próprio Juiz, quando estava lá a sala cheia de PIDEs e de gente, que me diz: «Você vem acusado como passador clandestino, sabe o que é que é passador ...?». «Olhe, não sei, nunca passei, quer dizer não sou passador». E ele foi-me fazendo as perguntas para desmontar a tal figura do passador clandestino. E a certa altura termina assim «Pronto então, afinal você não é passador clandestino. Você ajudou a passar pessoas ilegais, mas por canais legais». A expressão dele, portanto o problema de facto foi este. [Risos] 

As outras [prisões] anteriores passei sempre pela António Maria Cardoso. E a primeira semana que fui preso, a primeira semana certamente em 68, talvez, ou finais de 67. Isso posso ver aí depois nos papéis, mas... mas é pela António Maria Cardoso. Esta foi diretamente para Caxias. Foi pra e lá fiquei em Caxias. 

Desde a primeira, que fui apanhado na Faculdade de Letras - ia pra uma frequência de francês havia lá grande convulsão.  Mas tinha levantado umas malas que vinham de Paris em Santa Apolónia. (...) Eu nessa altura conduzia uma camioneta de 3500kg, daquelas camionetas de caixa aberta, para entregar as tais obras que os rapazes do CASI faziam. E fui prá frequência, levei a camioneta. Tinha toldo, meti as malas lá dentro. Houve paralisação de aulas, não houve frequências nenhumas e, portanto, a polícia viu as camionetas, viu as malas. Comigo tinha um casal que eram os donos das malas, que ela era francesa ele tinha sido meu colega do curso do Seminário, o Jorge Vilaça. E pronto levaram-nos. Quando eu tento arrancar com a carrinha, o Jorge Vilaça e a Dominique, a companheira, entraram para dentro, para a cabine. E dispararam dois carros, um da frente outro de trás e encurralaram-me. Fiquei a olhar. Mandaram sair o casal. E meteram-se os polícias lá dentro e mandaram-me conduzir a carrinha para (...) - no fundo da Universidade (...) naquela rotunda de Entrecampos, não é? Havia aí um posto de polícia, não sei se ainda há se não. Fui para ai. E daí a carrinha desapareceu, ninguém me viu mais. Fui pra António Maria Cardoso. Andaram uma semana à minha procura, procuraram o Tejo a pensar que eu tinha caído dentro do Tejo... Até que há um amigo, um colega que passa pela António Maria Cardoso e vê a carrinha, conheceu e foi dizer a Vila Franca o que viu lá e que eu estava preso, pronto. 

Essas malas eram porquê? Havia necessidade de fazer entrar em Portugal coisas de uma forma clandestina e nós à procura de vários processos. Um deles era despachar malas, mas ver em que estação é que as malas não eram abertas. Estas vieram, estas que eram do Jorge Vilaça e da Dominique, que eu fui levantar no dia de manhã e ia fardado de Padre, que era para, enfim, para incutir mais crédito. E eles [os despachantes] queriam...: «Mas isso não pode ser assim, isso tem que ser aberto». E eu disse: «Mas, aberto como? O que vem aí é de um colega meu, que vem de Paris, são livros dele. E eu tenho agora um exame na faculdade… Tenho agora um exame na faculdade às 9 horas tenho de me ir embora». E tanto insisti que os homens deram-me as malas sem as abrir. Mas verificamos que elas aí seriam abertas. É com essas malas que eu sou preso. E como eles andavam à procura de outras malas - malas que hipoteticamente passariam com explosivos. Apanharam-me essas. Não podia negar que não andei com essas malas. Eram só essas. Eles abriram as malas e só viram propaganda, revistas, que eram de facto textos de intervenção, portanto eram feitos para a LUAR mas eram impressos lá e vinham para cá. Era isso, é subversivo, mas enfim não há explosivos. Havia roupas… 

