Nome: José Pedro Correia Soares
Ano nascimento: 1950
Local do registo: Algés
Data do registo vídeo: 19-10-2021

Transcrição

"Eu creio que já era um menino grande, talvez com uns sete ou oito anos, [quando] comecei a ouvir falar de Caxias e de Peniche, e até de outras coisas que tinham acontecido - uma vez em Vila Franca meteram as pessoas na Praça de Touros… e também ouvi falar das eleições de Humberto Delgado. Foram acontecimentos que marcaram, penso eu, muita gente daquela altura, mas eu não tinha consciência do que se tratava.

Mais tarde acabei a 4ª classe - eu sou de uma região agrícola de Vila Franca [de Xira], de Cachoeiras. Todos os meninos e meninas da minha idade não iam estudar, eram poucos - dois ou três - grande maioria continuava a ajudar os pais na agricultura e quando tínhamos aí 13, 14 anos vínhamos trabalhar. As raparigas vinham trabalhar na costura, para as alfaiatarias, para empresas de trabalho feminino e eu vim trabalhar para uma tipografia. Ajudei o meu pai ainda na agricultura, pastoreei ovelhas, depois aos 13 anos fui trabalhar para uma tipografia. Quando cheguei à tipografia notei um problema: é que eu dava erros. Os tipógrafos não podiam dar erros, eram compositores manuais, encadernadores, impressores. Eram pessoas esclarecidas e sobretudo no que toca à gramática eram bons naquilo. Então senti uma certa atrapalhação, comecei a ir à biblioteca de Vila Franca, levantar livros e ler. Recordo-me de ler os Gaibéus, os Avieiros, O Muro Branco - os livros do Redol, lia quase todos e outros de autores portugueses. E nessa altura também decidi inscrever-me na escola à noite de Vila Franca - Escola Técnica Industrial. Foi para mim muito importante.

Os tipógrafos eram uma classe esclarecida, já não trabalhavam no 1º de maio. Fazíamos um convívio - não fazíamos jornadas combativas, mas havia um convívio entre eles e não trabalhavam. Era uma classe, que nesse sentido era a única que fazia isso - os tipógrafos e os fotógrafos.

E depois na escola à noite foi muito importante, porque em Vila Franca havia uns jovens que trabalhavam naquelas empresas todas, desde Alenquer, até Póvoa de Santa Iria, Magas, oficinas de material de aeronáutica, o Cimentejo, a Sodapóvoa. Então conheci jovens de muitos daqueles sítios e nós tínhamos coisas em comum.

À noite começámos, muitas vezes, a reunir, a fazer reivindicações. Porque nós começávamos a trabalhar nas empresas de manhã, às 6, 7 horas, tínhamos aulas das 19h às 23h e queríamos tomar uma refeição ao fim do dia e tinha de ser na cantina da escola. Começámos a fazer reivindicações desse tipo: não pagar propinas, queríamos ter uma biblioteca na escola. Conseguimos fazer um movimento muito interessante. Até chegámos a eleger delegados de turma, mas aquilo foi assumindo alguma politização e depois confrontámo-nos com a direção da escola. Mas foi muito importante para aqueles jovens, que também nas empresas onde trabalhavam, que conheciam situações dessas. De haver operários esclarecidos que queriam fazer bibliotecas, que falavam com os mais novos, chamavam a atenção para os regimes de trabalho, para os horários dilatados, para a falta de condições.

Nesta altura houve uma coisa importante que foi: iniciou-se em Portugal a semana inglesa. Todas as pessoas que trabalhavam ao sábado, passaram só a trabalhar ao sábado até à hora de almoço. Mas nós, os aprendizes, tínhamos de trabalhar de tarde. Recordo-me que ficava de tarde a limpar as máquinas, os tinteiros das máquinas, limpar o chão, o óleo das máquinas, tudo aquilo, só depois é que saíamos. Nós tínhamos uma situação bem mais difícil nesse sentido. Portanto fui tomando consciência disso tudo ao mesmo tempo.

Havia amigos que falavam comigo e a certa altura houve um que me deu um Avante. Eu achei muita piada áquilo porque o Avante falava das lutas dos pescadores, dos ferroviários, até dos movimentos de libertação e congressos que se realizavam, internacionais. Epá tão interessante, sempre ouvi falar disto, mas com esta linguagem, com este pormenor e com esta informação nunca consegui. Então fui tomando assim consciência política da situação em que vivíamos.

A certa altura também entre nós, nos nossos convívios, começámos a cantar as cantigas do Zé Afonso, do Adriano [Correia de Oliveira] e havia alguns que traziam um abaixo-assinado para libertação dos presos políticos ou contra a guerra colonial e diziam: «Nós temos de criar um movimento para todos os jovens poderem votar a partir dos 18 anos». Aproveitávamos as condições legais e semilegais para nos juntarmos, muitas vezes até organizámos campeonatos de futebol, convívios… era a forma de nós falarmos sobre política.

A certa altura houve outro acontecimento muito marcante da minha vida e em toda esta região: foi as cheias de 1967. Foi uma coisa muito dramática. Eu trabalhava em Vila Franca, na tipografia, estudava à noite e na altura até tinha um quarto alugado em Vila Franca. Eu recordo-me que quando me levantei de manhã havia uma altura de lama, depois comecei-me a aperceber que o que aconteceu foi uma tromba de água - uma corrente fria vinda do norte da Europa, outra quente vinda do lado da América, chocaram-se aqui, creio que em frente ao Estoril, então caiu muita água. Sobretudo havia muitas barracas, junto destas ribeiras de Algés, de Dafundo, do Rio Trancão, em Alverca, em Alhandra, em Vila franca, o rio que vem de Arruda dos Vinhos até ao Carregado, o rio que vem de Alenquer - a quantidade de água foi enorme - muitas dessas barracas foram [destruídas]. No Carregado, junto à ponte da Couraça, havia um gradeamento e as coisas e as árvores começaram a fazer uma empilhagem, formou uma barreira muito grande, então formou-se um mar de água e o Lugar das Quintas ficou todo debaixo de água. Havia familiares meus que moravam lá e morreram. Foram centenas de pessoas. Quando chegou às 400 pessoas o Regime correu com os jornalistas, não queria a informação, porque foram muitos mais mortos e aquilo chocou-me muito. Não só a situação em que as pessoas viviam, em barracas, a situação dramática de pobreza que havia, mas também esta coisa de ocultar a informação - e tinha que se saber o que se passou. Então, na altura, muitos jovens se mobilizaram. Recordo-me que o Instituto Superior Técnico fechou e a associação, que era muito forte, mobilizou todos os jovens para Alenquer, para aqueles sítios todos, limpar os corpos, limpar as casas. Isto foi muito chocante para mim e apercebi-me melhor da natureza do fascismo.

