Nome: Apolónia Maria Pereira Teixeira
Ano nascimento: 1950
Local do registo: Barreiro
Data do registo vídeo: 19-01-2022

Transcrição

"Nasci numa pequena aldeia que se chama Parragil, (…), do concelho de Loulé. A minha origem: sou filha de pequenos comerciantes. Somos seis irmãos: três de um primeiro casamento de meu pai, os três de um segundo casamento. O meu pai era viúvo quando casou com a minha mãe. Eu sou do segundo casamento.

Com oito anos de idade os meus pais foram para o Litoral, para Quarteira. Instalaram-se em Quarteira. Portanto, com 8 anos deixei a aldeia onde nasci e fui então para Quarteira. O meu percurso fez-se nesta ligação do mundo rural com uma zona urbana em expansão, no início do turismo.

Fui estudar para Loulé, fazer o meu ensino. Fiz a primária, parte na aldeia, depois terminei a primária em Quarteira e fiz o ensino secundário em Loulé. Loulé que tinha apenas, na altura, uma escola industrial para rapazes e raparigas. Naturalmente, na nossa época, separados. [Para] os rapazes eram cursos técnicos de máquinas e só havia um curso para as raparigas que prosseguiam estudos, que era o curso da formação feminina. Foi o meu curso de formação feminina. Na época, para o regime, era o curso ideal para as mulheres: serem boas donas de casa, boas cozinheiras, enfim. Prosseguir os estudos naquela região, sobretudo naquela zona, era a única alternativa que existia para as raparigas, exceto um colégio particular, bem caro naturalmente.

Eu termino o secundário em [19]67 / 68 e, na altura, os dois últimos anos já com uma influência. Também é uma época em que os jovens começam a despertar, sobretudo ali no Algarve, começam a despertar para outro tipo de relação social em termos de troca de impressões, de música. O próprio turismo trouxe-nos algumas influências. E também influências da própria televisão, rádio. É a música, é o convívio. E depois a influência dos próprios jovens que estavam a estudar em Lisboa e que regressavam nas férias e tinham influência sobre os jovens.

Portanto, começa a haver um certo despertar e a própria troca de impressões, de leituras, livros. Eu lembro-me que no último ano em que eu terminei o secundário em Loulé, foi quando eu li dois livros que me marcaram: A Mãe, do Gorki e Os Subterrâneos da Liberdade, do Jorge Amado. Foram dois livros que me marcaram, emprestados por um jovem estudante universitário, que já tinha aquela influência, outros horizontes relativamente aos jovens da província. Hoje o Algarve não tem nada a ver com o Algarve daquele tempo.

Isto a propósito de chegar ao final do ensino secundário, do curso de formação feminina, e colocar-se a questão: e agora, que fazer? O meu irmão não era assim muito amigo da escola, era um jovem que tinha uma outra filosofia. Era mais para empreendedor, seguindo um bocado a veia do pai, de comerciante. E eu era a rapariga que gostava de estudar. Eu dizia aos meus pais: «Eu quero continuar a estudar». E a minha mãe dizia: «Vamos».

O que é que as raparigas que prosseguiam estudos naquela época, qual era a oportunidade? Também com algum sacrifício dos pais, naturalmente. Era de seguir o magistério primário, que existia em Faro. Ser professora primária.

Como a minha mãe tinha sido [professora], no tempo de juventude, naquela aldeia era quem dava escola. Tinha alguma escolaridade, era uma jovem muito curiosa e preparava na aldeia - não havia escola ainda na altura - preparava as crianças da aldeia para irem fazer exame de terceira classe e de quarta classe a Loulé. Portanto a minha mãe tinha uma sala de aula por conta própria. Então tinha sempre esta ideia. O objetivo dela na altura era seguir o Magistério, mas, entretanto casou, as coisas alteraram. Então depositou em mim o seu objetivo de vida. Então a Apolónia Maria ia para o Magistério Primário.

Mas a Apolónia Maria não tinha como visão ficar no Algarve. Queria conhecer novos horizontes, ter outros projetos. E fui muito influenciada por um avô materno que dizia sempre: «A Apolónia Maria tem muito jeito, tem muita habilidade de mãos. Gosta de desenhar, gosta de escrever». Então disse assim: «Vais ser…» (ditou-me de algum modo um percurso que eu queria seguir) «…engenheira. Tu vais ser engenheira». Porque eu era muito maria-rapaz quando era miúda, então a única oportunidade era fazer as secções preparatórias em Lisboa e seguir o Instituto Industrial - cá vem a questão do Instituto Industrial - que era o ensino médio, que era o percurso lógico para quem vinha das escolas industriais, das escolas técnicas.

Houve uma certa tensão, porque ainda por cima, naquela época, uma rapariga vir para Lisboa, sem família. Os rapazes ainda... Mas uma rapariga, vir sozinha para Lisboa. Lisboa era assim um mundo, para uma rapariga, que era a perdição, havia aquela mentalidade. Eu sou muito determinada. Fui desde miúda muito determinada nas minhas opções, e defini a minha fasquia. «Eu vou. Quero seguir. Vou estudar para Lisboa. Se não me deixarem ir agora que estou com 18 anos, quando tiver 21» - que na altura era quando se atingia a chamada maioridade, podia decidir o que queria na vida - «Quando tiver 21 vou para Lisboa, vou trabalhar e vou estudar». E fiz o que eu chamo greve de fome. «Ou vou estudar para Lisboa ou não como». O que é certo é que convenci os meus pais. Convenci os meus pais, lá conseguiram.

Então vim estudar para Lisboa, porque encontrei uma solução intermédia, de uma prima casada com um Sargento do exército, que morava da Trafaria. Uma prima direita com quem nós tínhamos uma boa relação e que nesse ano ele tinha vindo da Guiné, julgo que tinha estado na Guiné, e tinham sediado na Trafaria.

Em [19]68 / 69 vim estudar para Lisboa, fazer o primeiro ano nas secções preparatórias da Escola Josefa de Óbidos, em Lisboa, em Campo de Ourique. Fiz esse primeiro ano fazendo esta travessia Trafaria - Lisboa. Só que o meu primo foi entretanto mobilizado de novo para África, então eles foram embora no meu segundo ano. No segundo ano colocava-se a questão aos meus pais: «Apolónia, como é que é em relação ao segundo ano das secções preparatórias?». A solução que eu encontrei foi um lar de freiras [Risos] na Ferreira Borges, não sei se conhece a zona. Era relativamente próximo, soube desse lar ligado a um colégio de freiras da Guarda, que tinham este lar para apoiar as raparigas, as jovens, que vinham do colégio e que prosseguiam estudos - filhas da burguesia, da camada média da Guarda.

