Índice do artigo

                                     Pentecostes em baixo-relevo, séc. XV – XVI, Igreja do Espírito Santo de Atalaia (2022).

 

Contexto Histórico

 

Séculos XIII e XIV
 

Sendo evidente a referência a Alenquer pela maioria dos estudiosos que realizam ou realizaram pesquisas sobre as confrarias, o culto e as festas do Espírito Santo, especialmente quando enunciam as várias narrativas das suas origens (por exemplo, D. Rodrigo da Cunha, 1642; Frei Manuel da Esperança, 1656; Frei Francisco Brandão, 1672; D. Fernando Correia de Lacerda, 1680; Padre Manoel Fernandes, 1690; Azevedo, 1963; Cortesão, 1980; Lourenço, 2001; Leal, 2017, entre outros), não se conhece porém uma data precisa para a fundação da confraria da igreja do Espírito Santo de Alenquer ou das festas. Existem, contudo, documentos que sugerem a sua existência já no século XIII.

Segundo Lourenço (2001) a albergaria do Espírito Santo de Alenquer “existia, pelo menos, desde o tempo de D. Sancha, filha de D. Sancho I [senhora de Alenquer, falecida em 1229], que criaria no edifício dos Paços da Família Real um albergue para enfermos pobres e peregrinos” (p. 653). A instalação desse hospital nos Paços Reais substituiria as instalações que D. Sancha doou aos frades menores e onde se edificaria mais tarde o Convento de São Francisco (Vale & Ferreira, 1999).

Continuando as referências ao século XIII, é forçoso abordar o artigo que o historiador Rui Pinto Azevedo (1963) redigiu sobre compromissos de confrarias, onde conclui que o “Compromisso da Confraria do Espírito Santo de Benavente”, redigido em latim, é anterior a 1234, e por isso o mais antigo que se conhece. Mas no mesmo artigo o autor refere que “há fortes motivos para supor que as confrarias do Espírito Santo se regularam todas pelos mesmos estatutos” (p. 9) e, citando um texto de Braancamp Freire (1903), fala-nos da notícia de compromissos mais antigos, entre eles o de Santa Maria de Sintra, cujo documento original teria sido exarado em Alenquer em 1217:

“A. BRAAMCAMP FREIRE, Archivo Histórico Portuguez, vol. I (Lisboa,1903) pp. 349−355, dá-nos notícia dos mais antigos compromissos de confrarias de que teve conhecimento:  o de Santa Maria de Sintra, existente em mau traslado no cartório dessa igreja, do qual consta ter o documento original sido exarado em Alenquer no mês de Março da Era de 1255 (ano de Cristo, 1217)” (Azevedo, 1963, pp.10−11).

Ou seja, Alenquer surge mais uma vez como a referência mais antiga da confraria e Rui Pinto Azevedo crê mesmo que, se o compromisso de Santa Maria de Sintra é anterior ao de Benavente e foi lavrado em Alenquer, foi nesta povoação que foi “fundada em data mais remota a confraria do Espírito Santo com estatutos semelhantes aos de Benavente”. Referindo-se depois às festas, acrescenta: “tanto mais que já aí existia ermida da mesma invocação, onde, depois de sofrer obras e ampliações, se celebraram com grande pompa as festas imperiais do Espírito Santo” (1963, p.11).

 

A narrativa de origem “franciscana”

 

Sobre a origem das primeiras confrarias, Azevedo (1963) expõe brevemente duas pistas distintas. Por um lado, ao descrever o que consta nos primeiros compromissos, em particular os deveres caritativos dos confrades − apoiar os mais pobres nos momentos de dificuldade, doença e morte −, enquadra as confrarias na narrativa de origem dita “franciscana”:

“(…) no tipo das confrarias de caridade e socorro mútuo criadas por leigos, que proliferaram na Península Ibérica durante a referida centúria (6), as quais quanto a fins e práticas de beneficência revelam grandes semelhanças com a Ordem Terceira de S. Francisco” (p.9).

