Nome: António Rodrigues Canelas
Ano nascimento: 1931
Local do registo: Torres Novas
Data do registo vídeo: 17-01-2022

Transcrição

"Eu tinha 17 anos, tinha 17 - vejam lá não me engane aí - 17 ou 16 quando fui trabalhar. Fui para uma empresa muito grande que havia em Torres Novas, que já não existe, que era João Claro Companhia e Irmãos. Fui para lá trabalhar como aprendiz. Nessa altura havia muitos operários - agora veem-se poucos operários. Às horas da refeição, ao meio-dia e às 17h as avenidas por onde saiam as pessoas pareciam procissões, havia muito trabalhador. A diferença entre essa altura, 1947, e agora é que agora a gente não dá pelos trabalhadores! Eram vestidos de ganga azuis - agora nem há trabalhadores, nem há fatos de ganga, não tem comparação nenhuma. 

Eu ganhava poucochinho dinheiro, ganhava 25 tostões por dia. Ora, 25 tostões hoje já não têm comparação nenhuma com nada, era muito pouco. Um operário de primeira ganhava 47 escudos - isso ainda não chega a meio euro. Meio euro é 100 escudos, está a ver a diferença. 

Entretanto aprendi a profissão de torneiro mecânico e aos 15 anos já trabalhava com uma máquina, já fazia trabalhos com máquina.  

Queria introduzir aqui uma nota para se ver a diferença: a segurança social ainda estava a nascer. Como é que se resolvia o problema? Tinha havido um surto de tuberculose muito grande. Naquela altura quem não tinha dinheiro morria. Havia casas [em] que morria tudo: pais e filhos - eu pelo menos conheci uma casa dessas. O ambiente de apoio à saúde não existia. Entretanto os trabalhadores defendiam-se: organizavam comissões de fundos nas tabernas, que eram lugares onde normalmente depois do trabalho os trabalhadores se encontravam - não digo todos, mas muitos - aí organizava-se a maneira de arranjar dinheiro. Quando o dinheiro era para ajudar as famílias, havia uma subscrição. Estava na taberna. Normalmente as pessoas já sabiam, ao sábado [tinham] lá o papel com a listagem dos nomes para quem era - é para fulano, está doente, é para beltrano… Outras vezes era para organização política, que era preciso arranjar dinheiro e serviam-se deste artificio. Diziam na altura, as más-línguas de alguns trabalhadores, [que] para arranjar dinheiro, fundos e coisas havia duas instituições: a igreja e o PCP. Portanto só uma grande solidariedade é que podia sobreviver no regime policial que nós vivíamos, que era uma coisa que hoje nem - os senhores são mais novos, não fazem uma ideia. Este é o princípio da minha vida de trabalho. Fui para o trabalho sem nada, só com a 4ª classe. 

Entretanto desenvolvia-se a ação antifascista. Eu tinha poucos anos, tinha 16 ou 17 anos - é assim uma coisa - e fui abordado por um colega, julgo que seria talvez do PC. [Perguntou-me] se eu não me importava, à noite, de me encontrar com ele na avenida marginal. Eu disse que não - fui sempre um rapaz muito amigo da brincadeira e não via mais nada se não isso. Mas fomos lá ver, aquilo parecia uma coisa muito séria. [Diziam]: «Com cuidado, não digas para onde é que vais. Diz só à tua mãe, se te acontecer alguma coisa». Cada vez me aguçavam mais o apetite. 

Quando chegámos à Avenida, que é aquela avenida marginal de Torres Novas, estava mais uma pessoa ou duas sentadas num banco. Chegámos, sentámo-nos ao pé deles. Então um colega de uma outra empresa, que era o responsável pela organização do MUD Juvenil - o Movimento Unidade Democrática Juvenil, estava na altura numa grande força - esse senhor era o responsável em Torres Novas, que era o Francisco Canais Rocha. Francisco Canais Rocha, que mais tarde é preso comigo, é ele que organiza na altura o trabalho mais responsável, que era a unidade entre o Juvenil e o PCP. No nosso combate dizia-se: «És comunista?». «Não sou comunista, sou do MUD - Movimento Unidade Democrática Juvenil». Para nós era assim, para a PIDE era tudo comunista. 