Entretanto lá fui para o lar de raparigas estudantes. (...) Havia duas que eram trabalhadoras-estudantes e depois o resto eram tudo universitárias. Um lar muito elitista. Aí eu comecei logo a sentir esta questão das desigualdades e da discriminação. Tinham duas jovens trabalhadoras, órfãs, protegidas daquela congregação e faziam delas uma coisa... Não podiam falar com as meninas, uma proibição completa de relação entre as jovens e as estudantes que estavam no lar. Eu comecei logo a contestar esta questão, como deve calcular. Ou seja, começo a ganhar alguma consciência relativamente à questão destas disparidades, destas desigualdades, a forma como as coisas estão organizadas, o percurso. Eu também tinha colegas na aldeia que nunca tiveram a oportunidade que eu tive, que mesmo assim eu tive alguma oportunidade, a maioria das jovens não tinha, não conseguiam estudar.

Comecei a ir com uma outra colega, que era muito extrovertida, da Faculdade de Ciências, e então começamos a ter contactos com jovens estudantes, nomeadamente jovens estudantes do Instituto Industrial - para onde eu iria no ano seguinte - um deles o Armando de Sousa Teixeira. O Armando de Sousa Teixeira que, logo na fase inicial, claro que era apenas um conhecimento, a curiosidade, que aparece já como dirigente estudantil.

Ele era presidente da Associação de Estudantes, associação essa de estudantes que tinha sido encerrada. O Instituto Industrial estava num processo de mudança para as novas instalações, para Chelas - Buenos Aires ia terminar. E portanto, os jovens associativos, dirigentes associativos, juntavam-se muito na esplanada da Estrela. Começo a envolver-me um pouco neste grupo de conhecimento, de troca de impressões. Depois é o que uma pessoa vive, aquele período era o movimento da libertação. Os acontecimentos, as questões do Marcelo Caetano, o Salazar e a queda da cadeira, todas estas coisas. Não me esqueço a questão de o Papa ter recebido os movimentos de libertação - aquilo era motivo de conversa entre os jovens.

Entretanto nesse período, em meados… no primeiro período, já no ano de 70, há uma delas que anda na Faculdade de Ciências e que vem com o nosso grupo dizer: «Vamos convencer a Madre a deixar-nos ir a uma sessão de convívio na Associação de Estudantes na Faculdade de Ciências». E convencemos a Madre a deixar-nos ir a uma sessão de convívio na Associação de Estudantes na Faculdade de Ciências, desde que levássemos uma freira connosco a acompanhar-nos. Claro que apanhámos um raspanete da Madre nesse final de ano, eu e a da Faculdade de Ciências. Eu porque andava a desviar as jovens de bem e a da Faculdade de Ciências porque foi considerada responsável por levar o resto das meninas para esta iniciativa da Associação de Estudantes. E então fomos convidadas a sair. Não fomos expulsas, como elas diziam elas não expulsavam ninguém. Mas fomos convidadas a sair no ano seguinte.

Portanto eu no ano seguinte vou com essa minha colega da Faculdade de Ciências, que nessa altura muda para o Instituto Industrial também, deixou a Faculdade de Ciências, e alugamos um quarto na Frei Miguel Contreiras. Os meus pais: «Sim senhora». Os meus estudos tinham corrido bem, passei para o Instituto Industrial e no ano de 70 / 71 entro no Instituto Industrial.

Entro no Instituto Industrial, já em Chelas, e é um primeiro ano, meu Deus, de agitação. Porque abrem as novas instalações, com excelentes instalações, sem dúvida, mas já eu conhecia os dirigentes associativos ligados à Juventude Comunista, como o meu marido ainda há pouco referiu, organizadores, lutadores. Todo o processo inicia com a luta pela reabertura da Associação de Estudantes do Instituo Industrial.

Foi um processo de luta, de consciencialização, de repressão. É um processo em que desde a entrada da polícia de choque, a proibição de qualquer reunião, de qualquer intervenção, de perseguição aos estudantes, aos jovens e às jovens que de algum modo se envolvessem naquele processo. Fizemos uma reunião geral de alunos em que reivindicávamos a abertura da associação, as instalações, comissão de sebentas, a cantina - não tínhamos cantina! Abrem umas instalações sem cantina, sem nada. Em que as refeições são precárias, ainda por cima numa zona de Chelas, em Cabo Ruivo, onde não há grandes alternativas. Tudo aquilo foi um processo de mobilização e de envolvimento dos estudantes fantástico. Foi um entusiasmo e um envolvimento. E uma direção retrógrada, reacionária, conservadora. O diretor, o Bettencourt, um homem execrável que tudo fazia para perseguir, para reprimir.

O meu primeiro ano salda-se por: uma reunião geral de alunos, estava eu a dirigir. Quem era o meu colega de direção mesa? O Álvaro Pato - que toda a gente conhece - é meu colega, mas ele já está a trabalhar, já está numa fase de trabalhador e estudante. É ele que está a dirigir e sou eu que estou a secretariar essa reunião geral de alunos, que é proibida. Temos ordem do diretor para encerrar o pátio, mas aquilo tinha uma adesão de estudantes extraordinária. Estávamos exatamente ali a debater os nossos problemas, as nossas reivindicações, as nossas exigências e o senhor diretor do Instituto Industrial manda e proíbe, fazendo a ameaça de que chama a polícia se não acabarmos com a reunião. O que é certo é que não acabámos, continuamos a debater os nossos problemas. E o diretor chamou mesmo a polícia de choque, já era habitual na Academia de Lisboa, já tinha acontecido no Técnico, já tinha acontecido em Direito, portanto em várias faculdades da Academia de Lisboa, para não falar de Coimbra ou Porto.

É que ainda por cima foi mesmo um massacre: a polícia de choque entra e o diretor mandou fechar os portões. Aquilo foi uma coisa impressionante. Aquilo tinha dois grandes corredores: o corredor para o lado da Química e o corredor para o lado da [engenharia] Civil. Entretanto os estudantes, com a entrada da polícia de choque que começou a desancar forte e feio, fugiram, uns para um lado e outros para outro. E eu fugi para o lado esquerdo. Vem um grupo de polícias, faziam mesmo uma barreira em andamento atrás dos estudantes. Eu a correr nunca fui muito boa e só pensei: «Pronto, vou levar». Eu já sentia o cassetete na cabeça. E a minha atitude reativa foi: em vez de levar... e voltei. O que é certo é que eu volto e por isso é que eu vejo aquela massa atrás. Eu passo por eles, pela polícia de choque e ficam assim dois por onde eu passo, porque eu fiz isto imediatamente quando tinha o cassetete quase em cima da cabeça, é a sensação que eu tenho. Faço repentinamente, eles ficam tão atarantados que vão para trás da massa de estudantes que corre, ficaram ainda na dúvida se iam atrás de uma só pessoa. E safei-me e voltei a descer.