Na altura já havia outra coisa, que era a guerra colonial. A guerra colonial atingiu-nos todos. Todos os jovens eram chamados para a guerra colonial: para Angola, para Moçambique, para a Guiné. Revoltámo-nos contra a guerra. (...) O continente africano tinha sido, todo ele, colonizado e agora só restavam as colónias portuguesas, porque é que o governo português não avançava com outra solução? Criaram-se diversos movimentos de opinião contra a guerra colonial. Foi um fator novo e muito aguerrido dos jovens lutarem contra a guerra. Alguns fugiram, iam para o estrangeiro - criavam até lá comissões para contestar a guerra e de solidariedade com os presos, exigindo a libertação dos presos. Outros, aqui, a opinião dos jovens progressistas aqui - que era o meu e dos jovens comunistas – era: «fiquemos na tropa e lá combateremos esse combate, mobilizando, consciencializando. Porque se a gente formos embora o fascismo está mais à vontade. Encontrar a consciência dos outros. Nós temos de lá travar essa batalha».

Foi muito importante, porque próximo do 25 de abril havia muitas comissões de jovens em muitos quartéis e ajudaram - por acaso todos os jovens aderiram ao 25 de abril. Quando o Salgueiro Maia disse: «Quem quer ir?» - ninguém disse que não queria ir. [Risos] Esse fator da guerra foi muito importante.

Houve outro acontecimento, nos anos 1967, o Salazar cai, aqui no Estoril, próximo de Lisboa e bate com a cabeça e fica sem condições para governar. Passado um mês ou dois é substituído pelo Marcelo Caetano. Tudo isto é discutido depois, publicamente. As pessoas nas tabernas, havia muitas tabernas, muitos cafés: «Caiu o ditador, agora é que vai ser!». Havia esta esperança. Isto era tudo muito comentado. Entra o Marcelo Caetano, com aquelas conversas muito família - enganou um conjunto de pessoas, porque a repressão veio logo a seguir.

Entretanto há um aspeto marcante aqui na minha vida, dos jovens da minha geração. Foram as eleições de 1969. Que a oposição democrática aproveitou, porque tinha havido o 2º congresso de Aveiro, para desenvolver uma grande campanha de massas. Desenvolver, reunir os homens, as mulheres, nas empresas. Fazer grande campanha, fazer comícios, inscrever as pessoas nos cadernos de recenseamento. Tudo aquilo foi uma grande chapelada, mas foi uma grande campanha de esclarecimento. Logo a seguir a essas eleições começou a repressão, nos fins de [19]69, 70.

Depois há outras coisas marcantes a seguir - em 1970 matam o Eduardo Mondlane, dirigente da FRELIMO [Frente de Libertação de Moçambique]. A seguir matam o Amílcar Cabral, que era uma coisa que nós falávamos muito entre nós, jovens, porque o Amílcar Cabral dizia: «A luta é comum. É dos portugueses e nós, africanos. O nosso inimigo é o fascismo». Era uma referência cultural da oposição e isso tocou-nos muito. Nessa altura a luta já era muito grande.

Já nos anos 70 há uma coisa que pouca gente sabe, a fuga de Caxias. Foi muito importante, libertou um conjunto de pessoas que já eram quadros preparados, pessoas que tinham passado algumas vezes pela cadeia, pessoas bem formadas. Coincidiu também com a grande fuga de Peniche, foi para aí cerca de 20 quadros do Partido Comunista. Foram muito importantes.

Esta gente juntou-se num 5º Congresso, creio que nos anos [19]65, 66 e definiu rumo à vitória. Aliás, até existe um livro de Álvaro Cunhal que se chama Rumo à Vitória. E disseram: «O governo não cede, o fascismo não cede, nós temos de desenvolver a luta dos jovens trabalhadores, dos jovens estudantes, das mulheres, dos sindicalistas, nas empresas, até nos quarteis». O movimento intelectual, movimento dos escritores, o movimento dos professores, o movimento de solidariedade com os presos. Mesmo no estrangeiro, jovens que tinham emigrado, a criar comissões de solidariedade, denunciando. Houve mais rádios a transmitir diretamente para Portugal. Isto foi tudo muito forte. Também o apoio aos movimentos de libertação, conjugando estas lutas. Não é por acaso que nasce a CGTP [Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses] em 1970, nasce o Movimento Democrático das Mulheres, o Movimento dos Jovens Trabalhadores. Sobretudo os jovens estudantes têm uma força incrível, desde 1962, os jovens estudantes, logo no início do ano escolar, avançam para lutas tremendas. Param tudo, param as universidades. Os comunistas são submetidos, o governo aparece com os gorilas, com cães e com os polícias, tudo isso como aconteceu em muito sítio.

A luta vai endurecendo. Estamos na fase já da crise geral do fascismo, já nos anos 70. Até porque a certa altura o governo já não tem oficiais que cheguem para comandar o exército, têm que promover jovens alferes a capitães, para poderem comandar. Os outros que estavam lá há mais tempo, tinham passado pela Academia, pela formação militar, ficaram muito chocados com aquilo. Terem outros tão jovens com as mesmas condições. Iniciaram-se um ciclo de reuniões, sobretudo na Guiné, onde eles tomam consciência. Há um decreto do governo na altura do Sá Miranda, o ministro, que o decreto foi anulado, o ministro foi demitido, mas os jovens que estavam na Guerra Colonial disseram: «Não, não. Mas isto não chega. O governo é que tem de ir ao ar» - foi quando se generalizou as reuniões do Movimento das Forças Armadas. Quiseram depois em Portugal ter essas reuniões, até que depois se deu o 25 de abril.