Foi-me dado um panorama da situação. Foi-me dado um panorama do MUD Juvenil e do que é que se pretendia. Era um movimento de unidade entre todas as forças antifascistas, não era de nenhum partido. O MUD Juvenil e até o PCP, preparavam as pessoas, davam informação e [para] depois verem a possibilidade que tinham de também aderirem e colaborarem. Todos tinham uma tarefa e todos tinham de pagar uma contribuição - a contribuição seria sempre para as organizações onde estavam, onde se tinha aderido. 

A repressão policial era enorme. Bastava que um individuo lesse o Avante ou alguém dissesse que fulano lia o Avante, que a polícia atuava logo. E havia pessoas - eu conhecia um ou dois - que estavam presos porque o vizinho dizia que eles tinham... Era a organização da «bufaria» - e havia muito. Sobretudo havia uma crise de trabalho. Os trabalhadores, [estavam] desinformados, mal pagos, com uma vida desanimada. Mas lutava-se com alegria. Havia alegria no movimento e depois, no resultado. Havia uma greve, ou um levantamento, ou coisas de solidariedade com outros povos…. Claro que isto depois trouxe alguns maus resultados, uma meia dúzia de prisões. Porque Torres Novas era uma terra que fornecia muito a PIDE. Havia muita organização. O PCP era uma força muito grande. Muita gente séria que a PIDE, os agentes da PIDE, ou pessoas influentes, arranjavam empregos. E quem arranjava emprego era o patrão, era o diretor, eram pessoas que tinham algum acesso ao poder. As pessoas sérias e com tudo aderiam à legião portuguesa e depois não tinham dúvidas - tinham emprego. 

Isto era o ambiente… 

Havia uma coisa que é preciso aclarar. Então as pessoas, era na taberna que se organizavam? Era em qualquer lado! Eu tinha muitas reuniões, quando o tempo estava bom, nas propriedades, de noite. Com um certo cuidado, com cuidados conspirativos muito afinados, porque não se podia pôr o pé em ramo verde… Com uma grande orientação dada por um político - que em Torres Novas era operário e que foi depois um grande dirigente político, o primeiro responsável da Intersindical - o Francisco Canais Rocha. Foi ele que, já membro do Partido Comunista, deu-me um grande impulso. Porque era um operário intelectualizado, (…) o operário que se elevava intelectualmente e, portanto, tinha conhecimentos que os outros não tinham. Portanto, eram pessoas que auscultavam a situação e não só traziam a informação como também davam orientação. Este é o panorama de um jovem que entra nesta vida.

Ali por [19]52 houve um congresso, acho que era na Áustria, um Congresso da Juventude Antifascista. Portugal também mandou representantes. Eu nessa altura era operário. A minha vida depois dá muitos saltos até hoje e deixei de ser operário, passei a ser empregado de escritório. Mas foi a vida política que orientou sempre a minha vida. Desde que entrei para o MUD Juvenil nunca mais, até hoje, deixei de lutar em organizações e outras coisas que eram precisas, conforme os trabalhadores iam adquirindo, não só conhecimentos, como também amor às coisas. Dizia a gente: «É o amor à casa», a brincar. Íamos brincando com coisas sérias. 

Nós entrámos dentro da dinâmica do congresso fazendo colagens e reuniões. Eu, depois, deixei-me prender. Fomos fazer a colagem ao pé das igrejas. Torres Novas tinha nove igrejas - agora tem oito, porque alagaram uma - e tinha uma grande atividade religiosa. Hoje não se compara nada. E iam à missa de manhã. A gente já sabia que os papéis duravam pouco nas paredes, mas as pessoas de manhã ficavam logo com esse conhecimento. 

Olhe, não sei como é que eu fiz aquilo: fui preso.  

Pus-me a pintar as paredes, não tomei cuidado a colar os papéis. A polícia que havia era a Polícia Municipal. A Polícia Municipal viu-me e eu é que levantei as ondas - quando vi a polícia pus-me a correr. Ora, denunciei-me… A polícia andou e apanhou-me. Não sei o que é que me deu. Em lugar de fugir parecia que os pés não andavam. Nem eu sei dar a explicação de porque é que [não fugi]. Só sei que conforme ia indo, eles punham a gente nos calabouços e já lá estavam alguns, ou não estava ninguém e chegavam depois. 