Entretanto há um grupo de polícias que vem atrás. Eu só sei que tinha um casaco que se usava na altura, um saia-casaco, usava-se muito com a boca-de-sino. Então tinha uns botões de metal brancos, grandes. Eu consegui trepar, com a ajuda de um colega, que agora já sei quem foi, que me ajudou a trepar pela rede de proteção. Trepei pela rede acima, com a ajuda dele. Foi a minha sorte, porque já vinha a polícia a desancar nos estudantes que estavam a tentar saltar a rede. Foi a minha sorte. Fiquei sem botões, fiquei sem nada, que aquilo roçou.

Mas isto a propósito da tomada de consciência. Logo a seguir, havia já um conjunto de estudantes que estavam suspensos, como eu lhe disse, mas depois continuamos o processo. Fazer os meetings, meetings relâmpagos. E depois, mais tarde, pouco tempo depois, o que é que acontece? Planificámos a continuação da luta, com organização a nível de comissões de turma, envolvimento dos estudantes. E há um dia que eu estou com a minha colega Isabel a distribuir o comunicado que tínhamos feito para a organização de comissão de estudantes. Nessa altura o PIDE Silva, que era os olhos e os ouvidos do diretor, vem-me chamar e à colega para irmos ao diretor.

Fomos ao diretor, claro, suspensão. Suspensas. Praticamente a partir daí a minha vida passa a ter uma outra direção. Suspensão. Eu tive cerca de 3 meses em casa, para apanhar 8 dias de suspensão, mas estivemos a aguardar o processo.

Entretanto entro para a Juventude Comunista em 1970, nesse mesmo ano. É um ano que marca a minha vida. Envolvo-me em toda esta dinâmica, todo este processo de luta estudantil. A academia de Lisboa tinha entre 70 e 74 todo um processo, embora todo muito contraditório com o surgimento daqueles movimentos esquerdistas radicais, mas era uma vida completamente de paixão, de revolta perante tudo o que acontecia e que nos íamos apercebendo. 

Nós temos um apoio do Movimento Estudantil, sobretudo da Associação de Estudantes do Técnico. Esse apoio reside na cedência de instalações para que continuemos a organizar a luta dos estudantes do Instituto Industrial de Lisboa. E, portanto, integramos em todo o processo, toda aquela movimentação, as reuniões interassociações, os plenários, as reuniões gerais de alunos, os plenários na Cidade Universitária, a polícia, a polícia de choque. As reivindicações, a repressão. São momentos que uma pessoa recorda. Regressar ao passado é qualquer coisa de fantástico em toda esta consciencialização que se vai tomando perante um sistema altamente repressivo que nos condicionou e que nos procurava condicionar a nossa vida, a ânsia de liberdade que tínhamos, as reformas que queríamos ver feitas nesta sociedade, a justiça, a liberdade. A liberdade era uma coisa... Lutar pela liberdade! Então tudo girava à volta deste processo.

O primeiro processo que eu tenho com a PIDE é em 1970, em que eu estou no quarto alugado com a colega da faculdade, a Isabel, e recebo uma contrafé para me apresentar na António Maria Cardoso, numa data logo seguinte. Fico sem saber: «Uma contrafé?» Há uma colega do Instituto, que não a Isabel, chamada [Maria] Suzel, que nos comunica que também recebeu uma contrafé, para ir prestar declarações à PIDE na António Maria Cardoso. Claro que ficámos todos: «Mas o que é que se passa? O que é que aconteceu?». O único acontecimento que tinha ocorrido comigo e com a Suzel, com esta nossa colega do Instituto, era [que] tínhamos ido à Faculdade de Direito imprimir um documento desta tal Comissão Democrática Estudantil. Entretanto tinha sido presa a direção, dirigentes da Faculdade de Direito. Portanto era a única situação em comum que nós associávamos.

Então lá fui para a António Maria Cardoso, com o meu marido, que já era meu namorado, que me acompanhou para prestar declarações. Bem, foram declarações em que me acusam de ter ido à Faculdade de Direito imprimir um documento subversivo. Entretanto tínhamos combinado as duas, se fosse esta a situação, que não sabíamos o que era, íamos negar, negar até ao fim. Tomámos esta decisão: «Vamos negar, é a única forma de nos defender-nos, vamos negar». Neguei. Foi o primeiro contacto que eu tive com a PIDE propriamente dita. «É mentira, é mentira, é mentira». Dois PIDEs permanentemente naquela pressão.

Depois houve ali uma cena, uma encenação. Já era tarde, passar com umas marmitas de refeições, com ameaças de que ficaria presa. Toda esta encenação. Depois deixavam-me sozinha. Há uma altura [em que] abre-se uma porta e quem é que vem com dois PIDEs - um PIDE de cada lado - o colega que tinha estado connosco, que nos tinha apoiado e que tinha sido preso. E que confrontado com a pergunta: «Conhece esta rapariga?». [Respondeu]: «Sim». «Foi esta?». «Sim». E eu neguei. A imagem que eu tenho é uma imagem de tristeza e ao mesmo tempo sentir a humilhação daquele jovem. Uma pessoa nunca sabe até onde chega a coragem, controlar o medo. Não sabe. Ficamos sempre sem saber até onde vai o nosso limite. Aquilo é pavoroso. Quem é que não tinha medo? Toda a gente tinha medo da PIDE. A PIDE matava, a PIDE torturava, a PIDE perseguia. Aquela imagem daquele jovem, que eu não esqueço, não consegui ter uma reação de critica. Eu tive uma reação de pena. O sentimento que me veio - e eu tenho este sentimento ainda hoje - é ter tido pena.

Eu continuo a dizer que não: «Não. É mentira, é mentira. Não é verdade». E vão buscar a Suzel. Então juntam-nos as duas. Eu aí fico muito mais à vontade porque a Suzel continuava: «É mentira. Não é verdade!». Portanto nós desmentimos o que ele dizia. Levaram-no embora. Ameaçaram-nos, claro. Disseram claramente: «Não ficam agora, mas vão [voltar], porque não nos enganaram. Vocês são isto, são aqueloutro e dentro de pouco tempo estão cá outra vez». 

Isto fez com que tivesse logo aquela mobilização, organização de defesa. [Aconselharam]: «Vocês agora não podem ir para casa, porque eles agora podem ir buscar-vos. Isto foi muito sério». Então arranjaram-nos um apoio, um chauffeur da Carris, que morava em Lisboa, naquela parte baixa de Campolide, que era ainda primo desta nossa colega. E tivemos lá com todo o apoio, (…), ainda por uma semana. Ali a ver como é que as coisas evoluem.

Depois as coisas acalmaram, viemos embora, mas está a ver como é que toda esta... porque fazer isto também era um ato de coragem. Quem apoiava, quem se disponibilizava para testemunhar a favor de um preso político era um ato de coragem e às vezes pagava-se com a própria liberdade. Isto são registos que ficamos para a nossa vida.

