Nome: Gilberto Henrique da Silva
Ano nascimento: 1940
Local do registo: Algés
Data do registo vídeo: 08-10-2021

Transcrição

"É assim, eu vim da província aos 20 anos para a Marinha. Fiquei na Marinha e a dada altura, na Marinha pressupõe-se que os marinheiros andam nos navios, não é? Eu estive num navio, mas que não navegava. Estava encostado na base naval de Alfeite. Aproveitei enquanto esperei por cursos entre o ter assentado Praça, feito a recruta e ser chamado para outro curso. Aproveitei para estudar à noite, porque eu tinha só a quarta classe. Fui estudando à noite, os pais lá ajudaram com uns escudinhos, naquele tempo, para pagar a professores particulares. Fiz o primeiro ciclo, primeiro e segundo ano num ano só. Entretanto sou chamado ao curso para marinheiro, faço o curso, sou promovido. Fico novamente na mesma unidade, volto à mesma unidade, porque os cursos nessa altura realizavam-se em Vila Franca de Xira, havia lá uma unidade da Marinha que era a escola. Entretanto, não era altura ainda de aulas, havia de ser altura de aulas dali a mais alguns meses. Entretanto sou transferido para o Ministério da Marinha, para uma unidade no Ministério da Marinha. E preparo-me para iniciar o curso do segundo ciclo - que era o terceiro, quarto e quinto ano dos Liceus.

Matriculei-me. Começo a fazer as primeiras aulas, mas tinha dificuldades monetárias para pagar. Entretanto na conversa com um colega da Marinha diz-me: «Olha lá, tu tinhas possibilidade de fazer o curso de forma quase gratuita, a gastares pouco dinheiro, se te fizesses sócio dum clube na Cova da Piedade em que dão aulas nos Liceus - do primeiro ciclo, do segundo ciclo. E depois ainda tem outras coisas, que dão aulas de cultura geral muito boas! Que são muito esclarecedoras! A gente aprende». «Então, mas como é que [eu faço]?», [perguntei]. [Ele]: «Olha, vais um dia lá comigo». Eu já não sei dizer que era essa pessoa. Era um colega da Marinha, sei que era cabo - já não sei, já se passaram tantos anos... E sei que fui a uma aula de cultura geral. Isto era no Clube Desportivo da Cova da Piedade. Assisti a essa aula de cultura geral e fiquei radiante. A falar sobre cultura geral, sobre literatura, sobre questões gerais da vida. Fiquei muito contente e gostei. Procurei como é que era, tinha de me fazer sócio do clube e passar a ter aulas - as aulas que eu pretendia que era do segundo ciclo.

Digamos que em política nessa altura pouco sabia. Tinha vindo do campo, vim do Algarve duma aldeia que se chama Burgau. Fica entre Lagos e Sagres, à beira-mar, mas a vida dos meus pais era no campo, não era no mar. Embora eu como rapaz convivesse com os amigos do mar.

Ora bem, passo a ficar sócio do clube e a ter as aulas normais - iniciei as aulas do segundo ciclo. Ia ter as aulas de cultura geral. Ia conviver com aquela gente toda, ali da Cova de Piedade, que frequentavam aquela escola. Comecei a aprender algumas coisas de espírito democrático, das coisas que não estavam bem na sociedade, comecei a aperceber-me das injustiças que havia na nossa sociedade na altura. Isto talvez por ordem de 1965, talvez [19]64/65. Foram decorrendo os tempos, fui participando em várias atividades na escola. Vária realizações e caráter cultural que se faziam. Eu comecei-me a integrar e a participar. De tal modo que por volta de 1967 sou convidado por um dos professores para fazer parte do Partido Comunista Português. Fiquei assim um bocado embaraçado, fiquei para pensar e decidi aceitar. Fiz os meus encontros de partido da altura, que me recordo.

O primeiro encontro nunca me esquece. Foi numa rua que fica onde é hoje a porta da antiga Lisnave - não existia a Lisnave, era uma paragem de autocarro. E o encontro era aí. Já agora, se me permite, eu conto. Eu estava [na paragem]. Vinha alguém que me perguntava se já tinha passado o autocarro para Évora. Eu dizia: «Não sei, eu não sou daqui». Eu levava um jornal, que era o Diário de Lisboa, debaixo do braço e a pessoa acho que mo trocava, que me dava uma moeda - e eu trocava uma moeda com ele. Estávamos identificados, entrei para o carro, cumprimentamo-nos como camaradas. Deu-me as indicações do que devia de fazer. Deu-me imprensa para eu distribuir, [disse-me] onde devia distribuir e marcamos o próximo encontro. Eu era militar - não ia fardado, ia à civil nesse encontro.