A minha primeira prisão foi essa, que foi uma coisa inglória. Fui preso e depois de manhã já cá estava a PIDE, já estava tudo. Já havia outras prisões. E levaram a gente todos para, deixe cá ver, que uns foram para interrogamento e outros foram nas carripanas da PIDE. Fui na carripana da PIDE, fui logo para Lisboa. Na António Maria Cardoso fizeram a receção das pessoas, o cadastro e tudo. Depois fomos para o Aljube. Eu ia com mais dois ou três. A primeira cadeia, o meu primeiro batismo - tirando aqui estas tascas da polícia aqui perto - foi o Aljube. 

O Aljube era uma prisão com celas. Também tinha umas salas grandes que estavam cheias de gente presa, mas eu fui para a cela mais pequena. Era um corredor que havia com as celas todas ali e eu fui para a primeira, que era a mais pequenina - quase que nem cabia lá. Estive aí uns 15 dias até aos interrogatórios. 

Os interrogatórios começaram e havia uma coisa, que depois se alterou por força das circunstâncias. [Perguntavam]: «Você é do Partido? Quando é que entrou?» e os presos diziam «Não senhor, eu não sou do Partido. Eu sou do movimento juvenil de Unidade Democrática». E faziam isto com um certo impulso, uma certa dinâmica. A polícia irritava-se com isso, porque os jovens diziam: «Eu não sou comunista. Eu sou antifascista aliado» - diziam isto alguns que tinham mais coragem, porque isto saía caro. Quem era aliado do PCP, depois nos julgamentos também pagavam na mesma moeda. Aquela arrogância e aquela vaidade: «Eu sou isto!» - depois tudo isto se modificou. 

Estive um mês em interrogatórios. Não eram todos os dias. Os interrogatórios normalmente começavam de noite, porque havia o castigo da estátua e do sono. Eu estive nos dois, mas (…) não fui muito maltratado. Levei umas bofetadas, armei-me uma ou duas vezes assim em mais corajoso e eles castigaram-me. Passado mais seis meses fui entregue ao Tribunal e fui julgado. Nessa altura houve alguma falta de conhecimento e também o terror de estar preso. A polícia era uma polícia científica, organizada pelos alemães e pelos italianos, que viviam antes de nós em fascismo organizado. O corporativismo vem da Itália com o Mussolini. O Salazar era um aprendiz ao pé destes indivíduos, mas era um fervoroso fascista. Muita gente dizia que ele não sabia o que é que se passava, que ele não sabia. Mas ele é que organizava e era responsável como um Capitão que organizava a PIDE. Há pouco tempo uma televisão deu um [programa] sobre a organização da PIDE, com o Capitão que me esquece agora o nome. 

A PIDE era muito feroz. Assassinava-se com muita facilidade, apareciam pessoas nas valetas com tiros na cabeça. 

Entretanto no dia do julgamento, eu fui para o tribunal. Há o interrogatório do Juiz e eu fiz o mesmo alarido que fazia na PIDE. [Perguntavam]: «Então o senhor quando é que entrou para o Partido?». «Eu não sou do Partido. Não tenho nada com os partidos. Eu sou do Movimento de Unidade Democrática Juvenil. Sou um jovem que ganha pouco mais do que o dinheiro para comer uma sopa». [Respondiam]: «O senhor é mas é um cachopo, não sabe o que é que quer!». E eu disse: «Eu sei o que é que quero. Eu ganho tanto. Vivo com a minha mãe - o meu pai divorciou-se da minha mãe. A minha mãe trabalha noite e dia. De noite trabalha a arranjar roupa e durante o dia trabalha noutros trabalhos domésticos e ganha X. Mal dá para a gente comer». «Isto não é discutido aqui!». «Pois, eu estou preso por causa disso». [Respondiam]: «O senhor está preso por andar a colar». «Não fui não. Foi porque fui a um Congresso». 