Entretanto enamorei-me do marido, claro. Enamorei-me, apaixonámo-nos. [Risos] Portanto também houve aqui uma opção de vida em comum que fizemos e casámos relativamente cedo. Casámos a 5 de outubro de [19]71, nas vésperas dele ir para a tropa. Tudo isto é tão rápido, mas ao mesmo tempo muito intenso. Ele vai para a tropa, entra em Mafra, a 7 de outubro de [19]71. Dois dias. A minha lua de mel foi um dia.

A nossa lua de mel - eu vou contar esta - foi no dia 5 de outubro. A família foi ver a revista, foi para o Parque Mayer [Risos] e nós fomos à procura de uma sessão que tinha sido marcada sobre o 5 de outubro - que também era proibido. O Regime proibia as comemorações do 5 de outubro, do Dia da República. O aniversário da primeira república. Resumindo e concluindo: chegámos lá, estava a porta fechada. Foi a nossa forma de nos organizarmos.

Os meus primeiros contactos com a atividade político-partidária - que eu nunca entrei na clandestinidade, mas tinha encontros clandestinos - os meus primeiros contactos são para receber propaganda clandestina e entregá-la e outra propaganda clandestina para divulgar para os estudantes.

Tive sempre o mesmo pseudónimo. O meu pseudónimo era Luciano. Foi-me atribuído o pseudónimo Luciano e até [19]74 nunca me alteraram o pseudónimo. Sabe que ninguém era conhecido pelo nome próprio. Mesmo os funcionários clandestinos não nos conheciam pelo nome próprio. Eu iniciei na juventude comunista, na juventude do PCP e para não haver qualquer hipótese de identificação de rapazes e raparigas só havia pseudónimos masculinos. Não havia femininos. Se calhar essa foi a razão que também me defendeu nalgumas situações mais complexas.

Entretanto o meu marido foi para a tropa. Há todo este processo da tropa, de convulsão. A nossa vida é uma convulsão permanente até [19]74. O processo dele em Mafra - que ele já estava identificado como Politicamente Suspeito, PS. Há o Politicamente Suspeito e há o Politicamente Ativo. Na altura as fichas, a que nós tivemos acesso após o 25 de abril, em que ele tinha PS e PA, era as duas coisas. O Politicamente Ativo a vermelho, que ele está identificado.  E é mobilizado para Moçambique.

Entretanto tivemos uma filha em junho de [19]72, nasce-nos a nossa filha Sofia Catarina. O meu marido fez um poema à filha, isto a propósito. Nós tínhamos uma ardósia em que num dos lados tinha «5 de outubro» - que foi o dia em que casámos - «Viva a República», e no outro lado tinha «Sofia Catarina, 28 de junho. Viva a Sofia Catarina». E depois fez-lhe um poema que diz (mas não estava na ardósia): «Catarina era ceifeira / Sofia trabalhadora / Lutou e morreu a primeira / a outra vive lutadora». Isto foi o poema que ele fez à filhota. 

Vai para Moçambique e é preso logo um mês depois. Já tinham toda a informação da suspeita, aliás, ele não era só suspeito, ele tinha sido denunciado por um colega de tropa. Portanto isto tudo é um processo... Ele tem a prisão no norte de Moçambique. Eu sei da prisão dele através de um telegrama que recebo em casa - entretanto vivia com a sogra à beira da praia. Esse período era um período em que não havia capacidades nem meios para podermos ter vida própria. Recebo um telegrama a dizer apenas laconicamente: «Detido hoje. Darei notícias». Fiquei preocupada sem saber. «Detido? O que é que aconteceu, o que é que não aconteceu». Ninguém sabia de nada, não sabíamos que tinha havido aquela prisão. Então a minha preocupação foi ver o que é que tinha em casa, o que é que não tinha, embora nós fossemos muito cuidadosos em relação à documentação - tínhamos sítios em que escondíamos material da propaganda clandestina e apoios espetaculares da minha sogra. Eu tenho de fazer este registo, porque a minha sogra era analfabeta, mas era uma mulher extraordinária.

Desde a primeira hora, porque me marcou muito aquela Mãe do Gorki, transferi para ela de algum modo aquele sentimento de uma mulher excecional em termos de consciência, de apoio ao filho. E ela escondia-nos a propaganda. Primeiro ao filho, depois fui eu. O filho foi para a tropa, fui eu continuando a fazer. Propaganda que eu trazia, que não podia ficar em casa, ela escondia em sítios que tinha, muito próprios, fora de casa. De forma... sem questionar, sem nada. Uma coisa fantástica. Eu tenho que prestar esta homenagem à minha sogra que faleceu há pouco tempo com 100 anos.

Falta-me aqui um pormenor, quando me integro em todo este processo, que nós chamamos semiclandestino de algum modo, é-me proposto que prepare e que organize um movimento estudantil, uma organização estudantil que se chamava Comissão Democrática Estudantil. Para que os estudantes aí se envolvessem mais noutros tipo de dinâmicas de denúncia do Regime, com ações de rua, com envolvimento já a outro nível, que não fosse só na Faculdade. E eu sou responsável por esta dinamização da Comissão Democrática Estudantil. Entretanto, simultaneamente, com outras atividades no interior da escola.

Esta Comissão Democrática Estudantil tinha muito contacto com a Comissão de Socorro aos Presos Políticos. E quem era o meu contacto? A Cecília Areosa Feio e o António Areosa Feio, o marido. Sobretudo a Cecília, que eu registo como uma mulher extraordinária. Aliás, foi considerada a mãe dos presos políticos. Tive uma ajuda excecional. Puseram-me logo em campo quer na Comissão de Socorro aos Presos Políticos, quer nas próprias associações de estudantes, nomeadamente na Associação de Estudantes do Técnico.

O Armando tinha sido dirigente associativo, presidente da associação do Instituto Industrial, com uma excelente relação com o Técnico. E, entretanto, os dirigentes de então foram extraordinários (…). Havia uma reunião geral de alunos no Técnico e numa dessas reuniões gerais de alunos, eu não sabia o que é que ia acontecer ao Teixeira. Estava em África, tinha sido preso. Dois dias depois de estar na prisão - dois dias de eu receber o telegrama - a PIDE vai fazer busca a casa da minha sogra. Aí é que eu tive a certeza que tinha sido prisão política, porque a detenção uma pessoa fica sempre na dúvida, se foi detenção militar não foi, o que é que houve. Mas a partir do momento em que eles fazem uma busca a casa da minha sogra, toda a família ficou a saber.

Ele é preso, é transferido para o campo de concentração da Machava, onde esteve 22 dias, se a minha memória não me falha. E no campo de concentração da Machava há um guarda prisional extraordinário que o põe em contacto com um irmão - eu tenho um irmão mais velho, do primeiro casamento do meu pai, que é Polícia de Segurança Pública em Lourenço Marques, na altura, atual Maputo. O próprio guarda manda-me um telegrama dizendo que ele iria ser transferido para Lisboa, para a PIDE em Lisboa.