Eu, na altura, já não assisti a esta parte. Eu já estava ligado, entretanto - e eu aceitei. Fui convidado para pertencer ao Partido Comunista Português. Como era muito dinâmico - na escola técnica, trabalhava em Alverca - conhecia muitos jovens e trouxe muitos jovens. Ajudei a construir células, organismos do partido nessas empresas todas. Porque o partido entretanto envelheceu, muitas das pessoas foram presas. Rapidamente a PIDE fiscalizava, porque havia agentes da PIDE e bufos em todo o lado, em todas as empresas, em todas as escolas, em todas as terras. Essas pessoas já estavam queimadas - tinham dificuldade. Então o partido fez bem, arranjou estes jovens, esta malta que não estava tão queimada e deu-lhes [responsabilidades]. Eu trouxe muita gente, era muito ativo nesse sentido. Já estava em contacto com pessoas da direção do Partido Comunista Português que viviam na clandestinidade. Ao mesmo tempo eu pertencia ao Movimento Democrático - que realizou as eleições, que fazia estas reuniões abertas, esses comícios falando das eleições, dos direitos democráticos. E estava ligado a um movimento da juventude, que na altura ainda não era o Movimento da Juventude Trabalhadora, era o movimento que envolvia jovens trabalhadores e jovens estudantes. Nós juntávamo-nos muito para fazer convívios, para cantar o José Afonso, convidávamos cantores.

Na altura até houve uma coisa interessante. Quando trabalhava em Vila Franca, eu e uns amigos meus organizámos uma coisa que se chamou o «34». Era uma casa em Vila Franca que estava ligada ao Padre Moniz. Era um bairro do Padre Moniz, de uma associação que ele geria. E nós ali eramos sobretudo jovens trabalhadores - Joaquim Alberto, o Afonso, eu, diversos - começámos a ir para lá, dormíamos lá, era a nossa casa, então às sextas-feiras fazíamos grandes convívios. Chegou a lá ir o Fanhais, chegou a lá ir muita gente cantar. (...) As pessoas saíam dali... os jovens ficavam dali com uma força… Depois nos outros dias iam para as suas terras, para as suas empresas e também cantavam aquilo. Venham mais cinco ou aquelas cantigas do José Afonso, do Adriano. Discutíamos publicamente as coisas e isso foi muito importante. É uma espécie daquelas repúblicas de Coimbra, simplesmente em vez de serem estudantes era uma república de jovens trabalhadores. Teve uma influência muito grande em toda esta zona, na escola técnica. As pessoas passaram todos os dias lá, a porta estava quase sempre aberta, vinham do emprego e iam lá ao «34». A PIDE acompanhava, mas não esperava que a partir dali a consciência se elevasse tanto. Um conjunto de ações em Vila Franca, o 1º de maio, manifestações que fizeram que foi dali que partiram. portanto, a certa altura, foi muito importante.

Eu quando fui preso, apanharam-me lá [com] muitos papéis. Não consegui tirar as coisas a tempo, portanto apanharam-me um conjunto de papéis. Foi sobretudo nas ações ligadas às células do Partido Comunista Português, que ajudei a desenvolver com outros amigos. Foi neste movimento unitário, de oposição democrática, dos jovens trabalhadores que eu desenvolvi muito a minha atividade.

A partir de certa altura, eu já tinha muita responsabilidade e o Partido disse-me: «Tu não podes continuar. Qualquer dia eles prendem-te. É muita coisa, tens de passar para a clandestinidade». Mas eu estava na tropa na altura. Trabalhava em Alverca, íamos fazer dois meses de tropa, estava na Carregueira. E nessa altura foi preso um clandestino que era dirigente do Partido, que traiu.

Eu estava na Carregueira e a certa altura, quando jurei bandeira, foi no mesmo dia em que jurei bandeira, no dia 30. No dia um fui preso. Depois soube que ele traiu, denunciou tudo o que sabia, foram presas mais pessoas. Foi o motivo imediato da minha prisão - não foi por aquilo que eu desenvolvia. Também já na tropa e no quartel com outros jovens fazíamos muita coisa lá, coisas muito interessantes. Aliás, eu quando fui preso, fui metido lá na cela e o comandante do meu pelotão veio-me dizer: «José Pedro, eu posso soltá-lo, mas fico eu preso. O que é que você quer?» - era um homem já com uma consciência. E apercebia-se da minha atividade no quartel e dos outros jovens, contra a guerra - fazíamos palestras, pedíamos a palavra e contrariávamos aquilo que diziam-nos.  «Os jovens africanos e nós somos irmãos, separados. A guerra não interessa a ninguém». As coisas eram muito vivas, a nossa argumentação.

Então fui preso no dia 1 de julho, de manhã. Fui cercado por espingardas: «Está preso!». Disseram-me que tinha sido uma ordem da direção do exército da região de Lisboa. Depois, por cerca do meio-dia, foi lá a PIDE buscar-me. Quando a PIDE foi buscar-me, com jipes, eram dois jipes, todo o meu pelotão juntou-se à porta com o braço no ar. Porque quando se está na tropa as pessoas às vezes são conhecidas não pelo nome, mas pela terra - eu era o Vila Franca: «Vila Franca!». Aquilo para mim foi extraordinário, foi uma solidariedade muito grande.

Cheguei à António Maria Cardoso, que era a sede da PIDE em Lisboa. Procuraram saber quem eu era. Tiraram aquelas fotografias, nos seus ângulos - são as fotografias clássicas, conhecidas. E começaram-me a fazer perguntas: «Então, agora tens de explicar que pertences ao Partido Comunista Português, que fazes não sei quê». E eu recusei-me. «Ai não queres responder? Então voltas para cá amanhã». Levaram-me para Caxias. Então começa o meu período de Caxias, onde passei 23 meses. Numa sala isolado, tiraram-me tudo o que havia - relógio, anéis, coisas assim.