Eu, como estava preso com o Salgado Zenha, ele preparou-me para o julgamento. E fiz um julgamento que julgo que teve alguma importância. O Juiz a certa altura disse: «Você não sabe o que é que quer». E eu disse: «Sei. É a situação económica em que a gente vive que não dá» (e depois levava tudo preparado, porque ele dizia «Vais ver que o gajo pergunta-te isto, pergunta-te aquilo»). [Perguntavam]: «Então e o senhor não tem pena da sua mãe?». «Tenho. Tenho mais pena de vossa excelência, que está aqui». «Olhe que eu retiro-lhe a palavra!». Não retirou e acho que o Juiz estava a achar piada ao cachopo que se estava ali a armar. Entretanto ele irritou-se comigo e às tantas ele [diz]: «O senhor cale-se, porque está a dizer coisas que não sabe». «Sei. Sei porque vivo nessa situação. E digo-lhe mais, senhor doutor, se o senhor fosse operário, ganhasse tanto como eu, visse a sua mãe a trabalhar noite e dia, também era do Juvenil». [Diziam]: «Você é uma criança, não sabe o que é diz». O julgamento foi um escândalo, na altura falava-se muito nisso. 

Apanhei 13 meses de cadeia correcional, pena correcional. E uma multa de 300 escudos. Saí logo nesse dia em liberdade, eram 23h quando a PIDE me largou. Lá arranjei onde dormir, não sei já onde é que foi, e lá passei a noite. Foi assim a primeira prisão. Estava muita gente do Juvenil preso, porque para a PIDE e para o poder não havia mais nada se não comunistas, qual juvenil, qual meio juvenil. Depois acabou por isso, acabou porque eles [o movimento] não tinham força legal. 

O Canais Rocha veio-me convidar para entrar para o Partido. Eu estava desertinho. Era uma coisa nova, o Partido era o auge dos trabalhadores - não todos, mas uma quantidade razoável. E eu disse: «Sim senhora». Depois fiz muitas perguntas e ele respondeu-me como eu queria. Em [19]52 eu entrei para o Partido. 

O Canais Rocha e as organizações que já cá estavam do PCP e do Juvenil organizavam com facilidade, porque o Canais Rocha era um líder - era um dirigente do Partido com uma grande capacidade. Organizou - ele e o Partido - o Movimento Campista, que ainda existe aí com grande força; o Cineclube onde a gente está e mais coisas de menos importância, mas também de cariz político. Foi muito vigiado o associativismo em Torres Novas. As assembleias, os filmes, as conferências, tinham todos a honra de serem assistidos por membros da PIDE. Ainda hoje me recordo: eles chegavam, sentavam-se nas primeiras filas com um descaramento. Pronto, era a PIDE, a repressão era oficial. 

Eu, uma das coisas que gostava era de ir a França, porque já muitos campistas iam a França, não tinham problemas políticos e conseguiam o passaporte. Eu andei até que o patrão me conseguisse arranjar um passaporte. Consegui falar com o governador civil e ele simpatizou comigo. Simpatizou comigo e disse: «Você veja lá, vive sozinho com a sua mãe. O senhor engenheiro falou comigo, ele dá-lhe uma certa proteção, vai dar-lhe mais dinheiro». E deu, aumentou-me, mas de 47 para 50 escudos, por muito que me desse era sempre pouco. Eu agarrei no passaporte, convidei a minha mãe. A minha mãe não quis ir. Fui até França. Isto já era um acontecimento em Torres Novas - «O Canelas foi para França?!». 

Depois havia a má-língua: «Pois foi. Alguma coisa é, porque a PIDE não deixa ir». Havia pouca confiança nos trabalhadores, a bufaria era muita. Até se dizia: «Até com as paredes é preciso cuidado, porque as paredes têm ouvidos». 

Eu fui a França, vim. Quando vim, quando ia para trabalhar, a Segurança Pública fez um cerco à minha casa. Eu vivia num ponto onde chegavam quatro ruas - olhei e vi que cada rua tinha dois guardas. Se fugisse não tinha grande hipótese. Continuei a andar. O guarda foi muito simpático e disse: «Ó senhor Canelas, eu queria falar consigo, se não se importasse». «Vamos lá conversar» [respondi]. Vi muitos polícias, mas não me apercebi que só voltaria a casa passados meia dúzia de anos. 

Cheguei lá, não me fizeram cadastro nenhum. Meteram-me dentro de uma cela e à tarde a PIDE veio-me buscar, sozinho. Levaram-me. A coisa foi a mesma: entrei para a António Maria Cardoso, saí pelas traseiras, fui para o Aljube. Meteram-me lá numa cela e passado uns dias - era uma cela dupla - veio um rapaz de Alpiarça, também do Juvenil e do PCP, veio de Torres Novas. 