Tenho a informação que ele veio, então dirijo-me para Caxias. Vou para Caxias exigindo ver o meu marido. Fecharam-me os portões. Ameaçaram-me que eu ficava lá, que eu ia ficar presa. O que é certo é que tempo depois deixam-me entrar para o ver. E fui ver e então o que me aparece é um homem magro, todo cortado no pescoço - porque lhe fizeram a barba, a barba devia já estar muito grande - olheirento. Uma figura, uma coisa... Tivemos um contacto rápido, naturalmente, mas uma imagem que não esqueço.

E pronto, depois todo o processo de prisão, de apoio.

Depois o que é que temos a seguir? Temos vários acontecimentos que nos marcam. Marcou e recordo como registo muito marcante o assassinato do estudante de Direito no Instituto Superior de Economia, na Associação de Estudantes de Económicas - o Ribeiro Santos. O assassinato do Ribeiro Santos, que abalou toda a academia mais uma vez. Estava a haver um meeting na Associação de Estudantes e o estudante Ribeiro Santos é morto à queima-roupa. Isto movimentou e mobilizou os estudantes da Academia de Lisboa de forma extraordinária para o funeral do Ribeiro Santos, no cimo da calçada dos Santos, aliás, está lá uma placa na própria casa, quem sobe, naquela igreja. Entretanto eu lá fui também, como foram todos. Foi uma mobilização extraordinária.

Na altura, a palavra de ordem era fazer o desfile com a urna às costas pelas ruas de Lisboa. Não permitir que impedissem aquela manifestação de pesar e de revolta pelo acontecimento, pela ocorrência. O Ribeiro Santos é assassinado em outubro de [19]72.

Fomos cercados pela polícia de choque, mais uma vez, que dispararam com metralhadoras. Envolvendo todo aquele largo, a polícia de choque. Lembro-me perfeitamente, estava muito próximo da entrada da casa. Os estudantes a saírem da porta pegaram na urna em ombros, eu só via a cabeça e a urna. A polícia a disparar para o ar e a fazer um cerco, a espancar os estudantes. Aquela massa estudantil a tentar fugir. Os estudantes a segurar aquela urna em ombros. Eu só via a urna andar de um lado para o outro e a pensar quando é que aquilo ia cair no chão. É uma visão que não esquecemos ao longo da nossa vida, foi por pouco. Entretanto são eles próprios [a polícia] que vêm pegar [na urna]. Tiram [a urna], enfiam com brutalidade no carro funerário e arrancam para o cemitério da Ajuda.

Os estudantes fogem, uns para um lado, outros para o outro - eu fico. Nunca mais me esquece desta cena, em que depois - aquilo tem calçada - a polícia de um lado, os estudantes do outro, pedras por tudo quanto é sítio. Os jovens jogavam pedras. E eu no meio caí. Havia uma casa com fruta à porta, caí em cima de uma coisa, fiquei completamente... Nem sei como é que me safei, que houve prisões de estudantes nessa altura, foi um massacre.

No meio disto tudo fui candidata pela Oposição Democrática, pelo distrito de Setúbal em [19]73. Fui candidata juntamente com a Ercília Talhadas pela CDE, pela Comissão Democrática Eleitoral. Isto ao nível das mulheres. Fomos as duas mulheres pelo distrito de Setúbal.

Em [19]73 sou cooptada como responsável da direção regional das estudantes comunistas - uma estrutura clandestina, naturalmente, embora nós fossemos empregadas, tínhamos a nossa vida própria. Então integro a direção regional dos estudantes comunistas da universidade técnica de Lisboa. Estão comigo na altura: um responsável de Económicas, um responsável do Técnico e eu. Somos três. Três elementos desta estrutura, que é uma estrutura restrita. Reuníamos em casas clandestinas, fazíamos o balanço da luta estudantil, programavam-se as atividades. Portanto em [19]73 integro já a estrutura regional da UEC [União dos Estudantes Comunistas].

É nesta altura que, julgo que no início de [19]74, o funcionário com que eu tinha contactos diz-me: «Olhe camarada Luciano, (...) tu tens que, a partir de agora, reduzir atividade. Vamos deixar de ter contactos. Mas de qualquer forma vou-te comunicar que há um processo em movimento que vai levar em termos militares…» - repare bem, isto é-me transmitido nesta altura - «…e que vai levar à liberdade. Vamos ter a libertação dos presos políticos». Então define uma série de ideias centrais, ideias força, daquilo que viria a ser o Movimento das Forças Armadas. Eu achei aquilo uma coisa tão... Sabe que a ideia que eu tive, porque tinha tido contacto com a PIDE, a prisão do meu marido, todo aquele processo violento - que ele teve duas prisões, a civil e a militar - a despromoção, o ir para a guerra outra vez, em vez de dois anos, já levava três. Bem, era todo um processo, que eu achava que aquilo era uma ilusão. E ele diz-me assim: «Bem, eu estou-te a comunicar. Estás atenta. Vai ficando atenta aos acontecimentos, mas temos que deixar de ter qualquer contacto, porque tu foste mencionada por um dirigente comunista…» - com quem eu tinha tido contactos anteriormente a este, clandestinos, o João Resende «… e que falou no teu pseudónimo. Falou em ti, com o pseudónimo». Ele não sabia o meu nome. «Luciano. E, portanto, agora deves suspender toda a atividade. Suspende toda a atividade, não há mais encontros até novas indicações».

Naquela altura eu fiquei sem saber o que é que tinha acontecido, o que é que ele teria dito, esse alto funcionário do PCP, clandestino, que tinha sido responsável por toda a direção regional da União de Estudantes Comunistas. Enfim.

Passou-se este período. Entretanto há aquela história do golpe das Caldas. (...) Vim a suspender toda a minha atividade, mas não suspendi atividade... Suspendi os contactos clandestinos, porque em termos associativos continuei. (...) Lembro-me que no dia 6 de abril, tínhamos recebido um conjunto de documentos de vários colegas e ter andado com outro colega a fazer distribuição de comunicados já sobre o 1º de maio - sobre a preparação do 1º de maio de [19]74.

Entretanto tinha sido convidada, por um colega também, que ia haver uma reunião em Benfica com um conjunto de democratas. É assim que a Apolónia Teixeira vai para a reunião em Benfica. Uma reunião que é feita num prédio em construção, numa cave. Vamos e juntamo-nos ali, eu tenho ideia de serem 60 / 61. [Mostra um documento] Por acaso tenho a ideia que é 61, pela notícia que aqui vem. Esta é uma notícia censurada sobre esse acontecimento.