Aí foi muito difícil porque era a minha primeira, o meu batismo de prisão. Nem imaginava o que é que aquilo era, nem como é que era. E pronto, houve aqui uns momentos muito difíceis. Quer dizer, sou uma pessoa... perco o medo quando estou a agir, mas depois quando me prendem fico em pânico. Fiquei um bocado em pânico. E em pânico porquê? Porque nesta minha primeira prisão, que foi a uma segunda-feira, nunca mais me esquece. Na sexta-feira anterior tinha recebido uma guia que vinha de Lovaina trazer-me uma carta também de um ex-colega de curso de Seminário. Leio a carta e a pedir-me para ir a Alhos Vedros logo que pudesse, ver se arranjava uma bicicleta pra uma família que eram pais de uma militante que tinha participado no assalto ao banco da Figueira da Foz, portanto os pais não podiam ter trabalho e queriam ir pelo Alentejo abaixo ver se arranjavam trabalho e precisavam de uma bicicleta. Eu guardei a carta e deixei-a em cima da secretária, no meu local de trabalho, onde eu dormia. O meu quarto era quarto e escritório lá nesse CASI também. Quando eles me começam a interrogar, não no dia em que me prenderam, mas no dia seguinte. E dizem-me assim: «Pronto, nós fomos ao seu quarto e encontramos as provas de tudo o que precisamos, portanto escusa de perder muito tempo a negar». E aí eu lembrei-me da carta e pensei: estou desgraçado [Risos]. Nunca mais daqui saio. Pronto, entretanto batem à porta, a brigada, que era o Chefe Capela e o Inspetor Tinoco. Saem e estiveram aí uma hora sem aparecer. Era o PIDE de guarda que me sentiu um bocado perturbado: «Eh, você tenha calma e tal, mas fale rapidamente se não eles dão cabo de si». 

Nem o podia ouvir falar, estava tão perturbado. Quando voltaram começaram a conversa, mas já de outra maneira, a dizer: «Portanto como estávamos a dizer há bocadinho, encontramos lá os stencils da propaganda política que anda a ser distribuída por Lisboa». Eu aí respirei. E nunca falaram da carta. (...) O meu grande drama era a carta. Stencils disse: «Olhe, se lá estavam...». (Stencils porquê? Porque havia uma máquina, uma policopiadora já elétrica, já avançada, que eu tinha comprado ao Padre Felicidade aqui no Mosteiro dos Jerónimos quando ele deixou a paróquia. Levei-a para Vila Franca. O Pedro Soares, esta gente toda depois viu a máquina e enfim, ainda a utilizou. Mas dentro das gavetas estavam de facto stencils e eu nem tive tempo de ver o que estava dentro das gavetas. Portanto e eles encontraram e disse: «Olhe se lá estavam, é porque alguém os lá pôs. Ou os senhores os puseram para me incriminar, mas eu não tenho (...)». Assim passou a primeira semana: confessa, não confessa; nega, não nega. Esta foi a primeira semana. 

Portanto, várias vezes me soltavam no mesmo dia, sem perguntar se eu tinha dinheiro para a viagem ou não. [Risos] Era assim. Naqueles tempos era assim. 

As outras, olhe, uma vez foram-me buscar ao cemitério, tinha acabado de enterrar um morto e foram-me buscar a cemitério, mesmo de batina e tudo. Uma das vezes foram-me buscar por causa do Pedro Soares, porque ele vivia lá no tal 34 e tinham encontrado (...) até devem ter exagerado. Encontraram uma divisão, que era a despensa, juncada de Avantes e levaram-me para a António Maria Cardoso pra justificar aquilo. Eu felizmente não sabia: «Não sei, não sei, não sei». Uma outra, foram encontrados uma série de documentos, desses tais documentos de propaganda e houve um jovem, que já morreu, coitado, há pouco tempo, que disse que eu é que os tinha dado. Portanto foram-me outra vez buscar para justificar isso tudo. Era assim, eram prisões rápidas. Uma vez foram-me buscar a uma coisa chamada, um restaurante chamado Flora, que era também do CASI. 'Tava a almoçar com o Prior, chamaram-me à porta. Caí na asneira de vir, ingénuo. E olhe: «É só para ir aqui ao posto, justificar umas coisas Já volta». Nunca mais voltei, fui outra vez para... era assim que eles faziam as coisas. 