Os outros encontros passaram a ser todos em Lisboa, onde é o Estádio do Sporting. Do estádio do Sporting para trás aquilo era tudo terrenos de cultivo. E nós encontrávamo-nos num sítio combinado e íamos por aquelas veredas e caminhos conversando, falando. Ele dando-me as instruções do que é que eu devia fazer, do que não devia, imprensa do partido. Tentar distribuir a imprensa do partido, por exemplo, procurar fazer chegar a amigos ou pessoas conhecidas que havia, que eram pessoas democratas e podiam aceitar a imprensa do partido - que era o Avante e o Militante. Entregar o Avante e o Militante em envelopes de correio, por exemplo nas coletividades, ou a outras pessoas que não queria entregar diretamente, para não ser conotado. E os contatos com outros camaradas da Marinha, ir falando do ponto de vista democrático, das contradições do regime, das injustiças, das questões das colónias. Era, digamos, o papel que iria desempenhar.

No encontro em Lisboa, na Travessa dos Moinhos em Alcântara, perco o contacto com o partido. O funcionário não apareceu e fiz os recursos - havia combinados recursos - dali por cinco minutos - há coisas que, de facto, já me escapam - dali por mais algum tempo e daí por um mês. O funcionário não apareceu, fiquei perdido. E entretanto sou, como se diz na linguagem vulgar, sou agarrado, sou apanhado por um camarada lá de Almada. Já antigo, pessoa já que tinha estado no partido e continuava, já mais velho, já tinha estado preso, que era o senhor João Raimundo. Que contactou comigo, provavelmente por indicação do partido, e me deu uma senha para me encontrar com outro camarada e iniciar o trabalho partidário. Isto nos anos [19]67, 68.

Entretanto começam as preparações para as eleições de [19]69, do regime. E o partido pede-me para dar uma ajuda no aspeto semilegal. Para organizar a campanha, fundos, sessões de esclarecimento, tudo isso. E eu vou por aí fora. Isso não era legal, era semilegal. E começo a ter encontros a nível do concelho, a nível de distrito, a nível do país. Vou até ao encontro de São Pedro de Moel, (...) sou eleito como representante dos democratas de Almada, por aí fora.

E realizam-se as eleições de [19]69, que deu o que deu. A oposição não ganhou mas, por exemplo, na Cova da Piedade houve uma grande votação que eles devem ter feito uma grande aldrabice, com as chapeladas, etc.

Uma atividade política muito intensa. De tal modo foi essa atividade, que durante o ano de [19]69, antes das eleições, eu já tinha sido chamado à PIDE ainda na Marinha para prestar declarações. Por intermédio da unidade onde eu estava vem uma ordem. Disse o meu chefe lá da repartição, que era Capitão de Mar e Guerra, senhor Comandante Diogo Afonso: «Senhor Gilberto eu tenho uma ordem, que vem de despacho do ministro, para o senhor Gilberto ir prestar declarações...» (naquela altura chamava-se DGS [Direção–Geral de Segurança], não era PIDE. Com o Marcelo no poder passou de PIDE a DGS) «... para ir prestar declarações. Eu não quero saber politicamente o que é que se passa com a tua vida particular, não tenho que ver com isso. Estás à vontade. Eu vou mandar um militar contigo para te acompanhar e te trazer. Fica descansado que não ficas lá». E eu fui. Isto repetiu-se por duas vezes, pelo menos. E é interessante que a pergunta que me fazem na PIDE-DGS - é o que é que se passava comigo e com a França. [Eu]: «Com a França? Não se passa nada, não sei de nada. (...)». Não me fizeram perguntas nem de Partido, nem da oposição, nem de nada - só me perguntaram isto. Eu na altura, de facto, namorava com uma rapariga que tinha ido para França, mas com ela não tratava de assuntos políticos nenhuns. (...) Não era uma pessoa esclarecida nesse âmbito político. E não percebi, nunca percebi porque é que eles fizeram essa [pergunta]. A única coisa que tinha havido comigo, que de algum modo podia ser comprometedor foi várias pessoas que eu fui levar com o meu carro à fronteira para irem para França, para fugirem ao serviço militar. Fui levar a Vilar Formoso e, não fui eu mas foi o meu carro, a uma outra zona do Alentejo…

(...) Não sei se foi das duas vezes, se foi numa das vezes que disseram: «Se você não estivesse na Marinha, você dizia hoje já à gente o que é se passava consigo e com a França. Ficava cá e contava-nos tudo o que é preciso. Mas assim, deixe estar que logo conta». E mandaram-me embora. Eu informava o partido destas situações. A atividade política de carácter democrático era muito intensa, tinha muitas reuniões, muitos encontros de partido e muitas reuniões democráticas. Com os democratas de Almada no sentido (...) de empurrar as coisas para o trabalho democrático, para a oposição ao regime. Depois vieram os congressos. Congresso de Aveiro. E começou-se a desenrolar uma situação em que eu não me sentia à vontade já, na Marinha. Se sou preso na Marinha, se sou apanhado é pior, militar e tal. O trabalho na Marinha como compensatório não era muito bom na altura. E pedi para me vir embora. Saí em julho de [19]69.