Somos cercados pela polícia de choque. Estávamos em reunião a preparar toda a agitação para Lisboa. Vem a informação de que estamos a ser cercados pela polícia de choque. Imediatamente é dada a ordem: «Atenção, documentos que tenham, por favor desfaçam-se da documentação. Nada de documentação. Vejam lá o que é que vocês têm. Atenção, todos vamos ter a mesma posição: estamos aqui para preparar a constituição de uma cooperativa. Atenção é isto que vamos dizer todos, vamos manter isto. É uma cooperativa». E somos cercados. Empurrados para dentro das carrinhas da polícia de choque.

Levam-nos para o Governo Civil nessa tarde, isto foi a um sábado, para os calabouços das rusgas. Aquilo era, de facto, deprimente. Metem as mulheres para um lado, homens para outro. Enfiam-nos nas celas das rusgas noturnas habituais de Lisboa. E ficamos ali. Somos identificados e ficamos ali. Nunca mais me esqueço, antes de nos enfiarem nas celas, o pátio do Governo Civil - eu nunca tinha entrado no Governo Civil - ouvi o festival de Eurovisão. Estava a dar o festival de Eurovisão - já não tenho presente se era o Eurovisão, se era o Nacional. Mas não me esquece, dia 6 de abril. 

Estivemos ali todo o tempo até de madrugada sem saber o que é que nos ia acontecer.

De madrugada vêm dar ordem para entrarmos nos carros celulares. Aí já são os carros celulares da PIDE. Entramos em magotes para os carros celulares. Bem, eu só sei que mesmo nesses carros celulares - aquilo é tudo escuro, não tem janelas, tinha só umas frestas - íamos várias mulheres. Aí separavam mulheres e homens. Conduziram-nos para Caxias, ficámos com uma ideia clara para onde é que íamos. Não me esqueço: nunca comi tanto papel na minha vida. Porque mesmo assim houve quem tivesse ainda apontamentos ou alguns documentos. Aquilo tudo escuro, eramos várias - agora já não consigo dizer quantas estávamos sentadas - e então só dizia assim: «Mais este. Come mais aquele». Olhe, eu nunca tinha comido papel - e não foram papéis que eu tivesse, aliás era muito cuidadosa. Aprendi com o meu marido a ser muito cuidadosa nestas coisas.

A única coisa que eu tinha era um pequeno livrinho, era uma coisinha deste tamanho, com várias folhinhas (...) - estou a dizer, porque há de estar no meu processo. Ainda hei de ir consultar o meu processo, que ainda não o fiz. Já pensei em ir à Torre do Tombo consultar o processo, mas ainda não fui. Era assim uma coisa deste tamanho - que lá está - tinha esta coisinha feita em letra miudinha de poemas do meu marido para mim. Eu tinha isto na minha mala. Poemas íntimos, como deve calcular, dois jovens apaixonados, uma vida muito intensa e ele com um jeito para a escrita extraordinário e, sobretudo, uma sensibilidade. E eu tinha aquele, que andava permanentemente comigo, aquele pequeno livrinho de poemas do meu marido e pensei: «Não quero perder isto». E escondi no soutien. Escondo aquele livrinho no soutien e lá vou. Foi a única coisa que me preocupei, quer dizer, eu não fui comer os poemas, naturalmente. Escondi-os. Comi foi os papéis e os documentos, que nem sei o que eram.

Chegámos a Caxias, ao Reduto Norte, de madrugada, sem comermos, sem nada. Uma porta de grades, a abertura daquelas grades. Entrar um corredor, um corredor escuro, frio. Começaram-nos a separar. Enfiaram-me para uma sala. Nessa sala vem um fulano tirar fotografias: posição de frente, posição de um lado, posição do outro lado. Depois enviam-me para outra sala. Carcereiras, duas PIDEs, jovens. Gostava de saber os nomes, mas não sei. Duas jovens. Registei a fisionomia, porque sempre me acompanharam durante o tempo que lá estive. Sempre que me iam buscar eram aquelas duas. Mandam-me despir. Eu tinha um casaco xadrez castanho (...), lembro-me de despir o casaco. «Tire a camisola!» [ordenaram]. Tirei a camisola. «Faz favor, dispa-se toda!» começam-me a falar a gritar «Tira a roupa toda!». E eu tirei a roupa toda, fiquei com as cuecas e com o soutien. «Tira o soutien!». Estavam lá os poemas do meu marido. Tirei o soutien. «Dá cá isso!» sacaram-me aquilo. «Tira as [cuecas]!». Tirei. Fiquei completamente nua, mandaram-me tirar as cuecas. Isto é um embate, que ainda hoje mexe connosco. Mandaram-me dobrar, para espreitar se eu tinha alguma coisa escondida no ânus. Isto é violento. Eu estou convencida que eles sabiam que eu não teria nada no ânus. Isto é violento! (…) Era técnica de humilhação, enfraquecer-nos completamente naquele primeiro embate. É o efeito psicológico. Eu estou convencida que é para efeito psicológico, quem é que vai esconder um documento subversivo naquela altura?

Mandaram-me vestir, cela. Vou para a cela com mais duas colegas, por sinal estudantes, lembro-me perfeitamente do nome delas. A nossa cela é uma cela com três camas: um beliche e uma cama. Uma cela pequena. Colocam-me com duas colegas que foram presas no mesmo sítio, que eu não conhecia. Conhecia uma que era a Áurea Sampaio, jornalista. E a Manuela, uma jovem que tinha sido estudante da faculdade de Direito e que estava em trânsito, curiosamente. Ia casar e estava em trânsito por Lisboa e que tinha ido aquela iniciativa, amiga da Áurea Sampaio. Metem-nos as três juntas. Umas instalações exíguas. Uma pequena casinha de banho com uma sanita minúscula e um lavatório e nada mais. Nem me lembro de mais nada, julgo que tinha ali o sítio onde se comia, uma coisa qualquer exígua. Enfiaram-nos para ali. Ficamos sem nada, nem malas, nada lá para dentro. Iniciou-se assim o processo. 

A Ala das Mulheres. Esta cela dava para as traseiras da prisão de Caxias, do Reduto Norte. Os primeiros dois, três dias íamos falando as três: «O que é que nós fazemos?». Então íamos trocando impressões. «Temos de nos aguentar, temos de ter coragem». E depois era lembrar toda a nossa cartilha. Toda a gente sabe que «Não jures, camarada» - era uma cartilha fundamental. Que desde a primeira hora nós liamos, tínhamos, passávamos a palavra, tentávamos motivar os outros para não desistir, para não desanimar, para ter coragem. Enfim, tudo isto para ganhar forças, resistência, para lutar naquela situação. Os primeiros dois, três dias, enquanto elas estiveram.