No outro dia trouxeram-me para a António Maria Cardoso, logo assim de manhã, para uma sala onde havia uma secretária, duas cadeiras e começaram-me a fazer perguntas, logo de manhã. Eu disse que não tinha nada para esclarecer. A certa altura, já ao fim do dia, tiraram-me a cadeira. E eu disse: «Então a partir de agora não como». E estive assim durante 6 dias. Ao fim dos cinco dias já estava muito... queriam-me meter um tubo, queriam-me meter leite. Lá esperneei, esperneei, não conseguiram fazer aquilo. Mandaram-me novamente para Caxias, para dormir uma noite.

Durante esses seis dias, 6seis noites, houve muita provocação, ainda me agrediram, mas foi mais o insistir: «Tens que falar, tens que falar». Nunca me deixaram dormir, faziam barulho com umas moedas em cima da mesa, mandavam-me copos de água. Aquilo era muito doloroso. Quando chegava às três, quatro da manhã era uma coisa horrível, não sei se havia uma maior intensidade de luz na sala. Sempre ouvi dizer, quando os meus companheiros tinham sido presos, que estavam três, quatro, cinco, sete dias! Eu estava há seis dias, eu [pensava] assim: «Fogo, já passou, já foi». Não. Puseram-me em Caxias, no outro dia tive uma visita com a minha família. Eu procurei ir alegre, porque se eu fosse cabisbaixo, eu já não conseguia suportar. Fui alegre, resistente.

Então assim que acabou a visita, trouxeram-me novamente para Lisboa. Estive mais seis dias e mais seis noites na António Maria Cardoso. Aí já foi mais duro, já me agrediram muito. Com ameaças diversas, muitas provocações à namorada, à família. A certa altura, recordo-me na quarta ou quinta noite, eram para aí 6h da manhã, o dia estava já quase a abrir, trouxeram-me um conjunto de fotografias. «Estás aí armado em herói. Estás a ver? Tens aqui os teus camaradas todos». E eu olhei, conheci-os todos. Disse: «Não conheço ninguém». Isto foi muito brutal para eles, agrediram-me logo muito. Agrediram-me... nesse dia foi uma coisa horrenda.

Então estive estes seis dias e seis noites, mandaram-me novamente para Caxias. Eu disse: «Epá, já são 12. Doze eu não conhecia assim. Deve ter parado». Estive uma semana sem nada, passado uma semana levaram-me dois dias para Caxias, para o Reduto Sul. Dois dias e dois noites. Depois terminou e eu [pensei]: «Pronto, já terminou». Não. No dia sete de agosto até ao dia 26 - durante 21 dias levaram-me para a sala de interrogatórios. Estive 21 dias na sala de interrogatórios, no Reduto Sul. Foi quando foram transferidos os interrogatórios de Lisboa para o Reduto Sul.

Os primeiros oito dias foi muita pancadaria, estava todo negro. Havia um médico que vinha todos os dias medir a tensão, vinha um enfermeiro pôr-me pomada nas coisas. Cheguei a ter assim a cabeça toda... não conseguia rodar. Os olhos, não conseguia quase abrir. Eles até pelas orelhas rebentavam-me. Deram-me muita pancada nas canelas, muita coisa. Tenho muitas, muitas coisas ainda no corpo. Muita pancada. A certa altura parecia que estava inchado. Os pés, os sapatos já não cabiam, já andava descalço.

Ao fim da 5ª noite aconteceu uma cena brutal. Encheu-se a sala de PIDEs. Eu contei, eram 18, na minha opinião - houve dois

Dois inspetores, o Tinoco e outro: «Então, falas ou não falas?» - então houve um que puxou um «cavalo-marinho» que tinha assim entre as pernas, era uma fita de cabedal, aquilo parecia o circo. Ele devia ser mestre naquilo, apanhou-me muitas vezes nas costas, a roupa ficou toda cortada, queimada. Depois como não me tiraram aquilo, no dia seguinte estava já com pústulas agarradas às costas. Fiquei durante muito tempo com marcas nas costas. Foi uma coisa brutal.

Mas ao fim do 8º dia eu estava muito perdido. Já não sabia onde estava, batia muito com a cabeça na parede, não sabia que era uma sala. De vez em quando via com mais clareza que havia ali uma janela, mas depois via janelas em todo o lado, olhava o chão... era um filme completo, que não conseguia perceber onde é que estava. Devia estar já muito desnorteado. Já urinava sangue naquela altura. Eles davam muitas joelhadas. Havia uma brigada, um grupo que entrava de dois em dois horas, que batiam, batiam, batiam. Empurravam-me contra a parede, puxavam-me pelos cabelos. Davam muitas joelhadas, sobretudo aqui em zonas... Um dia estava a fazer chichi - eles viram - e o meu chichi era vermelho mesmo. Muitas dores nos rins.

Ao fim desses oito dias trouxeram um colchão, puseram-no lá a um canto e deitaram-me ali. No outro dia acordei espantado, estavam dois PIDEs de cada lado, mandaram-me levantar. Estive mais 11 dias e 11 noites seguidas. (...)

Foi muito doloroso, muita pancada. Esses dois PIDEs, sempre que estavam de serviço, não paravam um minuto. Pareciam cães raivosos. Puxavam pelos cabelos, pelo nariz, cuspiam-me na cara, empurravam-me, chamavam-me todos os nomes. Uma coisa bárbara: «Fala! Fala! Fala!». Aquilo era assustador.