Continuei o meu trabalho político. Como saí da Marinha os meus amigos de Almada, democratas, arranjaram-me lugar na Cooperativa Piedense. Fui para lá trabalhar. E continuei com o trabalho político. Por vezes mudando de sector do ponto de vista partidário, de trabalho civil para trabalho militar e vice-versa, conforme o partido achava que era mais conveniente. E as coisas foram andando até março. Houve as eleições, houve as greves da Lisnave logo a seguir às eleições de [19]69, em que eu tive algum desempenho no contacto com camaradas que estavam como trabalhadores dentro da Lisnave. E, neste caso, com o Partido Comunista, que era a organização dirigente, que orientava como se devia fazer e o que não se devia, o que é que era correto fazer e não era. Encontros com a organização regional do sul do Partido Comunista Português, com o camarada António Gervásio, e um outro funcionário que me coordenou durante bastante tempo, que eu não sei o nome.

Chega a março de [19]70 e um dia sou surpreendido no meu quarto. Entretanto tinha arranjado um quarto na Cova da Piedade, quando ainda estava na Marinha e depois já em civil fiquei no mesmo quarto. Sou surpreendido por volta das seis, sete horas da manhã. Bateram à porta da pessoa, pelos vistos identificaram-se que eram da polícia política, [perguntaram] se eu estava e qual era o meu quarto, abriram o quarto e entraram e disseram: «Senhor Gilberto?». [Eu]: «Sim senhora». [Eles]: «Faça favor de se levantar. Somos da DGS. É para nos acompanhar para prestar ali uns esclarecimentos». E começaram a revirar o quarto. Havia um outro senhor que também estava no mesmo quarto, que também era da Marinha, que ficou bastante assustado, coitado, ele não sabia nada do que se passava comigo. Deram a volta ao quarto todo, não havia nada de especial - eu tinha-me dado ao cuidado de ter as coisas todas limpas. Porém havia uma falhazinha…

Antigamente tiravam-se cópias com uma coisa, que não sei se sabem o que é: papel de stencil, que se metia numa máquina para tirar logo uma cópia ou duas. E eu tinha estado num encontro de São Pedro do Muel onde participaram vários democratas - recordo-me, por exemplo, Salgado Zenha, Sottomayor Cardia, o Urbano Tavares Rodrigues - estas pessoas assim e outros ali da zona de Almada, de Setúbal, do Alentejo, do Algarve, do Norte. Foi um grande encontro sobre a oposição e eu fiz um relatório para o partido sobre esse encontro. Bati isso à máquina, não fiquei com nenhum papel, mas fiquei com o stencil que tinha batido - ficou lá dentro. Esqueci-me, juntei aos outros. E eles andaram a dar a volta aquilo e viram o stencil: «Ah! não tem nada? Está aqui!» - levaram-no. Depois quiseram mostrar que o Partido Comunista estava metido na organização democrática, fazia parte da organização democrática. Para poderem dizer que a organização democrática devia ser ilegalizada.

No quarto não me molestaram, não me magoaram. Já é magoar revolverem tudo, livros, tudo. Eu tinha tido o cuidado de ter as coisas em [escondidas]. Tinha lá coisas de segredo, mas eles não deram com essas. Estavam escondidas nas caixas da eletricidade, tinha lá coisas que não me podia esquecer, que eram de encontros - eles lá não foram. E pronto. Meteram-me dentro de um carro e levaram-me para a António Maria Cardoso.

Convém voltar aqui um bocadinho atrás só para dizer que antes desta prisão, uns dias antes, talvez uma semana antes, talvez não tanto, tinha sido preso um camarada da célula do partido a que eu pertencia. E entre a prisão dele e a minha prisão, eu tive um encontro de partido com outro camarada - que me desloquei no meu carro a Sesimbra. Junto ao castelo, a um castelo que há em Sesimbra mesmo junto à praia - o encontro era aí. O encontro [era] com dois funcionários do Partido, um da organização regional do Sul e outro local. Já tinha havido a prisão, como disse, e íamos assim um pouco preocupados. Não estavam lá os camaradas com quem a gente se ia encontrar e decidimos seguir para o lado da lota. Fomos até ao fundo, voltamos no carro, e quando vínhamos de volta eles viram-nos. Fizeram-nos um sinal e a gente reconheceu-os. Então eles estavam disfarçados com um boné de pescador, com uma camisa de pescador aos quadrados, que a gente não tinha reparado neles. Eles entraram para o carro.