Veja lá o descaramento dos cachopos! Quando fui preso e depois me entregaram à guarda no Aljube, puseram-me lá na cela. Passado um bocado veio o guarda de serviço - estavam 4 horas de serviço - «Ó senhor Canelas, chegue aqui». Tinham uma mesazita pequena no corredor. «Como é que te chamas?» para o outro. E eu já muito alto, porque havia sinal [tosse propositadamente] «A tosse..!» - eu sabia o que eles queriam. [Perguntavam]: «Então como é que se chama?». «António Dias Canelas!». «Não fale tão alto. Ó senhor Canelas, não fale tão alto». «Eu estou um bocadinho constipado, dói-me a garganta ó senhor guarda». Toda a gente ficou a saber que o Canelas tinha sido preso - eu já era conhecido nessa altura - isso correu logo. Veja lá em situações daquelas, que são situações sérias, eu ainda me dava para brincar.  

Os interrogatórios para mim duraram mais de um mês. Encontrávamo-nos na sala da paciência. A sala da paciência era uma sala onde esperavam. Os presos tinham ali umas cadeiras e esperavam a altura de serem interrogados. 

Começaram os interrogatórios e eu não sabia o que é que me ia acontecer. Tinha a consciência que aquilo ia sendo cada vez mais difícil. Os tempos [em] que eu ia para a sala da paciência… estava lá um dia inteiro sentado à espera e depois levavam-me outra vez para a cadeia. Era [para] cansar, preparar o terreno para os interrogatórios. Isto tudo se alterou com a pancada, perto de 10 dias de estátua e [tortura] do sono. Eu fui aprendendo. Chegava a altura em que o chão - era madeira, a madeira tem aqueles nós - tudo aquilo andava a bailar. Era influência já de um certo cansaço. Depois lá me atiraram contra uma parede. Eu já não reagia, já era um farrapo. Fui outra vez. Passado um mês é que eu estava em condições de ser outra vez interrogado. Fui levando esta vida. Fui resistindo, até que a PIDE [me] deixou. Achavam-me um bocado cachopo. 

Passado 6 meses fui julgado. O julgamento foi plenário. Eram 20 e tal pessoas, foi tudo julgado no mesmo dia. Começou o julgamento e o engenheiro Clara era na altura membro da Câmara Corporativa e entendeu que me havia de ajudar. Lá lançou a ideia de que eu era um menino, era um cachopo, andava enganado. E o Juiz perguntou-me: «Ó senhor Canelas, como é que é a sua vida?». «Eu não tenho vida nenhuma. Fui denunciado» - e sabia por quem tinha sido denunciado, por um individuo chamado Tino. «Deixe-se de paródias» [diziam]. 

Como viu uma certa resistência minha, porque eu continuava a dizer que não era do Partido - e já era - não era do Partido, eles não tinham muita matéria, só tinham [aquela] informação, não fizeram grande barulho. Eu fui julgado, fui condenado em 2 anos e 3 meses de prisão maior e medidas de segurança. As medidas de segurança era um processo que a PIDE tinha. No fim dos presos acabarem a pena, faziam um requerimento ao tribunal para repetir e serem castigados com as medidas de segurança.  

Fui para a cadeia e nessa altura mudei do Aljube para Caxias. Já tinha estado em Caxias quando foi do Juvenil, já conhecia aquilo. Depois entrei na vida normal dos presos. Quando andava ali uns meses de cadeia todo satisfeito - porque eu levava a vida toda a brincar, era muito novo, não tinha as responsabilidades e também não tinha a noção delas - «Senhor Canelas», «Diga, senhor guarda». «Prepare as suas coisas, vai mudar de cadeia». Eu até julgava é que ia para liberdade, estavam a acontecer coisas tão estranhas... Foi transferência. (...) Fui transferido para Peniche. Foi o meu batismo em Peniche. 

