Baixo-relevo alusivo ao Espírito Santo da Capela de Aldeia Galega (2022).

 

O Espírito Santo, o culto e as festas no concelho de Alenquer 

O Espírito Santo é figura central no Cristianismo, parte da Santíssima Trindade, na sua dimensão una e múltipla, onde Deus (Pai), o Filho (Jesus Cristo) e o Espírito Santo são três num só. No Novo Testamento,[1] entre vários episódios decisivos, destaca-se o papel do Espírito Santo − a sua “obra e graça” − na conceção divina de Jesus Cristo; a sua presença em forma de pomba no batismo de Jesus e a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos e seguidores de Cristo, cinquenta dias depois da sua Ressurreição e dez dias depois da sua Ascensão.

Na generalidade, as celebrações que integram as festas do Divino Espírito Santo realizam-se durante esses cinquenta dias que medeiam o domingo de Páscoa e o domingo do Pentecostes, dia por excelência dedicado ao Espírito Santo, e no qual os cristãos comemoram o terceiro evento enunciado anteriormente – a descida do Espírito Santo e dos “seus dons” (na forma de línguas de fogo) sobre os que acreditaram em Jesus Cristo. É também assim que acontece no concelho de Alenquer. Alternadamente, em cada um dos oito domingos que compõem esse período, uma comunidade agenda os principais eventos destas celebrações: as cerimónias religiosas (as missas e procissões), e os bodos (oferendas e dádivas alimentares organizadas em jeito de festa, onde não pode faltar a “sopa do bodo”, os tremoços, o pão e o vinho).

No primeiro e último domingo, os festejos de abertura e encerramento das FIDES acontecem sempre em Alenquer. Iniciam com a Entronização das insígnias − a coroa e o estandarte − no primeiro fim de semana e terminam com a procissão da luz, a missa, a procissão do Espírito Santo e o bodo no último fim de semana. Entre esse período é definido pelas várias entidades que compõem a Comissão das FIDES o domingo de festejos que calha a cada uma das localidades, conforme a disponibilidade e interesse das comunidades.[2]

O Império do Espírito Santo e toda a doutrinação em torno da terceira entidade da Santíssima Trindade representa assim uma revalidação e uma tentativa de implementação dos ensinamentos originais de Jesus Cristo, em particular, a crença de que somos todos iguais sob o olhar de Deus, não havendo hierarquia social ou económica que se sobreponha a essa doutrina. Valores que corporizam um conjunto de iniciativas baseadas na solidariedade e estruturadas na entreajuda, nomeadamente os antigos hospitais e confrarias do Espírito Santo que tinham essencialmente propósitos caritativos. Esta perspetiva vincula-se ainda aos sete “dons” que são atribuídos ao Culto do Espírito Santo − “sabedoria, inteligência, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus”.

Este motivo caritativo e espiritual, de “contacto” com a “graça divina”, e da “realização do bem” surge no discurso dos praticantes das FIDES de Alenquer como o principal impulsionador do seu envolvimento na organização ou participação nas festas. De referir que a organização do bodo, a dádiva de bens alimentares à população, era, por tradição, uma das formas que aqueles que receberam as “graças” e “dons” do Espírito Santo, tinham para retribuir essa bênção.

 

 Coroas das diferentes comunidades expostas no Encerramento das FIDES, Capela do Espírito Santo, em Alenquer (2022).

 

A representação iconográfica do culto é vasta pois remete para a diversidade das celebrações a ele dedicadas. Em Alenquer encontram-se as referências ao vento, à luz, ao fogo, à água, sendo muitas vezes representado pela pomba. As principais insígnias são a coroa e o estandarte ou bandeira (ambos adornados com a pomba), o que, junto com a denominação de “Império” tantas vezes associada à designação das festas, parece referenciar rituais monárquicos[3] e uma “linguagem do poder” (Leal, 2017), aspeto que o Diácono Duarte João (2022),[4] da Paróquia de Alenquer, interpreta do seguinte modo:

“A coroa é sempre um símbolo da realeza, portanto a coroa aqui significa que o Espírito Santo deve reinar (…). [Mas] não estamos aqui a colocar o religioso a dominar o mundo, não é disso que se trata. O Espírito Santo personifica tudo o que é o bem, o amor, a paz, a fraternidade, a solidariedade, a entreajuda. Portanto, estes valores devem reinar! É isso que a coroa significa. Depois a bandeira (…) − o lema [das FIDES de Alenquer] é ‘O Espírito sopra onde quer’ −, uma das maneiras de representar o Espírito, que por natureza é invisível, é o vento. Portanto aquela bandeira quando vem na procissão desfraldada e agitada pelo vento, quer dizer isso mesmo, quer sublinhar o significado e a importância deste lema. O Espírito não conhece fronteiras, nem a Igreja tem mão nele. O Espírito é aberto, toca onde quer!”.

Para além de cada localidade seguir um “guião” dos festejos − que inclui sempre as cerimónias religiosas e o bodo − conforme o contexto geográfico, é possível encontrar pequenas variações na composição dos rituais. Por exemplo na Atalaia estão espalhados pelo percurso da procissão inscrições sobre o significado do culto. Também nessa aldeia os “dons” desfilam num único quadro de onde saem sete fitas vermelhas seguras por crianças. Já na Paúla, por exemplo, os “dons”, também transportados por crianças, desfilam em sete quadros diferentes.

Em Alenquer, em 2022, foram vários os grupos sociais envolvidos nos festejos: como espectadores e participantes menos ativos, a população residente e os visitantes. Como membros mais ativos, os residentes envolvidos na atividade paroquial, os eclesiásticos, os membros da Comissão das FIDES e representantes das entidades que compõem essa Comissão, os membros de diversas instituições de solidariedade (por exemplo, escuteiros, irmandades e coletividades) e representantes políticos locais, nomeadamente membros da Câmara Municipal e das Freguesias.  De referir que no Carregado participaram também grupos afrodescendentes residentes na vila, evidenciando a diversidade cultural das festas nesta localidade.

 

 Estandartes de todas as comunidades expostos na Sala do Império do Divino, Paços do Concelho, Alenquer (2022).

 

De forma a concretizar o objetivo proposto dividimos os conteúdos desta publicação em duas partes. Primeiro enuncia-se uma breve contextualização histórica sobre as Festas do Império do Divino Espírito Santo em Alenquer, onde se destacam as duas narrativas da origem mais vinculadas às festas no concelho (Leal, 2017): a narrativa “Isabelina”, que remete as origens do culto para a iniciativa da Rainha Santa Isabel (1271−1336), esposa de D. Dinis, e a narrativa “Franciscana”, proposta por Jaime Cortesão que justifica a difusão das festas do Espírito Santo pela ação da Ordem Franciscana (Cortesão, 1980; Leal, 2017). Narrativas estas que para além de distintas não se excluem, como veremos mais adiante.

A segunda parte deste site dedica-se, de forma mais demorada, à descrição das FIDES de Alenquer em cada uma das comunidades que realizaram estes festejos no ano da pesquisa, ou seja, em 2022. Aqui serão abordados os significados dos festejos para diferentes atores; os preparativos e o embelezamento das aldeias e vilas; os momentos e os elementos das cerimónias religiosas; os espaços de culto de cada localidade; as suas insígnias e a confeção das iguarias que compõem o bodo, em particular, os ingredientes e receitas das características sopas.



[1] Na tradição judaica, o Pentecostes é celebrado no Festival da Colheita (Shavuot) e comemora o momento em que Deus entrega dos Dez Mandamentos a Moisés no Monte Sinai, cinquenta dias após o Êxodo dos israelitas do Egito, onde viviam como escravos.
[2] Já aconteceu mais de uma comunidade celebrarem os seus festejos no mesmo domingo.
[3] De referir a narrativa que defende a origem das festas como iniciativa da Rainha Santa Isabel (desenvolvida na parte 1 desta publicação) e que reforça esta ligação entre o religioso e o político no Culto do Espírito Santo.
[4] Em entrevista realizada no âmbito desta pesquisa. Membro da Comissão das FIDES de Alenquer enquanto representante da Paróquia de Alenquer.