- Categoria: PCI / Saber-Fazer
- Local do registo: Ribafria (residência Lugar do Mato)
- Freguesia: Ribafria e Pereiro de Palhacana
- Concelho: Alenquer
- Data do registo vídeo: 7-6-2021
- Título: MEMÓRIAS e TRADIÇÕES - Alenquer
- Entrevistados: Manuel Benjamim Caseiro
- Ano nascimento: 1944
- Entrevista: Memória Imaterial
- Transcrição: CLDS4G
“(…) andei também na catequese, tenho uma história engraçada que nunca me esqueceu - tinha para aí uns 8 anos. Foi a primeira vez que a Nossa Senhora de Fátima foi visitar aqui a nossa região e entre o Pereiro e Ribafria havia uma grande rivalidade. (Quer dizer, (…) as pessoas (…) do Pereiro não podiam ir a Ribafria, as pessoas de Ribafria não podiam ir (…) ao Pereiro, que era uma rivalidade entre aldeias, pronto, não havia significado para isso acontecer, mas a verdade é que havia). E lembro-me que (…), era puto tinha para ai uns 8 anos, Nossa Senhora de Fátima andou a visitar as aldeias da freguesia de cima - que era Pereiro, era a freguesia de cima e quando foi a Palaios na divisão entre Palaios, (…), Bom Vizinho e o Pereiro - que era para entregar a Nossa Senhora, as pessoas aqui de baixo, da zona de baixo da freguesia estava tudo ali filado -as professoras levavam os miúdos todos, todos perfilados e não sei quantos. E às tantas aquilo ao entregar a Nossa Senhora começa a haver pedras e tiros e não sei quantos, houve lá uma zaragata muito grande, entre a rivalidade Ribafria e Pereiro. E só me lembro da professora agarrar na gente todos - “Vamos embora, vamos embora, vamos embora” e a gente todos por ali a fora… e então lá depois tiraram a Nossa Senhora, mas quer dizer, houve ali problemas entre vizinhos praticamente, mas era a rivalidade que havia.”
A escola primária de Ribafria
“Eu lembro-me que (…) vim aqui para a escola de Ribafria - que era onde é a Colectividade – (…) ainda me lembro bem, que a escola era completamente cheia, o meu pai teve de mandar fazer um banquinho para eu me sentar, porque não havia cadeiras que chegassem, nem secretarias para todos, porque isto havia aqui muitos miúdos. Era há volta de 8 a 10 aldeias que vinham todos para aqui para Ribafria. Depois andei também na escola com aquelas malas às costas e como o farnel e não sei quantos… e com o lanche, ainda isto não era alcatroado, não havia água, não havia luz, não havia nada.”
O 25 de Abril na freguesia
“(…) Fiz parte também, [durante] alguns anos, da direção da UGT com Torres Couto e acompanhei-os muito muito. (…) Depois houve o 25 de Abril. Foi muito agitado e muito comemorado aqui também nestas aldeias porque nós vivíamos aqui numa repressão muito grande. Porque havia aqui algumas pessoas, que nós não tínhamos a certeza, mas em voz, passa a palavra, diziam que aquele pertencia à PIDE. (…). E lembro-me bem que o Teófilo Carvalho dos Santos, que era um advogado de Alenquer, vir de noite à casa do meu pai, entregar-lhe os votos para ele no outro dia vir aqui, à escola de Ribafria que era onde [agora] é a Colectividade, e votar. Mas o meu pai tinha medo porque ele era da oposição, e o meu pai tinha medo de lá ir pôr o voto que depois fosse também descoberto porque depois a pessoa - tivesse culpa, não tivesse culpa - era abarbatado, como foram algumas pessoas daqui. E (…) mais tarde, quando eu depois tomei posse da Junta, foi-se ver os ficheiros e afinal havia pessoas mesmo… chamavam-lhe os bufos (?). (…) era[m] as pessoas que denunciavam outro para depois irem buscá-los, (…) de noite à casa das pessoas (….). Havia um grande medo nesse sentido. Depois veio o 25 de Abril e toda a gente festejou porque foi realmente um êxito aqui assim.”
A apanha da cereja e as vindimas
“(…) Aqui na zona, havia muita cereja…lembro-me que passava aqui um senhor que era da Merceana, que era[m] camiões carregados de cereja, pessoas que vinham de Lisboa e de outros lados de propósito buscar cereja. Vinham mulheres de outros lados, de Montegil, do Olhalvo, de outras zonas de aqui de perto (…). Isto é uma zona que tem aqui um clima específico, aqui nesta bacia em que a cereja se desenvolve muito, e de maneira que houve muita gente que realmente… que ganhava dinheiro com a fruta e também dava muito trabalho a pessoas.