Em Peniche fui integrado na vida prisional. Que também havia. Havia a organização toda e muito completa, onde eu fui imediatamente colocado. Era preciso fazer algumas ações com caráter de gente desinformada, que pudesse naquela altura dar uma dinâmica a certo trabalho de comunicações entre os presos e que não fosse um preso que desse muito nas vistas. Eu cheguei naquela altura, o Carlos Brito - está a ver quem é - estava no pavilhão onde eu estava. Passado poucos dias aliciou-me logo para um determinado trabalho, que não há necessidade estar aqui a dizer o nome dos organismos. Devo dizer que era um trabalho desagradável. Quando ele me pôs [ao corrente] da missão que era eu disse logo que não - ele deu-me oito dias para pensar. Ora, ao fim de oito dias eu estava maduro. [Pensei]: «Se é uma missão que é preciso fazer, vou correr esse risco». Era uma coisa perigosa. Devia encontrar-me com duas ou três pessoas que estavam a ser aliciadas para o mesmo organismo. Porque houve uma grande manifestação dos presos e houve greves e a orientação era a gente não ir à greve. Mas a organização que estava a trabalhar já sabia o que é que deviam de fazer - e eu não sabia. O Carlos Brito disse-me: «Só te mexes quando eu te disser». E eu nessa altura não aderi à greve. Fiquei como ligação aos outros. Esta informação não é pública e eu não a devo dar - mas é para ficar de certeza com a ideia que eu corria até riscos de vida, se fosse preciso fazer alguma coisa. Veja o Tereso e veja a fuga de 62 [fuga de Caxias em 1961]. Correram aqueles riscos… era uma coisa parecida que era preciso começar já a trabalhar. Quando saí, já passado dois ou três anos, quando saí para liberdade também estava em liberdade o Canais Rocha. O Canais Rocha era um individuo de uma capacidade de absorver os materiais escolares que era uma coisa grande. Arranjou um explicador e fez logo nesse ano o 1º ciclo. Eu saí nessa altura. Fui ao professor para ele me dar também aulas se pudesse, que a minha mãe disse-me: «Queres continuar a estudar, eu pago-te isso». Porque a minha mãe a única coisa que fez quando eu estive preso foi trabalhar e juntar dinheiro para [que] quando eu saísse, fazer aquilo que queria. O homem disse-me que não tinha vaga para mim. Eu fiquei com a ideia que não era ter vaga. Fiquei com a ideia que ele não me queria dar [aulas] por causa da fama que eu tinha. Tinha fama de ser malcriado para a PIDE, contavam-se histórias, uma grande parte delas não eram verdadeiras. Entretanto falei com o Canais Rocha. O Canais Rocha disse: «Não há problema» - ele já estava a fazer o 5º ano - «Não há problema que quem vai fazer o 1º ciclo és tu e mais fulano. E eu vou-vos ajudar». Assim era. Algumas coisas que ele tinha dúvidas perguntava ao professor. Quando saía das aulas, dava aulas à gente. Tínhamos a vantagem de ter um professor nosso amigo e não pagávamos as aulas. Fomos fazer exame ficámos todos bem. Entusiasmados fomos logo no outro ano para o 5º ano. 

Os presos, normalmente quando saiam da cadeia, faziam uma informação política ao Partido, ao comité central. Tomávamos medidas conspirativas quando as pessoas eram presas, logo para as prisões não terem consequências. Eu não fiz essa informação logo, mas fiz mais tarde. Foi quando o Partido resolveu criar a ARA. 

Eu fui aliciado para colaborar nesse organismo - que fiz muito pouco, depois fui preciso noutros trabalhos, fui desviado daí - no norte do Ribatejo. Fui o primeiro dirigente do norte do Ribatejo da ARA. Aquilo teve o seu andamento, os aviões, os helicópteros, mas eu nessa altura já nem estava na ARA. Para o senhor ficar a saber que fui responsável por isso. 

Entretanto deu-se o 25 de abril. Ora o 25 de abril apanhou-me na cama! Mas havia em Torres Novas um oficial militar que se dava muito bem comigo e andava-me sempre a bater nas costas [disse] «Desta vez é que vai». Porque eu tinha-lhe dito que quando os organismos revolucionários nas suas decisões chegam a meu conhecimento a revolução está perdida. [Respondeu]: «Então porquê? Não tens confiança em ti?». «Não, não tenho é confiança em vocês! Já fizeram tantas revoluções...!». Até que uma foi a sério.  O 25 de abril foi a sério. 

Só houve uma coisa que mudou [a liberdade], [porque] continuaram as responsabilidades políticas, a reorganização de alguma coisa que não estava bem organizado por causa das dificuldades e a vida continuou até hoje".