Recordo-me que uma vez antes do fim de semana eles dizem: «Eu tenho programado com a minha mulher ir passear. Se eu tiver que vir para cá, eu mato-te! Se tu não falas e se eu tiver...!» - e eles tiveram que cumprir esse fim-de-semana, mais o outro fim-de-semana, [Risos] mais o outro fim-de-semana. Bem, pareciam cães, até se babavam. Socos de um lado, do outro. A certa altura entrava alguém e dizia: «Chega!». Devia ser assim, porque eu já estava todo cheio de sangue, o chão. A minha cara era uma festa. Socos... não era a brincar, era mesmo a sério. Sabiam em que parte dar. Os meus braços, parecia que tinha gangrena. Aliás, chegaram-me a despir todo, fiquei em cuecas, e besuntaram-me - o enfermeiro - com Hirudoid, com pomada, fiquei todo branco, porque estava todo...

Assim, no final deste período, eu já estava que não sabia. Sei que a certa altura eu já falava, dizia: «Então mãe!», eles riam-se muito. Eu estava-me a passar, acho que se prolongassem mais eu morria, porque eu já estava no final. A certa altura pensei: «Eu, falar nunca!». Até tinha pensado em certa altura: «Se eu vir que as coisas estão a fraquejar, eu corro para a parede. Dou uma carolada e pronto. Se eles não param com isto, sou eu que tenho de parar por mim». Eles deviam pensar que eu já estava a passar para uma outra fase. Se aquilo se prolongasse... porque eu sentia que já não - já estava noutro mundo, já não conseguia ver nada, era uma alucinação completa. Acho que se tivesse falado era um frangalho. Tinha ido logo para o estrangeiro, que eu não conseguia.

Aquilo foi muito doloroso, às vezes beliscava-me. Eu recordo-me de estar nos interrogatórios - uma coisa gira - a volta a Portugal começou e acabou e eu sempre dentro da sala de interrogatórios. Eles tinham um rádio que ouvia, eu recordo-me: «Agora a subir a Serra da Estrela..!». [Pensava]: «Eu sou um deles! Estou aqui a pedalar». Exemplos perfeitamente ingénuos, mas aquilo dava-me força. Ele há de chegar lá acima, eu também hei de chegar lá acima! [Comove-se] São coisas muito fortes. Servi-me destes pequenos exemplos, deste registo. Esse corredor a subir e eu estava ali - era uma prova também. Faltava, ele também faltava. Ele era uma hora, eu era não sei quanto. É mais um dia, é mais um dia. Isto há de acabar. Porque eu sabia que os outros eram sets, oito dias, mas 11 dias? Estar 21 dias na sala de interrogatório? Já não conhecia ninguém.

Então depois levaram-me, assim por baixo dos braços, mas depois já não sei mais nada. Sei que acordei no outro dia, já em Caxias, no Reduto Norte, em cima de uma cama, a meio da tarde. O guarda veio dizer: «Então, quer comer?». No outro dia de manhã houve um guarda - havia um corredor lá em Caxias, lá em cima no terceiro andar, que era a zona das celas, onde estávamos isolados. A última cela era o barbeiro. Era guarda, mas era barbeiro. Recordo-me dele me vir buscar, sentar-me lá na cadeira e com uma tesoura começou primeiro a cortar a barba, antes de pôr a lâmina: «Você passa tanto tempo lá em baixo. Os outros já desceram todos». Isto foi muito importante para mim. Aqueles que foram presos comigo já tinham passado a regime normal. Isto foi uma barbaridade - 33 dias e 33 noites. Quando passei, depois, para regime normal os meus amigos [disseram]: «Isso são quase 1000 horas que passaste aí. É uma coisa incrível». Ao mesmo tempo foi muito importante, nunca abri a boca, não denunciei ninguém.

Eu tinha já muita responsabilidade. Já recebia, naquela altura, quase 300 Avantes clandestinos. Isto é uma coisa... não sei se hoje se vende no concelho de Vila Franca 300 Avantes. Eles sabiam disto. Eu tinha mais responsabilidade do que quadros clandestinos do Partido Comunista Português. Eles sabiam que o partido me tinha convidado para a clandestinidade e que eu tinha aceite. Eles sabiam que se eu passasse, seria um dirigente do Partido - como foi o Dias Lourenço - aqueles que são presos e são soltos e continuam. Então se eu falasse interrompiam esse ciclo - até porque ficava queimado, os meus amigos, ficaria uma pessoa derrotada nesse sentido. É tudo isso, foi pela atividade e foi por eu ser muito decidido e não falar.

Hoje sabe-se que as pessoas que foram presas portaram-se com dignidade, mas grande maioria confirmou as coisas. Houve um ou outro que traiu, mas isso são casos raros. Quando chegavam lá eles já sabiam das reuniões, muitas vezes já sabiam onde é que tinham estado. As pessoas diziam: «Não, não», mas depois acabavam por confirmar coisas, desviando sempre e procurando evitar. Mas houve casos que houve pessoas que nem o nome diziam, não disseram nada - isso para eles eram exemplos que não podiam continuar, porque era mau que assim acontecesse, porque se eles não conseguissem obter informações, não conseguiam destruir as organizações.

Foi muito importante para mim e para os meus amigos, que quando eu fui preso, ter-me portado bem. Para os jovens trabalhadores, para os jovens estudantes - aliás eles fizeram papéis nesse sentido. Foi muito importante. Os PIDEs, recordo-me que depois passado uma semana, quando terminou os interrogatórios, chamaram-me lá para fazer os autos finais, todos eles muito acabrunhados. Havia assim umas secretárias com máquinas de escrever: «Sendo perguntado quando iniciou a sua atividade no Partido Comunista Português - recusa-se a responder. Sendo perguntado... - recusa-se a responder. Quando levava livros para teorizar e preparar os seus companheiros - recusa-se a responder». Eram dezenas e dezenas de «Recusa-se [a responder]». Eu senti um orgulho naquilo!