Já fora de Sesimbra, na zona do pinhal, estendemos uma toalha, pusemos um garrafão a imitar que estávamos a fazer um lanche. E aí conversámos. (...) Como eu pertencia à célula do camarada que tinha sido preso, punha-se o problema da prisão. O partido pôs-me o problema: que se eu quisesse me organizava eu passar à clandestinidade, provavelmente como funcionário do partido ou coisa do género. Eu disse que não me sentia em condições para isso e portanto, ficava como estava. «Podes ser preso». [Eu]: «Se for preso, serei». Isto foi talvez num fim-de-semana e a prisão foi logo na semana seguinte, de segunda para terça de manhã.

Nessa terça-feira (...) que eu sou preso, como já disse.

Já agora um outro episódio antes de ser preso. Eu, como já disse, trabalhava na Cooperativa. Tinha saído da Marinha e trabalhava na Cooperativa. Na Cooperativa trabalhava também uma menina, que gostávamos um do outro, mas não namorávamos. Mas pronto, havia aquelas coisas que vocês sabem, todos foram rapazes e sabem como é que é essas coisas de rapazes jovens pré-namoros. Eu percebia perfeitamente que essa menina gostava de mim. A gente encontrava-se com facilidade, andávamos, conversávamos. E eu senti que ela achava que a gente devia namorar - esperava que eu lhe desse essa possibilidade. E encontrei-me com ela, lá na Cova da Piedade, dentro do carro em frente ao café Dom Henrique - nunca me esquece - e disse-lhe: «Ó Benta. A gente gosta um do outro, mas quero-te dizer uma coisa. Eu não tenho condições para enfrentar um namoro. Isso não está seguro, eu não tenho condições». [Ela]: «Mas não tens condições porquê? Qual é o problema?». [Eu]: «A minha vida não é segura, eu tenho uma atividade que não é visível». «Mas que atividade?», começou a insistir comigo. E eu disse: «Eu tenho uma atividade política e posso ser preso de um momento para o outro». Já tinha sido a prisão do outro senhor. Ela ficou toda surpreendida, não conhecia nada disso, não estava dentro do trabalho político. E diz essa menina assim para mim: «Então e tu se fores preso o que é que eu posso fazer?». [Diálogo]: «O que é que podes fazer? Não podes fazer nada. Sou preso. Tenho alguma atividade política, isto é clandestino, esta conversa fica aqui, mas ficas a saber que é por isso que eu não avanço». «Mas o que é que eu posso fazer? Quero-te ajudar!». «O que podes fazer? Se quiseres... Eu não tenho cá ninguém. Os meus pais estão no Algarve, são pessoas que pouco sabem ler e escrever, já têm uma certa idade. Têm muita dificuldade em me acompanhar, em vir cá ver-me. Aparecias como minha namorada a visitar-me. Para haver um contacto entre mim e o exterior». «Ah, certo! Então e o que é que eu faço?». «Então se eu for preso, vais falar com fulano». Dei-lhe a indicação de uma pessoa, no caso de eu ser preso com quem podia ir falar e receber instruções [sobre] como é que ela se devia comportar. Olhe, esta conversa foi no fim-de-semana e na terça-feira de manhã sou preso.

Agora a prisão. Entrei na António Maria Cardoso com os indivíduos. Logo a seguir a entrar na sala, apareceram uma série de indivíduos na sala. Entre eles - que vim a saber mais tarde quem eram - o inspetor Passo e o inspetor Tinoco. E, salvo erro, foi o inspetor Passo que disse para o Tinoco [diálogo]: «Então este é que é o senhor Gilberto Henrique da Silva?». «Sim». «Mas falta um nome!». «Pois falta, falta o R de Rita!». Não disseram mais nada, mas eu calculei o que era. O «R de Rita» era o «R» do meu pseudónimo. Eu tinha o pseudónimo de Raul. Eu pensei: «Estes marotos já sabem qual é o meu pseudónimo». [Eles]: «Então está disposto a contar-nos quais são as suas atividades para com o Partido Comunista Português?». [Eu]: «Nem sei o que é isso.» [Risos] «Então pronto. Quando estiver disposto...» - disse [ele] para o individuo que estava ali (...) - «... este senhor fica aí. Não dorme até que esteja disposto a contar a atividade dele para com o partido. Quando estiver, ele que diga. Chamem-me e a gente fala». E assim fico ali. Isto foi numa terça-feira e fico até sexta-feira sem dormir.

Primeiro ainda me deixaram sentar, no princípio. Depois, aí passado um dia, ao segundo dia puseram-me de pé. «Não se senta!». Porque de vez em quando ia lá ou um inspetor ou um subinspetor: «Então, já está disposto a confessar as suas atividades para com o partido?». Eu continuava a dizer que não tinha nada, não sabia o que era, não tinha atividades nenhumas. Até essa altura não me bateram. Só não dormia e deixei de me sentar.