Ainda tinha um bocado a proteção da Igreja e eles tinham algum, enfim, algum cuidado. 

Eu saio da prisão e continuo a pensar que é preciso fazer alguma coisa. Portanto saio da prisão em julho de 72 e as coisas começaram a complicar-se não é? Nessa altura eu já não vivia com a mãe do meu filho, ou melhor ela é que já não vivia comigo (para sermos mais corretos). Portanto estava, continuava a trabalhar no Sindicato dos Metalúrgicos, donde tinha saído para a prisão. Eu ainda tentei o ensino em estabelecimentos particulares, só que era obrigatório pedir uma coisa chamada Diploma do Ensino Particular. E quando ia o requerimento para o Diploma, no Ministério, logo viam a ligação à PIDE, portanto os colegas despediam-me logo: «Olhe desculpe lá, gostamos muito do seu trabalho…» - estive a dar latim e grego ali no Rato, num colégio que havia ali na Rua de Salitre, depois vim aqui pra Belém. Quer dizer, logo que eu pedia o Diploma do Ensino Particular para regularizar a situação era despedido, portanto. Ainda comprei um pedacito de terra ali perto da Azambuja assim: «Bem, ao menos vou plantar alfaces e feijão para me governar». Quer dizer, era assim que a gente pensava na altura. 

Havia uma coisa em que eu também estava envolvido e tentei envolver jovens de Vila Franca lá da Paróquia, que era a Capela do Rato. Para dizer de facto que no sector Católico havia gente que estava alerta e que lutava contra as injustiças que via, tanto sociais como, de facto, na guerra. Os jovens estavam a ir pra guerra e... Havia a Capela do Rato e há um célebre dia em que eu vou para a Capela do Rato, mas aquilo já tinha, já a polícia tinha intervindo lá. Já não havia... e ainda bem que não cheguei a tempo. Safei-me dessa também. (…) Quando a malta foi presa lá na Capela do Rato em dezembro de 72. (...) Era a missa, a chamada Eucaristia, mas depois era pra discutir o problema da guerra. Que não se podia. De resto, antes tinha-se feito uma ocupação da Igreja São Domingos. O Papa Paulo VI instituiu o Dia Mundial da Paz. E no primeiro Dia Mundial da Paz nós fomos para a Vigília da Paz. Nós enchemos a igreja, muita gente veio de Vila Franca e tudo. Na Vigília da Paz e no final é até o Fanhais mais uma Conceição Moita, que também morreu o ano passado - esta gente vai morrendo, é normal.  Vamos ter com o Bispo, com o Patriarca e a dizer-lhe: «Pronto, fez-se a Vigília da Paz. Nem uma palavra sobre a Guerra Colonial, a que estamos há tantos anos. Nós agora vamos continuar a nossa vigília contra a guerra». O Patriarca disse: «Nem pensar, vão-se embora», e a gente ocupou aquilo. O Prior era o célebre Cónego Asseca, destes títulos nobiliárquicos e lá ficamos até sermos corridos lá pra fora, já de Madrugada. Pronto, e estes gestos, estes atos… portanto no sector Católico havia, de facto, grandes movimentações. 

Gostava que os jovens tomassem consciência de que independentemente das suas filiações partidárias, tomassem consciência da importância da bondade. De resto o José Saramago diz que: «Se houvesse bondade, a justiça não era precisa. Nem a religião». Portanto, de facto a bondade é um fator importantíssimo, também muito divulgado pelo Papa Francisco, falando que Deus é exatamente isso. Que os jovens se empenhassem de uma forma dada, doada ao bem público. Mais do que… Hoje fala-se muito do poder, poder local, poder local. O poder é de facto a palavra que corrompe. Portanto, quando as pessoas se sentam nas cadeiras para serviço público tudo vai, quando é para poder, é o que a gente vê: ou estagnação, como na cidade em que eu vivo, Santarém, ou então corrupção. Que se combata a corrupção, que se ponham os bens e os dotes pessoais ao serviço do bem público."