Na parte da vinha, lembro-me que a nossa zona também era muito procurada pelo, chamavam-lhe a gente dos malteses – (…) pessoas que vinham da zona de Pombal, de Ansião, essas zonas assim, da zona de Santarém, daquelas zonas, vinham para aqui pedir trabalho. Ainda me lembro muito bem, vinham uns de bicicleta, outros com a saca às costas, (…) traziam uma manta e a marmita e umas coisas assim, vinham para aqui pedir trabalho. Era constantemente pessoas a passar para baixo e para cima a pedir trabalho, quer dizer eu lembro-me bem, o meu pai ainda amanhava uma pinga de vinho boa e vinham sempre homens do lado de Ansião (…). Depois era um x por dia e com obrigação de dar jantar – (…) batatas com bacalhau ou sardinha, [e] outras [coisas] assim.”
A Bugalhinha
“Eu (…) tinha, um tio que já faleceu (…), chamavam-lhe o Zé Dias que era terrível para a batota. E então eu lembro-me de ele contar (…), eu lembro-me de ele contar que aquilo era aquelas mesas grandes e cada um espetava uma navalha em cima da mesa. E ali algum que fizesse batota, aquilo havia ali uma zaragata logo entre eles. Mas isto é real, isto era coisas que ele contava. Uma vez ele para se ver livre, levava um capote, (havia aqueles capotes), aquilo era em Dezembro. Não teve dinheiro para pagar aquilo que apostou, ficou lá o capote (…) [como] pagamento daquilo que ele ficou a dever. Só quando fosse lá entregar o dinheiro que ficara a dever é que lhe (…) [davam] o capote. Eu lembro-me…era puto, mas lembro-me desta história.”
As azenhas
“(…) Que eu tenha conhecimento, havia 8 azenhas e assisti a elas [de Ribafria na direção de Alenquer]. Naqueles dias (…) anos 65-68(…) ainda moíam algumas. Havia a azenha do Garfim (?), havia uma azenha aqui em Ribafria, havia a outra azenha aqui a seguir, antes do Mato, que era (…)
Matilde: "a azenha onde está o Jorginho (…)".
Manuel: "Havia uma que (…) [foi] a última a trabalhar que era a azenha do Moleirinho -que era ao pé da minha casa que era no Mato. Havia a azenha da Quinta do Tavares, por baixo do casal, ali ao casal do Quirino (?). (…) Havia (…) a azenha das Machadas (…) e havia outra azenha na Azedia. Este rio agora corre menos, mas primeiro corria muita água neste rio, porque este rio (…) nasce nas Lages da Freiria. Toda esta bacia de São Domingos para cá, da Corujeira para cá, corre aqui em direção a Alenquer. De maneira que havia aqui esta azenha e corria água todo o ano e como corria água todo o ano eles faziam umas prezas e essas prezas depois desviavam a água que passava por umas adufas e que iam desaguar numa roda, (…) - aquela roda do moinho que fazia moer as mós. E de maneira que essas mós quando levavam trigo, faziam a farinha e aquilo trabalhava de noite e de dia - 24 horas por dia. Lembro-me bem, ainda me lembro bem de dormir - tinha uma mesmo à minha porta (…), que era a azenha do Moleirinho - de adormecer ao som daquilo, trum trum trum trum…todos os dias, todo o dia e toda a noite aquilo moia. Fazia trigo e depois dali distribuíam. Depois, (…) no verão, (…) algumas pessoas que tinham as azenhas também tinham moinhos, para quando não houvesse água substituir [a azenha] pelo moinho.”
Matilde: "O meu tio tinha…era uma pessoa que tinha algumas possibilidades naquele tempo, que foi quem me criou, e havia muitas famílias aqui em Ribafria que tinham bastantes filhos e não tinham rendimentos e o pão era racionado. E ele cozia pão em casa e mandava às famílias mais, que tinham mais filhos, mais carenciadas que tinham mais filhos e que não tinham possibilidade de comprar.”
Manuel: “Quem não tinha dinheiro para pagar o trabalho de fazer a farinha - aquilo era uma taleiga, quer dizer, (…) chamavam-lhe a taleiga. Por exemplo, a saca de trigo tinha 71 kilos, 1 kilo era para a saca e era 70 kilos de trigo. Desses 70 kilos eles moíam os 70 kilos e depois davam, não sei, mas, vá lá, 50 de farinha e o resto, ou outros 25 era do trabalho de moer. Isso era tal e qual como quem moia nas máquinas de debulhar o trigo: quem não tinha dinheiro, às vezes para pagar, debulhava o trigo e dava uma percentagem também do trigo que debulhava para compensação do trabalho. Quer dizer, imagine que debulhavam 100 quilos, davam 25 e traziam 70 ou 75, não sei a percentagem, mas aquilo era uma percentagem.”