A partir aí do segundo dia começaram por me insultar: «Não queres contar?». Chamaram-me todos os nomes a insultarem-me. «Tu és isto, tu és aquilo. Eu faço, aconteço». Não vou dizer aqui, porque alguns nomes são indecentes. «És um traidor. Não foste à guerra colonial. És assim, és assado». A insultarem-me, pronto, eu fui-me aguentando.

Ao longo destes dias aparecem-me com a escova de dentes, pasta de dentes e a roupa interior, umas cuecas. E levam-me até à sala onde estou a ser interrogado. [Diálogo]: «Está aqui isto. Você sabe quem é que lhe manda isto, não é?». «Não faço ideia». «Então o senhor não tem uma namorada?». Eu pensei logo, cá está a Benta! «Tenho». «'Tão ela também é do partido não é?». «Mas qual partido?!». «É ela que lhe traz. O senhor tem é que dizer que ela tem que contar também qual é a atividade dela no partido». Fiquei com aquilo. Disse cá para comigo: «A Benta já veio à minha procura» - que é a tal rapariga que lhe falei.

Até sexta-feira, imagine-se... eu não sei explicar como é que me sentia, mas sentia-me com a cabeça completamente vazia. Nunca fui dos indivíduos que cheguei a ver coisas, sei lá, como alguns camaradas contavam. Isso não. Mas senti-me de tal modo mal que acabei por, devo confessar, por fraquejar e por dizer na sexta-feira, disse: «Pronto, eu sou membro do Partido Comunista. Pago uma quota. E, como tal, não dou mais explicações». E fazem o auto com estas informações. Eu assino. Mandam-me deitar nessa noite, no dia de sexta-feira à noite. E no sábado de manhã levam-me para Caxias e preparam-me para dar visita, que a minha namorada tinha pedido. Realiza-se a visita. Eu com aspeto, provavelmente, bastante abatido, como pode calcular. Faz-se a visita. Não pude dizer nada, o guarda estava ao pé. Tanto as perguntas como as minhas respostas eram insignificantes: «Não tenho nada para dizer, não sei para que é que me têm cá». E fez-se essa visita. Não sou capaz de garantir que tive visita no domingo, já não me lembro.

Na segunda-feira levam-me novamente: «Então agora vamos lá saber qual é toda a sua atividade». Começam a insistir e fico novamente na tortura do sono até sexta-feira da semana seguinte. Eu fiquei completamente de rastos. Sem forças. E aí já passaram à agressão. Bateram-me. Não me bateram com pontapés, bateram-me à chapada de mão aberta na cara e eu a cair na sala. Enquanto me sentei, se eu começava a pender, batiam com a mão na secretária para eu acordar e saltar. Nunca me deixaram dormir. Depois nessa altura começam-me a falar em coisas concretas. No meu pseudónimo, quem fazia parte da minha célula, os nomes, os pseudónimos, isso tudo. E nessa altura eu assino umas declarações que eles tinham - não foi confessado por mim, mas foi confirmado - dessas pessoas, que o camarada que tinha sido preso antes tinha falado. Isto sem ter nada de... como é que eu hei de dizer? Não que eu queira com isto molestar o camarada que foi antes de mim. Não se aguentou e falou, pronto.

E então continuam, depois mandam-me novamente para Caxias. E depois venho aos interrogatórios de quando em quando, para ir confirmando. Porque entretanto, são presos uma série de indivíduos do movimento democrático - provavelmente alguns também estariam ligados ao partido, ou não, não sei. Mas eles pretendem mostrar - já sabiam que eu era do partido - e pretendem mostrar que o movimento democrático (a CDE) funcionava com gente do Partido Comunista. A intenção era essa.

Começam a aparecer as declarações desses camaradas que são presos. Do Barreiro, o Staline, o Álvaro Monteiro, o irmão da Conceição de Matos - o Alfredo Matos - alguns que eu me recordo agora. Eu procuro não ligar uma coisa à outra. Aguento-me, aguento-me. Até que fazem acareação. Levam o Staline, levam o Álvaro Monteiro, levam esses camaradas a fazer uma acareação: «Então digam lá agora. Conhecem-se, não se conhecem?». Quer dizer, foi completamente aniquilador a questão de estar a sustentar essa situação.