Por outro lado, em nota de rodapé o mesmo autor aborda a influência dos colonos francos que se fixaram na região de Lisboa, no reinado de D. Sancho I:

“(…) se atentarmos em que Alenquer e Benavente se situam na zona do país onde, no reinado de D. Sancho I, se fixaram importantes núcleos de colonos francos (os de Azambuja e Montalvo de Sor, ambos nas margens do Tejo), talvez não seja arrojado supor haverem sido esses colonos os introdutores em Portugal das confrarias do Espírito Santo” (Azevedo, 1963, pp.11−12).

Citando a entrada “Saint Esprit” do Dictionnaire des Sciences (Bruillet), Azevedo “diz ter havido em França, sob a invocação do Espírito Santo, uma ordem de religiosos hospitaleiros, fundada no século XII e aprovada em 1198” (1963, p. 12).

De referir que a teoria da importância dos colonos francos nas origens do culto do Espírito Santo é bastante residual na literatura produzida sobre o tema, o que já não acontece com a teoria da origem baseada na ação da Ordem Franciscana. Particularmente em relação ao culto em Alenquer, esta segunda hipótese é bastante apoiada na medida em que, em Portugal, foi neste concelho que as Ordens Mendicantes foram primeiramente acolhidas. Entre 1212−1218, Frei Zacarias, protegido da Infanta D. Sancha, chega a Alenquer para fundar o convento Franciscano.[1]

 

Sala anexa à nave da Capela do Espírito Santo de Aldeia Galega que serviria de abrigo-hospital para o tratamento de enfermos (2022).

 

A narrativa “franciscana” da origem das festas do Espírito Santo é amplamente defendida pelo historiador Jaime Cortesão (1980), reforçando em particular a importância dos “franciscanos de tendência espiritual” (p. 262) por influência dos escritos do abade Joaquim di Fiore[2] que proclamavam profeticamente a chegada da Terceira Idade, a “Idade do Espírito Santo”, que depois da “Idade do Pai” e da “Idade do Filho”, menos bem sucedidas, viria finalmente a consagrar a igualdade social e promover a abundância (Leal, 2017).

Ainda sobre as menções ao culto do Espírito Santo em Alenquer no século XIII, conforme refere Folgado (2010), “conjeturas à parte”, o primeiro documento que positivamente se refere ao Espírito Santo é uma carta datada de 18 de setembro de 1279, onde a rainha regente D. Beatriz enuncia tomar “em sua guarda e defesa” a Albergaria do Espírito Santo (Costa, 2014; Folgado, 2010; Lourenço, 2001; Vale & Ferreira, 1999). Esta carta mostra-nos que àquela data “a confraria já tinha agregada uma albergaria, como aconteceu em grande número de terras, e [era] merecedora da proteção real” (Folgado, 2010, p. 39).

 

 

Pormenor do Óleo da sala dos Capelos da Universidade de Coimbra com a representação da Rainha St. Isabel e D. Dinis.

 

A narrativa de origem “Isabelina”


Completamente enraizada na narrativa local está a teoria da fundação da Casa do Espírito Santo em Alenquer (igreja, confraria e festas) por iniciativa da Rainha Santa Isabel (1271−1336)[3] (Costa, 2014; Folgado, 2010). De referir que no discurso da maioria dos entrevistados que participaram nesta pesquisa, principalmente entre aqueles que organizam as festas nas várias localidades do concelho, continua a ser esta a versão mais citada, sempre envolta numa aura de devoção à Santa Isabel e orgulho por esta ter sido “senhora das Terras de Alenquer”, tal como orgulho na “estima” que a mesma teria por esta zona do país.

Muito contribuiu para a fundamentação deste argumento a existência no Arquivo Histórico Municipal de Alenquer de uma transcrição do “Princípio e fundamento da Casa do Espírito Santo da vila de Alenquer, dado pela Rainha Santa Isabel, mulher de El-Rei D. Dinis, no ano de 1321”. Documento que não provando a data da fundação da Casa do Espírito Santo, prova, contudo, a existência de uma Casa e das Festas, nesta data, em Alenquer.