Depois mostraram-me uma caixa grande de documentos que tinham apreendido - não era só a informação que contraíram, mas apanharam em Vila Franca, em casa, uma caixa cheia de Avantes clandestinos, até alguns já embrulhados, tinham lá o nome, mas era um pseudónimo. [Perguntavam]: «Quem é o Dionísio?» - só eu é que sabia quem era o Dionísio. (...) Aperceberam-se que não havia muita gente que fizesse aquilo que eu fazia, com aquela caixa de Avantes - recebiam três, quarto, cinco distribuía…

Estive até ao dia 27 de setembro, cerca de três meses em isolamento. Depois vim para o regime normal, estive com diversos companheiros. Foi uma grande festa quando entrei na sala, quase todos choravam. Porque sabiam o que tinha acontecido comigo. Eles tinham também sido muito castigados, mas tinham sido menos, sabiam a minha situação. Abraços grandes...

Entretanto começou o processo para julgamento e eu tive, novamente, um processo complicado. É que o meu julgamento transitou para o tribunal militar. Todos esses meus companheiros foram julgados, vieram para o tribunal, apanharam 18 meses, 17 meses e acabaram por sair quase todos. Eu, quando eles saíram, ainda não tinha sido julgado. Estive 23 meses à espera, porque transitei para o tribunal militar, fui julgado em Santa Clara. Depois acabei por ser julgado e ainda apanhei mais tempo - apanhei três anos e meio. Tinha advogado, que era o Correia Neves - que faleceu há pouco tempo. (...) Já havia a Comissão de Socorro aos Presos Políticos, denunciavam esses casos todos.

A certa altura os meus companheiros disseram-me: «Ó Zé Pedro, tu tens de escrever isso tudo». Então eu escrevi aquilo nas mortalhazinhas. «E agora como é que se faz chegar isto lá fora?» [pensei], não sabia muito bem. Um dia tive uma visita comum, fazia anos, então agarrei nas mortalhas todas - eu fumava cigarros do Porto, abria assim um bucal em cima. Tirei os cigarros todos, cortei-os, consegui lá pôr as mortalhas e pôr os cigarros. Antes de ir para a visita comum nós eramos todos revistados. Eu levava o maço de tabaco na mão, o guarda deixou-me passar o maço de tabaco e depois, lá na visita, troquei com o meu irmão, que também fumava Porto. Cá fora começaram a abrir os cigarros e só viam meio cigarro, meio cigarro. Estava lá o rolinho das mortalhas.

Depois sei que o Movimento Democrático das Mulheres fez um caderninho com isso tudo, foi muito divulgado. Foi uma das formas de divulgação do que tinha acontecido comigo.

A certa altura, já depois do 25 de abril, encontrei pessoas que me vieram dar um abraço. «Epá. Zé Pedro, sabes que nós tínhamos a tua fotografia. Projetávamos, em Itália, lá numa parede à noite. Púnhamo-nos em cima do banco: «Este jovem está preso em Portugal. Foi muito torturado, como outros jovens. É necessário...». Faziam a denúncia do que era o fascismo, do que era a guerra colonial e apelavam à libertação dos presos políticos portugueses, a exigir essas ações. Esse caderninho que o MDM, Movimento Democrático das Mulheres, fez foi muito divulgado - até tinha um desenho, que depois encontrei depois do 25 de abril.

Um dia fui à Torre do Tombo ver o meu processo. Então o que é que lá estava, na Torre do Tombo? Um conjunto de 10 folhas A4 que dizia «Confidencial». Tudo isso foi lido numa rádio clandestina - na Rádio Portugal Livre - a PIDE ouviu e passou a papel. Então está lá «Confidencial». Tinha apenas um parágrafo introdutório: «Vamos agora descrever o que se passou com o jovem José Pedro Correia Soares, operário das oficinas de material aeronáutico de Alverca». E depois começam a ler, certamente que foi assim, todo aquele texto. Isto foi muito divulgado, o próprio Avante clandestino fez diversas referências ao meu caso, como outros presos políticos. As pessoas sabiam.

Nós, os presos, fomos sempre muito bem tratados pelos companheiros e pela população - assim aconteceu depois do 25 de abril.

Quando entrei em Caxias estive em dois sítios. Primeiro, quando estava em isolamento, estava numa cela voltada para a frente. Via umas barracas - agora não sei se existem. Recordo-me que, como não tinha relógio, via as horas [por] um poste de eletricidade e sabia que às 4 horas era mais ou menos ali, sabia que a horas é que estava. As mulheres a ralhar com os miúdos, coisas assim, não havia mais nada. Apenas o barulho nos corredores, quando abriam portas, levavam e traziam presos.

Depois a certa altura passei para a parte de trás, voltado para o muro, para a sala 17,…já não me recordo. Então via-se só o muro, via-se sombras. Ainda procurava fazer assim sombras [acenando com as mãos] a ver se agente conseguia transmitir algumas coisas. Havia nessa altura um companheiro que me batia na parede. Eu fazia assim [gesto de bater com a mão na parede], mas não conseguia ler, depois mais tarde é que soube que havia morse, que há aquela possibilidade de comunicar e era isso que ele queria fazer comigo, mas eu não fui capaz de acertar com as coisas. Então estive assim no regime de isolamento, não tínhamos nada, estava sempre ali à espera que viessem dizer [qualquer coisa]. Muitas vezes era assim ao fim do dia, quase à noite: «Prepare-se para ir lá abaixo!» - era para vir para os interrogatórios. Metiam-nos dentro daquela carrinha fechada, havia um túnel por onde a gente passava, vínhamos para Lisboa… em Agosto já era no Reduto Sul do forte de Caxias, que eram salas com paredes muito fortes. Havia dois cães-polícia à frente. Aquilo era tudo muito medonho, tudo assustador, tudo de medo.

Nos interrogatórios uma coisa que acontecia, ao fim de uns três, quatro dias, ouvia muitas vozes, guinchos, barulhos - às vezes parecia a fala da minha mãe. Era também os barulhos sonoros. A seguir ao 25 de abril pediram-me, da televisão, para ir lá fazer uma descrição. Eu estive na sala de interrogatórios e abria a mesa, os barulhos e falava disso - e eles disseram: «Então não vê, está ali aquele buraco na parede? Ali é que estava aquela caixa, tinham uma sala com uns aparelhos que transmitiam para aqui isso tudo». Portanto, tinham encontrado depois do 25 de abril todo o processo que eles tinham para transmitir esses sons. Então era verdade aquilo que os presos diziam, que ouviam vozes familiares, ouviam guinchos, ouviam pessoas a ser sovadas - tudo isso fazia parte do aspeto psicológico.