As cheias de 1967
“Em 67, estava eu em Timor, a água entrou dentro da casa do meu pai, porque a azenha estava a trabalhar, e como a azenha esteve a trabalhar, a água enfiou-se ali, fez um buraco na parede [e] entrou dentro da cozinha, entrou dentro do quarto, quando ele [deu por isso], já tinha a cama, … já tudo [estava] a boiar (…). [A água] entrou dentro na adega levou as batatas todas, isto foi em novembro, tinha lá os depósitos, os tonéis grandes cheios de vinho, levantou tonéis com 5 e 7 pipas de vinho que ele lá tinha levantou-as no ar, andaram a boiar ficaram todos...todos...quer dizer (…) - a água não entrou dentro do vinho mas tirou os tonéis de cima, chamavam os cachorros, (…). Desviou aquilo com 5 e 7 pipas de vinho, desviou aquilo tudo. A minha mãe ao levantar-se partiu uma perna, coitada, teve de ir para o hospital e o meu pai teve de ir para o hospital... A minha mãe foi para o hospital de Santo Antão para Setúbal e o meu pai, coitado, foi também para o hospital de Bom Jesus fazer uma operação devido a essas cheias. Foram os dois nessa noite logo a seguir [às cheias]."
Matilde: "Não havia luz, não havia luz era tudo as escuras…”
O primeiro recenseamento
“Entre essa fase e as eleições houve uma comissão instaladora, na qual eu também fiz parte e fiz o recenseamento. E eu andei mais um senhor que já faleceu, que era o senhor Eliseu Faria, penso que era uma pessoa bastante instruída (…) Andámos aí de noite de porta em porta, [n]estas 16 aldeias, (…) dias e dias e dias a fazer o recenseamento e depois toda a gente se queria recensear para poder votar, aquilo era[m] filas e filas e a gente estávamos ali até às 2 da manhã a inscrever, pessoas que não tinham bilhetes de identidade, outros não tinham identificação, outros não sabiam o nome (…). Havia pessoas.. eu conheço…havia um senhor da Azedia (…) que dizia que era Zé.
— "Eu sou Zé, só me disseram que era Zé, o resto não sei mais nada".
— "Então, mas não é José?"
— "Não sou Zé, é Zé".
"(…) Havia pessoas que nem sabiam o nome dos pais, eram pais incógnitos, muita gente assim. E depois de tudo isto feito, fizemos uma análise da percentagem das pessoas, pois as pessoas tinham de assinar e as que não sabiam assinar metiam o dedo, e 68% das pessoas não sabiam assinar, não sabiam escrever, não sabiam fazer o nome, simplesmente o seu nome. 68%, isto em 74, por incrível que pareça, porque os mais jovens que andavam na escola ainda não tinham 18 anos, ainda não podiam votar… de maneira que era uma zona (…) com muita dificuldade (…). Tanto que eu lembro-me (que estudei mais tarde), dentro da minha mocidade - tinha 16, 17 anos - cheguei a ser porta voz [para] escrever cartas a namoradas de amigos meus, eles não sabiam, queriam escrever para as namoradas [mas] não sabiam...olha, por exemplo o Alberto e outros assim, iam ter comigo para eu escrever a carta (…)."
As primeiras eleições no Pereiro
" (…) Depois, houve eleições livres, na qual eu fiquei como presidente da Junta de Ribafria. Quando foi as primeiras eleições no Pereiro. Aquilo…as urnas abriam às 8, (…), aquilo era tanta gente e tanta gente e tanta gente e tanta gente que a freguesia tinha há volta de 1800 pessoas. Aquilo tudo quis ir de manhã com medo de não votar. Entravam por uma porta e saiam por uma janela, porque depois já não podiam recuar para trás, de maneira que era [por] uma janela [que saiam]. Metiam lá um escadotezinho e as pessoas, uns coitados mais velhos de gatas, uns empurrados, outros não sei [como, saíam]. Com medo de não votar foram para lá de madrugada. (…) A guarda foi lá levar os votos (…) [na] noite anterior, ficaram lá toda a noite com espingardas a guardar os votos, isso lembro-me eu que eu - é que depois fui um dos cabeça de lista eleitos-, ficaram lá a guardar os votos com medo que o fascismo e as pessoas fossem lá roubar os votos e que não houvesse votos (…). Naquela altura foi só lá na escola do Pereiro de maneira que aquilo foi uma enchente tão grande. E (…) depois continuei [como presidente da Junta de Ribafria] durante 39 anos."