Só que ao fim de três dias uma saiu - a Áurea foi a primeira a sair. A seguir sai a outra e eu fiquei sozinha. Elas foram lá abaixo, foram ao Reduto Sul, que é onde eram os interrogatórios. Tudo isto era feito com todo um processo. As próprias portas!... Aquelas portas tinham uma vigia que as carcereiras de vez em quando vinham abrir. Todo o barulho, os sons, a chave na fechadura, aquilo mexia psicologicamente connosco. «É agora? É agora que vamos a interrogatório. É agora que nos vêm chamar». Está a ver? Tudo isto era um processo psicológico e a tentar demolir a resistência do preso político.

O inspetor do processo de interrogatório foi o mesmo do meu marido, o Tinoco. A minha dúvida era o que é que a PIDE sabia a meu respeito. Esta era sempre a minha interrogação, o que é que eles sabem a meu respeito. Eu própria ia criando a minhas defesas. [Mostra um documento] Esta foi a minha ordem de busca e apreensão, quando fui presa vieram a casa da minha sogra, mais uma vez, fazer a busca. Não encontraram nada que me incriminasse. A casa estava limpa, não tinha nada. [Mostra outro documento] Isto foi o que eu fiz e construí em Caxias, enquanto estive presa. Agora há coisas que já não me consigo lembrar, o que é que significam algumas das minhas observações, mas tenho presente como é que eu assinalei as vezes que eu ia a interrogatório - é este sistema que eu faço, está a ver? Tenho um, dois, três, quatro, cinco. Aqui foi só uma passagem. Outra passagem. Está a ver? E depois ainda tenho aqui esta, seis tardes. E depois a minha saída a 24 [de abril].

Depois tenho aqui algumas referências, contei o único recreio que eu tenho. Só tive recreio de meia-hora no dia 23. Não tive nenhuma visita pessoal da minha sogra. Os meus pais viviam no Algarve, da minha sogra não cheguei a ter nenhuma visita, o recreio foi de meia hora - o que tive foi cartas. Eu escrevi e recebi cartas da minha sogra.

O período da solidão, do isolamento, a partir do momento em que as minhas colegas de cela se foram embora eu mantive-me na mesma cela, sem nada. É-nos retirado tudo. Até para escrever a carta nós tínhamos autorização para escrever, desde que fossem só questões de família - avisavam-nos logo: «Só questões de família, não pode dizer nada, se não são retidas». Então eu escrevi duas cartas, que foi as que me foram permitidas, à minha sogra. [Mostra uma carta] Esta primeira carta no dia 15/04/74. E depois escrevi uma segunda carta no dia 21. Foi quando foram permitidas: uma a 15 e outra a 21. Nestas cartas eu pergunto pela família, pela filha. 

Há uma coisa que quero dizer-lhe. Desde sempre, desde que tivemos a nossa filha, que eu a levei a ver o meu marido, o pai, quando ele esteve preso, eu dizia sempre à minha sogra: «Filomena, se eu um dia for presa nunca leve a Catarina a visitar. Nunca, por favor, garanta-me isto». E a minha sogra a dizer-me: «Fique tranquila Apolónia. A menina nunca vai lá vê-la». Esta era para mim a questão fundamental: que ela nunca me levasse, para eu ter a certeza que não teria qualquer efeito psicológico de me estarem a fazer mal à filha. Era uma das formas deles conseguirem, sobretudo as mães, de conseguirem dar a volta. Uma violência. Provavelmente era o meu único ponto fraco para a resistência. Então era uma coisa que estava sempre na minha memória. Eu tinha sempre presente: a minha sogra garantiu-me que nunca a trazia. Então isto foi claro para mim, dava-me força, eu sabia que aquela fragilidade eu não a tinha.

Depois ia para interrogatórios sempre na expectativa de o que é que eles sabiam. Tinha aquela informação que tinha sido denunciada. Não me fizeram qualquer referência, nada, zero. Só me pressionavam com o meu colega, o célebre Álvaro Pato, que tinha sido meu colega no Instituto e que estava preso na altura em Caxias, e passaram a vida a pressionar-me. «O Álvaro Pato...».

E depois foi com a história dos poemas, nem imagina. Aquela história dos poemas - que faz parte do meu processo - eles diziam: «E quem é lhe escreveu estes poemas? E quem é lhe escreveu estes poemas?». E eu, como aquilo era tão íntimo e achei que era uma fragilidade, em vez de dizer que eram do meu marido disse: «São poemas do Bertolt Brecht». Você acredita? Está lá. Eu julgo que eles nem conheciam os poemas do Bertolt Brecht, foi o que me ocorreu. [Disse]: «São poemas do Bertolt Brecht, é um poeta». A minha preocupação era que não me pressionassem, não me humilhassem com algo que era íntimo, que era meu, era da família. Por um lado, a filha, por outro lado, o marido.

Como é que eu ocupava o meu tempo? Repare, eu praticamente todo o resto do tempo fiquei sozinha, sem nada. Eu fumava, na altura era fumadora. Ficaram lá os cigarros. A minha sogra, entretanto recebi uma carta dela a dizer que tinham deixado lá comida, tinham deixado cigarros, todo o apoio e havia toda uma solidariedade nomeadamente aqui do Barreiro, jovens da época, da altura, nomeadamente o Luís Carvalho - um amigo que já faleceu e que ia de propósito entregar à António Maria Cardoso coisas para mim. Mandava à minha sogra. Então uma das questões era: para fumar um cigarro tinha-se de pedir, para escrever uma carta tinha de se pedir, para comer um bolo, uma fatia, um chocolate ou algo que tivessem deixado, tinha de se pedir. Eu as primeiras vezes pedi, mas depois há uma vez seguinte em que a carcereira abre o postigo e insulta-me de tudo: «Sua puta, o que é que você quer? Não tem nada cigarros!». Foi uma coisa, um insulto... E eu, ela fecha-me aquilo, penso: «Nunca mais. Não peço mais nada». Até sair nunca mais pedi um cigarro. E não tínhamos nada.

O que é que eu tinha? O pão que era distribuído - eu gosto só de côdea, não gosto de miolo. Comia a côdea e guardava o miolo atrás da sanita, que aquilo não era visível da vigia da porta. Aquilo tinha parede, era um pequeno espaço de casa de banho e atrás da sanita escondia o pão. E comecei a fazer as minhas habilidades com miolo de pão. Pensei: «Vou fazer um regime. Eles não me vão quebrar. Não vão».