Fiquei num quarto virado para o lado do Estádio Nacional, em que tinha o privilégio de ver passar os carros e fazer estatísticas dos carros que passavam, desta marca e daquela, de me entreter com isso. Tive três meses no isolamento. E quem vai para meu advogado era um homem que faleceu há pouco tempo, um bom advogado, uma pessoa excecional, o Dr. Jorge Sampaio. Foi meu advogado, o ex-Presidente da República. Ele visitou-me, antes do julgamento, disse: «Epá, Gilberto, você já diz que é membro do Partido Comunista. A gente vai dizer que não é, pronto, pela forma como foi obtida e isso…». E depois debateu-se no julgamento.

Acabei por ser condenado a 22 meses de pena correcional, que cumpri sempre em Caxias. Estive preso com estudantes, do MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola], finalistas de medicina. Um outro que era já médico, que era Diretor Geral de Saúde em Luanda e que foi preso, foi parar ali - não me recordo do nome dele, não me recordo mesmo do nome dele. Estive preso com o Zé Barros, que era membro da direção do partido quando foi preso, José Barros. Pinto de Andrade, que era membro honorário do MPLA. Estive preso com outras pessoas que não eram membros do partido, que eram de uma fação que se tinha criado - a FAP [Frente de Ação Popular]. O Dr. Pulido Valente, Rui D'Espiney. Estive preso ainda com outro membro do partido também, membro do comité central, o Rogério de Carvalho.

Agora há todo um período que estou preso e, como falei, a tal menina que me foi levar a roupa interior e a escova de dentes e a pasta de dentes à prisão, continua a aparecer como minha namorada. E assim continua até ao fim da minha prisão. A visitar-me com regularidade, semanalmente, mais do que uma vez por semana. Como namorados, sem sermos namorados oficialmente. Nesse trabalho de me visitar, contacta com outros familiares de outros presos que se encontravam à porta da prisão e ingressa na Comissão de Socorro aos Presos Políticos. E aí desempenha um papel bastante importante, quer durante a minha prisão, quer depois da minha prisão. Desempenhando aquele papel a que ela se tinha comprometido. Hoje é mãe dos meus filhos (...).

A prisão passou-se. Acho que não fui, nem eu nem os presos dessa altura, talvez os mais sacrificados na prisão em Caxias. Houve provavelmente momentos piores do que naquela altura, embora se tenham feito levantamentos de rancho, exigências de outras formas de visitas, etc.

Aprendi na prisão a comunicar entre os presos secretamente. Portanto acabou por ser uma escola para mim nesse aspeto. O que era escrito, era escrito numa folha de papel de fumar - a mortalha. Normalmente fazia isso à noite na casa-de-banho. Punha aqui uma tábua que havia lá dos móveis, punha em cima dos joelhos, sentava-me na sanita e com um lápis muito fininho - tinha de ser uma letra muito miudinha para caber numa mortalha tudo aquilo que se pretendia dizer, não é? Fazia aquilo, depois no fim a mortalha era muito bem dobradinha. Aquilo ocupava um espaço muito pequenino. Depois usava uma coisa que vinha nas caixas de cigarros, tipo prata. Era envolvido nessa prata, fechado, e depois num bocadinho de plástico. Envolvia aquilo num plástico, qualquer plástico de qualquer coisa que a gente tinha por ali, e selava esse plástico com um instrumento que nós fazíamos que era: uma caneta BIC com metade de uma lâmina de barba, partida ao meio, era encaixada na caneta BIC derretida ao calor de um isqueiro ou isso. (...) Depois o que é que acontecia? Aquecia aquela parte metálica no lume do isqueiro e selava a parte de plástico. Aquilo ficava uma embalagenzinha do tamanho de uma unha, fechada que não entrava água lá dentro. Abria, nas cuecas, abria o elástico das cuecas, punha no meio a mensagem, fechava novamente aquilo, cosia aquilo, a gente tinha lá sempre uma agulha com linhas.

E então era assim: as cuecas era o que levava a mensagem. Tinha de haver um sinal para quem a gente queria transmitir. A gente queria transmitir aquilo, por exemplo, para uma sala onde estavam outros camaradas. Transmitir, por exemplo, a reivindicação de um rancho em condições, um levantamento de rancho, uma exigência, uma exigência de mais visitas, qualquer outra coisa. E então a gente primeiro tinha que informar a eles como é que essa mensagem ia ser transmitida. E então quando eles tinham o recreio ao nosso lado - o recreio tinha uma altura de parede aqui da altura deste andar, a gente não se via, mas ouvíamos e falávamos. (...) Tínhamos a certeza que era aqueles camaradas daquela sala. E quando o guarda se afastava - o guarda passeava por cima, num passeio em cima de um lado ao outro, para vigiar todos os recreios - mas quando ele se afastava a gente tinha a oportunidade. Dávamos um toquezinho na parede e atirávamos por cima um papelinho dizendo qual era o sinal. E o sinal era, por exemplo, uma camisa minha vermelha aos quadrados - esse era o sinal. A seguir à camisa estavam as minhas cuecas com a mensagem. Portanto eles estendiam lá a roupa naquele sítio, tal e qual como nós estendíamos. Quando eles vinham levantar a deles, levavam as minhas cuecas e levavam a mensagem. E era assim que fazíamos. Esta era uma maneira.