Esse texto e outros relacionados com a Casa do Espírito Santo − entre eles o “Primeiro Compromisso da Casa do Espírito Santo…” de Alenquer − são amplamente analisados em Folgado (2010) e Costa (2014).[4] Usando estas duas publicações, baseadas nas pesquisas levadas a cabo pelo Arquivo Histórico Municipal de Alenquer, resumimos de seguida os seus conteúdos.

As transcrições que destacamos: o «Princípio e fundamento da Casa do Espírito Santo da Vila de Alenquer…»; o «Primeiro Compromisso da Casa do Espírito Santo que fizeram os Confrades» (s.d.); um «Milagre que aconteceu na Casa do Espírito Santo» e, ainda, um «Outro Milagre» relacionado com a Casa, são todas parte dum mesmo livro da Câmara de Alenquer, usado entre 1654 e 1672 e são da autoria de Brás de Araújo de Valadares, na altura escrivão da Câmara.

Nesse livro consta que estas transcrições foram feitas a 22 de dezembro de 1663, à vista de “um muito velho e antigo livro” então achado “em uma arca onde jazem os papeis e escrituras da vila de Alenquer”, “uma certidão e papéis antigos autênticos que estão no cartório da dita Santa Casa [do Espírito Santo] e no da Câmara desta dita vila”. No fim refere: “E não continham mais os ditos papéis, que todos aqui tresladei bem e fielmente, a que me reporto. Brás de Araújo de Valadares, escrivão da Câmara o escreveu por mandado e autoridade do juiz e vereadores para a todo o tempo constar todo o sobredito”. O treslado ocupa as folhas 85 a 92 do referido livro, encadernado a pergaminho.[5]

O «Princípio e fundamento…», é a escritura pública, com testemunhas, de uma versão do conhecido Milagre das Rosas onde, neste caso, a Santa converte as rosas em dobrões de ouro para pagar aos pedreiros e serventes envolvidos na construção de uma casa dedicada ao Espírito Santo. Casa esta que a Rainha já havia visto em sonhos e cujos alicerces achou já riscados no chão, milagrosamente, quando chegaram junto ao terreno onde seria edificada a igreja (Costa, 2014; Folgado, 2010). No documento consta: “E assim se acabou a dita Casa à custa da dita Senhora Rainha, e foi logo feito aquele altar grande e posto nele um painel-retábulo do Santo Espírito, e a dita Casa bem provida pelo dito Senhor Rei e Senhora Rainha de vestimentas, cálices e ornamentos em abastança”.

Recomendada a mesma Casa pelos reis a “cavaleiros, escudeiros e outra boa gente”, logo estes “se ajustaram e ordenaram entre si uma confraria […] fazendo de tudo um compromisso”, onde se preceituavam “missas na dita Casa pelo seu dia”, procissão, “um honrado bodo […] ordenando que para a dita festa ser mais perfeitamente obrada, que à sexta-feira se corressem toiros, que se chamasse sexta-feira das carnes”, e que “fosse aquela carne toda cozida, para se pôr em um paiol, a par de outro paiol de pão”, e “ordenaram que quando aí não houvesse imperadores prometidos por sua devoção, que então elegessem outros da dita vila e termo, dos mais abastados” (citações do documento em Costa, 2014, p.3).

Segundo Costa (2014) o texto do «Primeiro Compromisso da Casa do Espírito Santo que fizeram os confrades», sem data, mas idêntico ao de Benavente, inscreve os deveres dos confrades “no que diz respeito à doença, à morte, à pobreza, ao bodo – ‘os confrades, presentes uma vez em o ano, por dia do Espírito Santo, deem de comer aos pobres’ −, bem como as penas e multas por injúrias ou uso de violência em relação aos seus pares” (p.4).

Os outros dois textos remetem para reinados posteriores ao de D. Dinis e da Rainha Santa Isabel, por isso voltaremos a eles mais adiante. O que salientamos agora é como, localmente, a existência do texto de 1321 vai contribuir para a difusão da teoria da origem do culto por iniciativa da Rainha Santa Isabel, quando tudo aponta para a sua existência anterior ao seu reinado, já no século XIII. Este texto, de conteúdo miraculoso, reforça o carisma e a devoção na Rainha e, perante outras teorias da origem do culto, a generalidade das pessoas, por motivos religiosos ou pela curiosidade dos relatos, prefere replicar esta história.