Então comecei a fazer o meu regime: levanto-me, tomo banho - um duche frio. Controlava as horas com a mudança das sentinelas, que eu tinha sempre um guarda prisional que fazia todo aquele espaço em volta. Comecei a contar os passos, que cada um fazia, quando é que eles faziam. E depois fazia a organização do tempo em função das refeições. Comecei a funcionar com o meu relógio - o meu relógio era quando eles faziam a entrega das refeições e a mudança das sentinelas, era a minha noção do tempo. E olhando, por aquelas grades, duas grades sobrepostas, olhando para o céu: o sol, o dia. Depois era fazer o meu horário de atividades: fazia ginástica, fazia a minha atividade com um bolinho de pão - sentadinha na sanita, quando ouvia alguma coisa parava logo. Então fiz um jogo de xadrez. Eu sempre gostei muito de jogar xadrez. Fiz um jogo de xadrez e fiz um jogo de damas. Então com o meu tabuleiro fictício ia fazendo os meus jogos. Depois criei o hábito - acho que isto é o hábito de muitos presos políticos, o meu marido tem o mesmo hábito - que é sempre que estou numa refeição pego no miolo de pão e começo a fazer trabalhos. Fiz florinhas, faço desenhos. Já lhe disse que fui para construção civil, porque gostava de modelar, gostava de desenhar. Então foi a forma como ocupei o meu tempo e vencer a ansiedade, controlar o medo de algum modo. Ter sempre esta preocupação de me manter lúcida. E não fui delatora, que é uma coisa que me orgulha. Mas também não tive a pressão, nem a tortura, que outros tiveram. Essa é também uma realidade.

Vem o 24 de abril, vêm-me chamar na parte da tarde, ao fim do dia. Comunicar que vou sair com caução, que já comunicaram à família, aos contactos lá registados como familiares que poderia sair desde que pagasse a caução. Saí de Caxias já era noite, de tal maneira que a minha preocupação primeira foi de ir aos Restauradores, que era o único serviço dos CTT que estava aberto, para mandar um telegrama ao meu marido, que era a minha grande preocupação. «Fui libertada» [dizia o telegrama].

E, depois, seguir para o Barreiro. E chegar a casa da minha sogra e a minha sogra dizer-me assim: «Apolónia…» - eu tinha uma saudade imensa de ver a minha filha, como deve calcular - «…o Luís Carvalho passou aqui, eu já lhe disse que ia ser libertada. Ele disse: «A Apolónia que não se deite antes de ir a minha casa. Quando chegar que vá a minha casa.» «Então mas que coisa, mas eu tenho tanta coisa..!».

Deitei a miúda, adormeci a Catarina. Eu peguei e fui a casa do Luís Carvalho. Este Luís fazia parte do grupo mais ativo desta agitação militar. Estava na tropa, era Oficial Miliciano. E diz-me: «Apolónia, hoje não te deites.». Digo assim: «Ó Luís, por favor». «Não te deites! É hoje!...» (porque nós brincávamos muito com a história do golpe das Caldas) «…é hoje, não te deites. Estou-te a dizer!». «Ó Luís, lá estás tu. Eu com as saudades que eu tenho da minha cama, da minha filha, de dormir agarradinha a ela. Depois destes dias todos, Luís?». «E como é que foi Apolónia?» - a vontade de saber tudo, como é que foi [na prisão], como é que não foi, o que é que aconteceu. E eu relatando e digo assim: «Bem, Luís, vou-me embora».

Às 7 da manhã estava eu, na primeira noite em liberdade. Na primeira noite depois daquela tormenta, a minha sogra, a minha velhota, acorda e diz assim (ela acordava cedo e a primeira coisa que fazia era abrir o rádio): «Apolónia, Apolónia. Acorde!». Eu digo assim: «Mãe Filomena, o que é que aconteceu?». [Ela]: «Acorde! Passa-se alguma coisa! Não há música, não há rádio, não há nada! Passa-se alguma coisa! Eu parece que ponho ali e é sempre a mesma música, não há nada. O que é que se passa?». Eu dei um salto e disse assim: «Ai meu Deus que o Luís Carvalho com a verdade me enganou! Mais valia não ter adormecido!». [Risos]

E pronto, são registos, são marcos. São testemunhos que é importante que transmitamos às novas gerações. Como foi tão violenta a luta por todos, pela democracia deste país, pela liberdade deste país. Tocou muita gente, homens, mulheres. Uns com muitos mais. É bom termos presente, para que isto não se repita.

O último registo que eu faço, porque também é um registo importante, é a participação no Congresso de Aveiro. O III Congresso de Aveiro da Oposição Democrática em [19]73. As teses do Congresso da Oposição Democrática, onde fui integrada em duas excursões que se fizeram da Academia de Lisboa, dos jovens estudantes. Fomos intercetados permanentemente a caminho de Aveiro e que nos deram ordem expressa da polícia para regressar a casa e não continuar. O registo dos motoristas extraordinários, que foram por caminhos secundários e chegámos a Aveiro. A chegada a Aveiro em estado de sítio, aquela cidade em estado de sítio. Proibiram os autocarros de entrar. Saímos dos autocarros e fomos em grupo, atravessamos a ponte e fomos direito ao centro da cidade. A participação no congresso, as intervenções. E depois a emoção de uma intervenção que é feita no congresso sobre os presos políticos. A emoção, sobretudo porque ouvir testemunhos reais, rigorosos, feitos pelos próprios presos de Caxias, que estavam presos. E fui eu e o meu marido que fizemos chegar à organização aquele testemunho. E quero dar o testemunho aqui que foi feito por três presos políticos que estavam em Caxias: o Armando Teixeira, o Carlos Domingos - ex funcionário clandestino do PCP - e o João Pedro -estudante de agronomia. Os três fizeram em conjunto a tese ao Congresso de Aveiro, a repressão fascista e a situação dos presos políticos em Caxias. Ao mesmo tempo a emoção de ver e saber que aquela tinha feita por eles, saído lá de dentro, aquilo que ninguém achava que era possível transmitir, saiu. Saiu aos pouquinhos nas mortalhas dos cigarros esta intervenção que aqui está, sabe como? Nas carcelas das calças de cada um - neste caso do meu marido. Cada calça que vinha para lavar entrava sem nada, mas saía com os registos. Depois foram montando as mortalhas juntas e deu azo à tese que foi apresentada, feita por presos políticos que estavam presos efetivamente. A emoção e ao mesmo tempo a revolta neste congresso.

Quando no desfile, íamos a caminho do cemitério para fazer homenagem a um democrata, um resistente. As cenas de pancadaria, a violência que foi visível. E a solidariedade, também, daquela população que foi capaz de proteger muitos. Eu fui, juntamente com um grupo de outros antifascistas, para dentro de um café que fecharam as portas, mas vimos as cenas todas do lado de dentro do café, com uma vitrina. As cenas de violência... uma coisa que nunca mais me esquece. Pessoas caídas no chão, ensanguentadas. Há um que se levanta, que faz isto, uma cacetada que levou, era a camisa branca cheia de sangue. E depois era ver aquelas expressões da polícia de choque completamente louca em frente à montra do café, que estava fechado. Nós encostados todos, era um grupo encostado ao fundo, porque eles estavam para partir a montra, mas vá lá, tiveram bom senso, não partiram! (...).

Eu queria terminar com isto, entre a emoção daquilo que era a capacidade de lutar, de resistir, de participar e a revolta pela repressão".