Outra era, por exemplo, no recreio - também aí tinha de ser comunicado antecipadamente onde é que ficava a mensagem. A mensagem ficava no recreio tal, entre os mosaicos de norte para sul do mosaico três, entre o três e o não sei quantos. E era feita, o que era chamada, uma gaveta - que era feita com uma chave. Naquela altura as latas de conserva abriam-se com uma chavinha e então era com um chavinha daquelas. A gente fazia um gumezinho, tipo chave de fendas, na ponta. E eu sentava-me no recreio, não me apetecia brincar nem jogar à bola, e ficava com a mão abrindo um buraquinho entre os mosaicos - aqueles que estão na vertical. Abria o buraquinho, a mensagem - aquilo era uma coisinha muito pequenina - metia lá dentro, com um bocadinho de reboco a tapar e ficava lá. Quando eles iam ter recreio naquela sala a mensagem estava lá naquele sítio. Por exemplo, era uma outra forma.

Em relação ainda ao período da prisão. Tinha-lhe dito que eu tinha ido para a escola do Desportivo da Cova da Piedade, para fazer o segundo ciclo. Aquilo era por disciplinas - fiz algumas disciplinas antes de ser preso. A minha namorada fez o favor de me inscrever no Liceu de Oeiras. Eu estudei dentro da prisão com aqueles amigos da faculdade de medicina que tinha, e médicos e padres… Toda a gente sabia mais do que eu para me ensinar. Preparei as disciplinas que faltavam, propus-me para exame e foram-me examinar lá dentro da prisão as disciplinas que faltavam. Acabei o quinto ano! Completei o quinto ano dos liceus, em Oeiras. Tenho realmente esse gosto. O chefe dos guardas ali ao lado, [eu] a ser examinado. Fiz exame escrito e passei às orais, não foi preciso fazer oral. E então o chefe dos guardas, que era um individuo [que] não se levava mal, não nos tratava mal, mas era coitadinho... pouco culto, mesmo muito baixo: «O senhor Gilberto é uma pessoa muito importante. Vieram examiná-lo aqui e passou o exame e tudo!». [risos]

Com a minha prisão todos os dirigentes da Cooperativa Piedense foram demitidos, foi para lá outra direção. Foram perseguidos, pressionados pela PIDE. A minha namorada, que na altura era fictícia, também foi despedida, que também lá trabalhava. Arranja entretanto [emprego], através de amigos da Marinha, pessoas minhas amigas que eu tinha deixado na Marinha e conseguem arranjar-lhe uma colocação na Marinha. Eu saio da prisão, sou ajudado por pessoas amigas que tinham familiares, que eu os tinha ido levar à fronteira para fugirem ao trabalho militar. E recebem-me em casa e estou ali alguns tempos até arranjar trabalho. E arranjo trabalho numa empresa de isolamentos, na construção. Isto nos princípios de 72. Eu sou preso de março de 70 a janeiro de 72.

Entretanto, mais a Benta, pensamos que ficávamos namorados efetivos e começamos a pensar em casar. E em julho, também no dia 17 que já era um dia famoso, resolvemos casar. Com muitos problemas pelo meio. Os familiares, pessoas muito despolitizadas, a família da minha mulher… ficaram muito traumatizados com o facto dela namorar com um individuo que estava preso… Ela teve que sair de casa, porque estava em casa de uma irmã na Cova da Piedade. A minha mulher é do Alentejo, de Alqueva e tinha vindo, tinha feito o 4º ou 5º ano do comércio em Moura e tinha vindo para casa da irmã, que morava na Cova da Piedade e empregou-se na Cooperativa. Mas em função dos acontecimentos comigo, de namorar com um individuo que estava preso, foi de algum modo pressionada pela irmã e pela mãe, que se viu obrigada durante ainda a minha prisão a sair de casa da irmã e arranjar um quarto na Cova da Piedade. Por sinal arranjou um quarto duma pessoa conhecida, que também era do partido, que era o barbeiro lá do sítio. [risos]

Entretanto casamos, saímos da casa desse barbeiro, não convidamos nem pais nem ninguém, porque as famílias estavam assim zangadas com a filha. Também não quis que a minha família viesse para não criar mais problemas.