Como refere Folgado (2010), “em Alenquer não é caso único. A tradição local atribui-lhe também [à Rainha Santa Isabel] a fundação da Igreja de Santa Maria de Triana, mas o facto é que esta já era paróquia em 1239” (p. 40).

À narrativa que vincula a origem do culto à Rainha Santa Isabel e a Alenquer o antropólogo João Leal (2017) chama de “narrativa Isabelina”, e já no século XVII vários autores referem-se a ela, entre eles: D. Rodrigo da Cunha (1642), Frei Manuel da Esperança (1656), Frei Francisco Brandão (1672), D. Fernando Correia de Lacerda (1680) e Padre Manoel Fernandes (1690) (Costa, 2014; Leal 2017).

D. Rodrigo da Cunha na obra História Eclesiástica de Lisboa (1642) e D. Fernando Correia de Lacerda no volume hagiográfico (1680) referem-se ao milagre reportado no documento de 1321 − à edificação dos fundamentos da igreja no local em que a rainha tinha sonhado, em Alenquer. Por exemplo, o primeiro descreve: “(…) andando com pensamentos de fundar nela uma igreja sumptuosa ao Espírito Santo, achou pela manhã lançados os fundamentos por mãos de Anjos e a obra em altura que já se podia nela ver a mesma traça pela qual a santa Rainha a determinava edificar”, completa ainda em relação às festas: “ela [a Santa Isabel] e el-rei D. Dinis, seu marido, foram os autores da festa que se chama do Espírito Santo, cuja solenidade foi tão célebre por todo o reino, e mais nos maiores e mais populosos lugares dele, como ouvimos contar aos antigos” (Cunha, 1642, p.22).

Muito mais tarde, no final do século XIX, as referências que Adolfo Coelho (1880) e Teófilo de Braga (1885) fazem às obras de Lacerda e Esperança nos seus textos vão fortalecer a “narrativa Isabelina”, tornando-se esta a mais difundida explicação da origem do culto e das festas do Espírito Santo (Leal, 2017).

De Alenquer, as festas rapidamente foram difundidas pelas outras terras das quais a Rainha era “senhora”. Jaime Cortesão (1964) descreve o esplendor com que se realizavam em Leiria, Porto de Mós, Óbidos, Torres Novas e Sintra.

A grande aceitação popular do culto e das festas em Portugal e especificamente em Alenquer é testemunhada pelo “número significativo de igrejas, conventos, capelas e confrarias com essa invocação”. Daí o ditado popular, ainda hoje usado no concelho de Alenquer: “A cada canto seu Espírito Santo” (Melo, Guapo & Martins, 1991).

As festas serão depois celebradas de forma bastante significativa, não só em Portugal Continental, como nas ilhas, especialmente nos Açores. “Viajando” para o Brasil e América do Norte, em particular para os Estados Unidos e Canadá. Havendo ainda o seu registo pontual em Angola, Cabo Verde e Índia (Leal, 2017).

 



[1] Mais tarde, em 1540, D. Pedro de Noronha fundou, neste mesmo concelho, em Vila Verde de Francos, um convento Franciscano na encosta de Montejunto.
[2] Uma terceira narrativa da origem do culto do Espírito Santo referida por Leal (2017) é exatamente a narrativa “joaquimita” elaborada por Agostinho da Silva (1988), genro de Jaime Cortesão, onde as festas do Espírito Santo representam um pronúncio da chegada dessa Terceira Idade onde as crianças, “seres puros”, coroadas, exerceriam o seu poder, tal como Cristo teria advogado.
[3] Canonizada em 1742.
[4] Na altura das publicações, Presidente e Vereador da Câmara Municipal de Alenquer respetivamente.
[5] Documentos publicados por Luciano Ribeiro sob o título A Casa do Espírito Santo em Alenquer nos números 2 e 3 da revista Damianus A Goes, editada pelo Grupo Amigos de Alenquer, anos de 1941 e 1942.