Aldeia Galega da Merceana
“O Espírito Santo é algo que nos inspira, que nos ajuda, que nos manda para a vida. Que nos dá força e coragem” (Teresa Serrão, 2022).[1]
Teresa Serrão (2022), uma das cuidadoras da celebração em Aldeia Galega da Merceana, lembra que as pessoas mais velhas da aldeia diziam que, no passado, a Festa era muito vivida e decorria no Largo do Pelourinho, onde se fazia um grande arraial. A última referência a esta celebração na imprensa parece ser a do jornal Diário de Notícias, citado por Manuel J. Gandra (2003), [2] que indica que em 1926 as festas ao Espírito Santo desta localidade ainda se faziam, “muito animadas” e com “larga concorrência de forasteiros”. Estima-se que em Aldeia Galega as celebrações terminaram nos anos 30−40 do séc. XX.[3]
Em 1518 residiam nesta localidade alguns confrades da Casa do Espírito Santo de Alenquer: os cavaleiros João Leitão, juiz ordinário e Martim de Miranda. Em 1525 passaram a fazer parte daquela irmandade o escudeiro Manuel Leitão e sua mulher Guiomar Rebelo, também da Merceana (Gandra, 2003).
Num livro pertencente à antiga confraria, há um registo de 1556 que descreve esta celebração nos seguintes termos: “Incorporavam-se na procissão todos os homens bons, o juiz, o meirinho que transportava a coroa de prata e desempenhava as vezes do Imperador, seguidos por uma dança e pelas rezes que se haviam de oferecer ao povo, junto ao pelourinho, depois de abatidas. Os festejos concluíam com um lauto banquete [o bodo] em que participava toda a população” (Gandra, 2003, citado por Folgado, 2012, p.1).
A celebração recomeça nesta aldeia em 2007, tal como em Alenquer. Segundo Teresa Serrão, as pessoas mais idosas que ainda tinham memória desta festa acolheram com agrado este ressurgimento, mas foi necessário explicar às gerações mais novas a importância da mesma. Hoje, assiste-se a uma grande participação da população nesta celebração. De acordo com a mesma: “quando nós organizamos a festa do Espírito Santo, as pessoas são muito de partilhar, de se juntarem (…). Eu acho que, provavelmente, o Espírito Santo ajuda cada uma dessas pessoas a participar no evento, é algo coletivo”, refere demonstrando a sua crença no culto.
Largo do Espírito Santo em Aldeia Galega durante os festejos (2022)
Atualmente, a celebração parte da igreja de Nossa Senhora dos Prazeres situada no largo do Divino Espírito Santo.[4] Nesse mesmo largo situa-se a pequena capela do Espírito Santo, onde ainda hoje se pode ver a sala anexa à nave que servia de abrigo-hospital para o tratamento de enfermos. Esta capela está aberta durante a celebração e é usual os participantes passarem primeiro por ela, para um momento de recolhimento e oração, antes de se dirigirem à igreja para a missa.
A capela possuí vária iconografia dedicada ao Espírito Santo, desde o frontal do altar com aves, ramagens e, ao centro, a pomba do Espírito Santo (sec. XVII),[5] um baixo-relevo em pedra e uma pintura a óleo alusivos ao tema do Pentecostes, até ao painel exterior de azulejo, mais recente.
O Largo do Espírito Santo é o ponto de encontro para várias aldeias da freguesia que participam em conjunto na missa, leituras, procissão e no ofertório do bodo. Algumas destas comunidades, como Casais Brancos,[6] mantêm as suas festas, mas fazem questão de estarem representadas nas celebrações de Aldeia Galega. As comunidades organizam-se para o ofertório de um modo informal. “Casais Brancos traz os tremoços, o Arneiro traz o vinho, o Paiol traz pão…”, refere Teresa Serrão.
A celebração inicia com a missa do Espírito Santo, onde estão expostos, perto do altar, os estandartes e as coroas das comunidades participantes – Casais Brancos, Paiol, Arneiro, Casal Benfeito e Aldeia Galega. Há indícios de que as coroas de Arneiro e de Paiol datem do séc. XVI, as restantes são mais recentes, quase todas adquiridas após o reinício desta celebração.