Em Caxias foi isso, depois a passagem para o regime normal, cá para baixo. Isto para mim foi um alívio muito grande. Eu recordo-me quando cheguei, eles batiam na parede, faziam: «Já chegou o José Pedro Soares» - [através de] morse, que os presos transmitiam entre si. Também havia outras formas, a certa altura, já não me recordo se era o José Magro, nós iniciámos um conjunto de lutas e depois fiquei um bocado responsável por essas coisas na cela - às vezes escrevia isso em mortalhazinhas e tinha que transmitir.

Não tínhamos formas de comunicar uns com os outros, então o que é que fazíamos? Quando íamos lavar roupa - eu tinha uns peúgos que tinham uma dobra - deixava aquilo ali pendurado - eram uns peúgos castanhos - deixava lá pendurado os peúgos e quando a outra sala vinha, encostava a roupa ali e levavam os meus peúgos. O peúgo castanho era a forma de transmitir as mensagens entre salas. Era uma das formas que fazíamos passagens da nossa informação. Nas salas procurávamos - havia alguns mais letrados, tinham outra formação - procurávamos ajudar os que sabiam menos, dando aulas, comentando coisas. Íamos procurando sempre fazer aquela vida regrada, fazer ginástica sempre para não ficarmos isolados. Havia umas salas sem teto, que eram o nosso espaço de recreio, íamos lá uma vez por dia - nós não tínhamos contacto com os outros, mas íamos os cinco, seis da sala. A cadeia é um pouco para levar as pessoas abaixo, levarem a perder convicções, a desistirem das suas ideias - nós queríamos aproveitar para o contrário. Muitos acabavam por sair de lá mais politizados e mais preparadas e melhores cidadãos até, porque tomavam maior consciência das coisas. As cadeias, para nós, eram quase as universidades e a PIDE sabia, é por isso que às vezes nos separava, mas não tinham outra solução, tinham de nos deixar. Caxias foi assim, a experiência que tive. Era a cadeia da PIDE. Hoje falamos muito do Tarrafal, mas ser preso... Caxias era aquele embate mais forte, mais brutal, mais negro. Eram as torturas. Ouvia: «Arrancaram as unhas». Havia coisas medonhas que fizeram às mulheres, queimaram o peito com cigarros, havia coisas medonhas que a gente ouvia e que tudo era feito - vivíamos numa sociedade com muito medo. Aliás, a própria polícia ultimamente, já nem prendia grande vagas. Prendiam alguns, para os outros fugirem. O medo era um suporte do regime que eles desenvolviam sobre modelos diversos.

O julgamento foi também essa fantochada com os militares. A sala encheu-se de PIDEs, estava a minha família - pouca - não deixaram entrar mais ninguém. Foi aquela fantochada toda. Foi muito interessante porque houve um conjunto de pessoas que vieram ser minhas testemunhas. O Padre Moniz de Vila Franca, o dono da tipografia, as pessoas mais importantes que havia nas terras vieram ser minhas testemunhas. E juraram por sua honra. Foi muito importante, tudo isso ajudou a que as pessoas tivessem consciência, porque eu trabalhava, estudava, era um caso exemplar, como os jovens. Isso foi dito pelo padre Moniz: «O José Pedro foi o meu melhor aluno», ele elogiou, talvez até mentiu nalgumas coisas para evocar mais algumas qualidades a que o tribunal pudesse duvidar, tremesse mais na aplicação da pena - mas não, foram muito frios, muito rudes nesse sentido. (...)

Assim que fui julgado, passado dias, levaram-me para Peniche. Já que tinha apanhado uma pena pesada, preferi ir para Peniche, porque sempre ouvi falar no nome de um conjunto de companheiros que lá estavam - o Dias Lourenço, o José Magro, o Manuel Pedro, Ângelo Veloso. Eram figuras históricas, lendárias alguns deles, para mim e gostava de os conhecer - e tive essa oportunidade.

Entretanto fui hospitalizado, estive no hospital quando acabaram os interrogatórios e também conheci lá alguns. Mas depois em Peniche foi interessante nesse sentido, era uma cadeia diferente. Fui primeiro para o pavilhão A, onde há salas comuns, e depois passámos todos para o pavilhão B, onde havia celas individuais. Quando foi o 25 de abril estávamos todos em salas pequeninas individuais. Já tínhamos conquistado o podermos circular durante o dia - eram-nos abertas as celas, circulávamos, tínhamos uma sala de convívio, um refeitório, já tomávamos as refeições em conjunto. Só nos fechavam individualmente durante a noite.

E foi aí que soubemos do 25 de abril. Um dia de manhã, já tínhamos conseguido conquistar uma televisão, quando ligámos a televisão vimos que não havia imagem. Depois: «Dentro de momentos iremos ler um documento do Movimento das Forças Armadas». Foi aqui que nos juntámos. Já tínhamos algumas informações do movimento dos militares, das muitas lutas da região de Lisboa - e do Porto, os operários, dos estudantes. Aquilo estava tudo em efervescência. O fim da guerra era uma coisa... (...) Já tinha havido um levantamento de jovens das Caldas da Rainha, militares na direção de Lisboa, que foi depois frustrada. Há já um conjunto de coisas que sabíamos que mais tarde ou mais cedo estava tudo. Também se falava num golpe de direita, mas ao ouvir o primeiro documento do Movimento das Forças Armadas, percebemos logo o que era. Procurámos logo iniciar reuniões, com a direção cadeia, estarmos alerta e acompanhar as coisas.