Depois disto, na sequência da minha mulher estar ligada à Comissão de Socorro aos Presos Políticos é convidada pelo partido e liga-se também ao partido. Lá para outubro é preso um funcionário com quem ela se encontrava, na casa do homem que esteve ainda [como] presidente da câmara de Almada a seguir à Maria Emília. O tal Judas. Ficamos preocupadíssimos com a prisão. A minha mulher: «Então, mas ainda estou há pouco tempo no partido e vou ser presa? Não queria» (...). Falámos com algumas pessoas responsáveis, [eles]: «Olha o que vocês deviam fazer era se afastarem uns tempos. Não se sabe o que é que vai acontecer, não se sabe o que é que vai acontecer com o funcionário preso». [Pensámos]: «Então afastar. Afastar para onde?». Fomos para França.

Nesse mesmo dia ela pede uma licença sem vencimento na Marinha, eu combino com os meus colegas da tal empresa para onde tinha ido, que não criaram problema nenhum, arranjaram-me algum dinheiro para eu poder ir. E saímos no carro que eu tinha nessa altura. E saímos para França. E fomos para casa daqueles amigos que eu tinha ido levar à fronteira. Chegámos lá no sábado de manhã, arranjámos logo um trabalho nesse dia. Na segunda-feira fui logo trabalhar, porque estávamos sem dinheiro. Enfim, dificuldades. Eu tinha casado, tinha comprado todos os utensílios de casa às prestações ao tal camarada Staline - aquele com quem eu falei na acareação, que tinha uma casa de móveis na Moita - tinha de lhe pagar. Tinha necessidade de trabalhar. Arranjei outro trabalho, arranjou-me a minha mulher, com uma profissão que eu nunca tinha feito: dourador à pistola, imagine. O francês: «Você não sabe fazer isto, se nunca pintou...!». «Mas eu aprendo, eu aprendo», [disse]. Resumindo: a minha mulher trabalhava numa máquina de fazer os objetos plásticos e eu dourava as molduras à pistola.

Ali estive dois meses, eu e a minha mulher, em casa dos outros amigos. Ao fim dos dois meses os camaradas de cá dizem: «Podem vir à vontade, porque as prisões não tiveram nada que ver com as pessoas aí do lado de Almada. Tiveram a ver com questões relacionadas com a universidade». Porque o Judas frequentava também o curso de medicina. Olhe, recebemos a notícia num dia, no outro dia viemos embora para Portugal.

Pronto viemos, isto em fins de [19]72. E depois continua a minha vida política no movimento democrático. Fiquei ligado ao MDP/CDE [Movimento Democrático Português/Comissão Democrática Eleitoral] até ao 25 de abril. Com muitas reuniões, com muitos encontros.

Eu considero que aquilo que eu fiz, costuma-se dizer na nossa linguagem vulgar, foi uma gota de água no oceano. Mas não deixo de me sentir feliz por se ter conquistado a liberdade. Coisa que hoje, para mim, é das coisas mais importantes. [choro] Desculpem. É muito difícil para algumas pessoas hoje, que nasceram depois do 25 de abril, perceberem o que é que foi o antes do 25 de abril. Por muito que a gente lhes diga, estão a uma distância quilométrica, uma distância muito grande. Com alguns desabafos às vezes que a mim me custa a engolir. Mas eu também tenho de perceber que as pessoas que nasceram depois do 25 de abril, por várias razões têm dificuldade em perceber isso.

Eu vivi no campo, vivi numa aldeia. Casei com uma pessoa de outra aldeia onde não havia água canalizada, não havia esgotos, não havia eletricidade, não havia condições higiénicas de espécie nenhuma para viver. A água, tínhamos que ir buscar a uma distância enorme - água para beber e para cozinhar.

Isto, para além de não nos podermos organizar politicamente em coisa nenhuma - os sindicatos, as organizações dos trabalhadores. Não podíamos reivindicar melhores condições de trabalho, etc. Podia aqui exemplificar uma quantidade de coisas. Que eu falo com os meus netos - que vivem próximo de mim - e mesmo assim têm dificuldade em perceber isto. O meu filho, enfim, já mais ou menos. Mas eu percebo que as pessoas depois do 25 de abril têm essa dificuldade. Talvez por isso eu dê mais importância à liberdade, porque vivi uma coisa e estou a viver outra.

Hoje a gente fala à vontade. Estamos aqui a falar à vontade. Posso dizer-vos quais são as minhas opiniões políticas, o que é que eu penso do regime, como é que devia ser, o que é que está bem, o que é que está mal. Naquele tempo não era possível isso. Isto em condições políticas, de teoria, em condições práticas. Não tem nada a ver. Aquilo que nós temos hoje, que há coisas que não estão bem certamente, há muitas dificuldades, mas não tem nada a ver com o que se vivia naquele tempo e as condições que era. Por isso, que eu voltando um bocadinho atrás digo que só tenho pena de não ter feito melhor, e mais. Fiz aquilo para que tive condições para fazer e tenho pena de não ter feito melhor e mais".