Segue-se a procissão que percorre as ruas centrais da aldeia, onde grande parte das casas exibe faixas de pano vermelhas com uma pomba branca bordada (símbolo do Espírito Santo). Teresa Serrão refere que qualquer pessoa se pode voluntariar para transportar os estandartes e coroas durante esta procissão. A abrir o desfile vai um gaiteiro contratado para o efeito.[7] Logo a seguir seguem os porta-estandartes intercalados pelos portadores das coroas. Depois seguem as oferendas simbólicas, transportadas num cesto de vime; os representantes das diversas comunidades e de confrarias e, finalmente, os sacerdotes seguidos pela população participante. Ana Maria Timóteo, de Aldeia Gavinha (2022),[8] realça que esta é “uma procissão que não tem andores”. Este é um pormenor simbólico significativo, interpretado por vezes como uma forma de concentração dos crentes na sua fé, na comunidade e nos ideais solidários que partilham.
A procissão termina onde começou, na Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, aí depõem-se novamente os estandartes e coroas e assiste-se a um concerto musical cuja programação é da responsabilidade da Câmara Municipal de Alenquer.[9] À saída do concerto são oferecidos tremoços aos participantes, que se encaminham para o local do bodo.
Procissão do Espírito Santo nas celebrações de Aldeia Galega (2022)
O bodo é organizado no Largo do Pelourinho pela junta de freguesia de Aldeia Galega e Merceana. Aqui é servida, a todos os que quiserem, a sopa do bodo em grandes panelas. A receita desta sopa foi transmitida aos atuais organizadores pelas gerações anteriores. Os detentores deste conhecimento têm como missão continuar a passar a receita às próximas gerações. A base da sopa é a carne de vaca, com alguns legumes. No passado, tinha-se a convicção de que esta sopa iria ajudar quem a comesse a ter mais força para trabalhar ao longo do ano, pois compensava a dieta pobre, comum entre os habitantes locais. Em complemento é servido pão, enchidos, doces caseiros, fruta, vinho da região e outras bebidas. O bodo é encarado como um momento de convívio. Segundo Susana Coelho (2022),[10] de Paiol, o bodo tinha e continua a ter um significado que é o mais importante: “a ajuda a todos [e] que somos todos iguais (…) e daí termos tanto orgulho no Espírito Santo e [continuamos] a dar muito valor a este símbolo (…), até porque é algo muito antigo, que vem já de séculos”.
[1] Em entrevista realizada no âmbito desta pesquisa, em representação da organização dos festejos em Aldeia Galega.
[2] Citado por Folgado, 2012.
[3] Segundo os testemunhos orais que nos chegam através da nossa entrevista a Teresa Serrão: “… as pessoas mais idosas com quem eu falei enquanto estavam vivas (…), estas senhoras já [tinham] oitentas e tais [e lembravam-se da festa acontecer] quando eram novas” o que parece situar o fim da festa algures entre os anos 30-40 do séc. XX.
[4] Em 2022, a celebração aconteceu no dia 24 de abril.
[5] Digitile Gulbenkian, Capela do Espírito Santo, Aldeia Galega da Merceana : frontal de altar de aves e ramagens ao centro a pomba do Espírito Santo, in https://digitile.gulbenkian.pt/digital/collection/jmss/id/1825/ [Acesso 3/11/2022]
[6] Segundo os testemunhos recolhidos em Casais Brancos, as Festas ao Espírito Santo aconteciam em agosto.
[7] Em 2022, o gaiteiro Tiago Morais.
[8] Em entrevista realizada no âmbito desta pesquisa, em representação da organização dos festejos em Aldeia Gavinha.
[9] Em 2022, protagonizado pelo Grupo Mosaico Espiritual, o concerto “Programa Mater Dei” com Patrycia Gabriel, Carolina Figueiredo e Daniel Oliveira.
[10] Em entrevista realizada no âmbito desta pesquisa, em representação da organização dos festejos do Paiol.