A libertação foi uma coisa excecional. Havia muita multidão junto à cadeia, que se juntou logo nas primeiras horas. Quando íamos a sair - houve dificuldades até lá, porque o Spínola não queria libertar todos os presos, [dizíamos]: «Ou todos, ou nenhum!». Foi a mesma coisa em Caxias. E quando saímos foi muito importante, porque lá em Peniche, tínhamos de assinar o nosso auto de saída e a população abria um corredor e nós passávamos por esse corredor. Toda a gente batia palmas, toda a gente cantava aquelas canções revolucionárias da altura, foi muito giro. Toda a gente chorava, abraçava. Faziam muitas perguntas, que nós nem sabíamos responder: «Então, o que é para si a liberdade? O que é que vai ser agora? Como é que vai ser Portugal?» e nós: «Tem que terminar as guerras, tem que haver democracia, tem que haver alterações nas Câmaras e nas Juntas de Freguesia. Este governo fascista tem de ser derrotado, os PIDEs têm que ser presos», dizíamos aquelas coisas.

Acho que o 25 de abril foi um acontecimento notável. É o nosso grande tesouro. Talvez nunca Portugal tivesse tido um momento tão generoso, tão brilhante como o 25 de abril. Abriu pistas do ponto de vista social e político como nós nunca tivemos. Foi um avanço civilizacional. Em todos os hábitos sociais, nas conquistas democráticas, o fim das guerras. Acho que o 25 de abril é um registo que ainda está muito por verbalizar, descrever. Evocar e potencializar um 25 de abril foi um acontecimento notável. Abalou todo o mundo, todo o mundo falou no 25 de abril. O fim das guerras coloniais. Transformou uma revolução numa festa de liberdade, os cravos representaram. Foi uma coisa excecional, acho que é um registo excecional para todo o mundo. Mesmo para as ditaduras aqui ao lado, de Espanha, da Grécia, da América Latina, do Apartheid em África [do Sul], o 25 de abril foi um tsunami em todo o mundo, foi muito importante. As televisões, jornais de todo o mundo mostraram fotografias. Revolução. Quantos mortos? As pessoas festejavam com alegria. Os mortos que houve ainda foi a PIDE que disparou e matou.

Quem lutou pelo 25 de abril depois não podia parar, porque podia haver reversos. Os democratas tinham de se organizar. As instituições democráticas. Isto tinha que dar lugar a eleições livres, a uma nova constituição. Acho que todos os democratas se envolveram nesse processo todo. Se calhar até mais do que anteriormente. Agora que lutámos tanto para chegar, para o regime ser derrotado, agora que podemos circular para todo o mundo, agora que se abriram as janelas e as portas temos de ser nós a construir a democracia. Institucionalizar a democracia.

Foi nesse sentido que eu me envolvi no Movimento dos Jovens Trabalhadores, convidaram-me enquanto jovem comunista. O meu partido propôs-me que eu ficasse ligado e a ser dinamizador do Movimento dos Jovens Trabalhadores, então foi uma coisa muito importante o MJT. Era um movimento unitário, onde havia comunistas, socialistas, católicos. Mas depois, nas primeiras eleições, os jovens queriam todos ter o seu partido para votar, uns do PCP, outros do PS, então o movimento foi fraquejando. Quer dizer, teve a sua onda, a sua projeção - ainda hoje há gente em todo o lado do MJT - mas depois foi reduzindo. Tirando os jovens católicos, que continuaram na JOC, mas com os seus partidos, o Movimento dos Jovens Trabalhadores foi-se esvaziando.

Fui deputado, depois. Convidaram-me e fui deputado. Participei na elaboração da constituição - que é uma experiência muito rica, muito interessante. O número de comissões que funcionaram, o número de sessões, como é que assembleia funcionava - aquele período antes da ordem do dia, que era uma coisa de muitas discussões políticas, em que tivemos de criar um período só de uma hora para as discussões gerais, para depois começarmos a trabalhar na constituição. Como é que isso tudo foi feito, foi muito importante. A constituição é um documento fabuloso. Entretanto dá-se o 25 de novembro, há uma regressão das coisas e todos aqueles que queriam a constituição começaram a ter dúvidas e depois tivemos que acelerar. Há um gesto tão giro, que é: a certa altura todos os documentos devem vir ao palácio de Belém - foi o Presidente da República que foi à assembleia. Logo em cima da hora, assim que foi aprovada pela assembleia, foi ali promulgada. Porque havia já pessoas que estavam com dúvidas, até ali empenharam-se muito, mas tinha havido alteração da correlação de forças, na democracia, num processo que se radicalizou um bocado e que a direita aproveitou. Foi tudo muito interessante.

A nossa constituição é um documento basilar. Garante todos os direitos, aquilo porque nós lutávamos durante a ditadura: das crianças, dos jovens, das mulheres, dos mais idosos, direitos gerais dos trabalhadores, direito à greve, direito à criação e fruição da cultura. Obriga ao estado deveres para que esses direitos sejam realizados, compete ao estado criar condições: direito à saúde - tem que haver hospitais; direito à educação; direito à memória - é necessário haver museus da resistência. Então tudo isso é muito importante. A divisão dos diversos órgãos de poder - tudo isso foi muito importante.

Recordo-me, em cima da hora, quando faltava pouco para aprovar a Constituição alguém disse: «Ó Manuel, escreve lá a introdução!» - e aquela introdução, que é muito clássica, que vem em todo o lado, foi escrita pelo Manuel Alegre. Tudo isto tem muitas histórias, todo esse processo da luta clandestina, da luta legal para que o Regime [caísse]. Há muitas vidas sacrificadas. Foi um processo muito longo, muito moroso e nós apanhámos a parte final, vivemos a vitória, somos felizes por isso. Houve outros que lutaram, mas que nunca chegaram a esses dias, morreram no Tarrafal, morreram em muitos sítios. Ainda bem que hoje há o museu do Aljube, que se está a edificar o museu de Peniche e que há outras decisões nesse sentido, no Tarrafal, em Cabo Verde, em que há associações que defendem esse direito da memória e valorizam essas lutas travadas no passado. Acho que é muito importante que fiquem depoimentos daqueles que ainda são vivos, que testemunharam o que foi esses momentos e essa luta".