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                                      Preparativos para a Procissão do Espírito Santo de Pereiro de Palhacana (2022).

 

A atualidade − a revitalização das festas

 

Durante todo o séc. XX, e após mais de 150 anos de interrupção, existe ainda o registo da celebração das festas do Espírito Santo na vila de Alenquer a 19 de maio de 1945. Segundo Francisco Câncio (1956), por iniciativa da Junta da Província da Estremadura organizou-se naquela data uma “recriação” dos festejos à imagem do que teriam sido no séc. XVII (pp. 221–222), uma espécie de “cortejo”, ou “recriação histórica” das celebrações.

Isto não quer dizer que o culto não se tenha realizado de forma mais discreta em várias localidades do concelho, como veremos mais adiante que aconteceu, por exemplo, na Ota ou em várias aldeias da freguesia de Aldeia Galega da Merceana (onde existem testemunhos das festas nos anos 30 e até mais recentemente, após o 25 de abril de 1974, em Casais Brancos). Mesmo na vila de Alenquer a celebração do Pentecostes, dia por excelência do Espírito Santo, foi sempre uma data muito celebrada.

Para além do esplendor das FIDES na vila de Alenquer, são evidentes vestígios da presença de confrarias e casas do Espírito Santo em diversas terras do concelho, nomeadamente os antigos locais de culto como, por exemplo: as capelas do Espírito Santo de Aldeia Gavinha, Aldeia Galega, Arneiro, Atalaia, Paúla, Pereiro de Palhacana e a Igreja do Divino Espírito Santo da Ota.[1]

É, contudo, no início do séc. XXI que se inaugura, no concelho, um processo de revitalização das festas do Espírito Santo de Alenquer. Conforme refere o historiador Filipe Rogeiro (2022),[2] a recuperação das celebrações era um assunto recorrente entre representantes de várias entidades locais e entre diversos curiosos da história local – membros de associações, de paróquias, políticos, Câmara Municipal, Misericórdia, entre outros. Mas terá sido em 2000, quando o Cardeal D. Manuel Clemente (então Bispo Auxiliar de Lisboa) assumiu a responsabilidade pastoral pela região onde Alenquer se insere, que essa vontade foi veemente defendida, tendo sido decisivo quer o incentivo do Cardeal junto do pároco de Alenquer − o Padre José Eduardo Martins −, quer o entusiasmo do próprio pároco (que na altura era também o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Alenquer). Importante foi ainda o interesse e a disponibilidade do então vereador da Câmara Municipal de Alenquer, Luís Rema, (2022)[3] para consubstanciar esse processo.

Sobre a revitalização das festas o Diácono Duarte João d’Oliveira (2022), atual membro da Comissão das FIDES de Alenquer (em representação da Paróquia de Alenquer), refere:

“O Padre José Eduardo Martins, já falecido, (…) era um interessado [pela história local], aliás tem várias publicações sobre a história do concelho de Alenquer, e portanto foi muito fácil o D. Manuel Clemente, deixe passar a expressão, “picar” o pároco para restaurar as festas. Porque era um bocadinho esta a convicção: (…) são festas que alma do povo bebeu e apreciou e, portanto nesse sentido, (…) bastaria soprar as brasas (…) dessa festa para o lume surgir de novo com todo o seu vigor”.

Havia, porém, uma questão importante a resolver antes de se poder “pensar” na revitalização das festas. Segundo Luís Rema (2022), a Igreja do Divino Espírito Santo, propriedade da Misericórdia, “estava encerrada para obras há alguns anos. As obras tinham alguma complexidade, não havia dinheiro (…), talvez [esse] fosse o problema maior para que as obras não se fizessem de uma forma célere. E de facto essas obras decorreram durante alguns anos [da Igreja e da albergaria]”. No entanto, Luís Rema e o Padre José Eduardo Martins acordaram que reiniciariam o projeto de revitalização das festas assim que “a Igreja estivesse plena do seu virtuosismo, (…) pronta para ser inaugurada e para ser usada ao culto”. “E assim aconteceu”, conclui Rema, “esta conversa deve ter acontecido em 2004−2005 e depois, em 2007, proporcionou-se o regresso das festas”.

O Diácono Duarte João (2022) acrescenta que o facto de o Padre José Eduardo Martins ser simultaneamente o prior e o provedor da Misericórdia, entidade sucedânea da Casa do Espírito Santo, proprietária dos imóveis que careciam de obras, facilitou a conjugação de tudo, a concretização do restauro e o reinício das festas.

Entretanto, neste meio tempo, entre a finalização das obras e o reinício dos festejos, definiu-se a composição da então nomeada Comissão das Festas do Império do Divino Espírito Santo de Alenquer − as Paróquias, a Santa Casa da Misericórdia e a Câmara Municipal de Alenquer.

Assumindo a Comissão que esta iniciativa partiu de parcerias institucionais em 2007, hoje, 15 anos depois, o envolvimento de dezenas de praticantes/organizadores nas diversas localidades do concelho e de milhares de participantes nos diversos eventos das festas, leva-os a acreditar na convicção descrita anteriormente pelo Diácono: “bastaria soprar as brasas (…) para o lume surgir de novo com todo o seu vigor”.

É ainda o Diácono que descreve detalhadamente os princípios que estiveram na base da revitalização das celebrações, assumindo de modo inequívoco a influência da “narrativa Isabelina” e a devoção à Rainha Santa. Explica que a Comissão podia ter seguido duas formas de concretizar os festejos: ou “fazíamos uma espécie de arqueologia – íamos à ‘poeira’ de 700 anos atrás buscar as festas no modelo em que a Rainha Santa as concretizou e reproduzíamos a coisa tal e qual”; ou tentavam imaginar o que a Rainha Santa Isabel teria em mente quando instaurou as festas mantendo “o objetivo que ela queria atingir”, esclarece. Optaram pela segunda hipótese. Pensando na Rainha como uma “alma caridosa”, “angustiada” com “o sofrimento dos mais fragilizados e dos pobres, uma pessoa plena de caridade, cheia de vontade de ajudar, uma construtora da paz”, decidiram que o mais importante era replicar e promover os valores da Rainha e o espírito das festas, dinamizando um modelo que permitisse, nos dias de hoje, “difundir a paz, a fraternidade e a solidariedade”. Assim, mantendo elementos básicos da tradição − as celebrações religiosas (missas e procissões) e o bodo − adaptaram os festejos ao séc. XXI e àquilo que as comunidades consideraram razoável e pertinente realizar nos dias de hoje. Modelo em que “o detalhe da concretização tem-se vindo a afinar ano após ano e hoje, 15 anos depois, não é exatamente a mesma coisa que fizemos [no início], o espírito é que é o mesmo”, conclui o Diácono.

Pormenorizando o modelo adotado Duarte João explica que “as festas assentam num tripé”. Em primeiro lugar, na perspetiva religiosa, são festas Pascais. No seu entender, a maioria das pessoas associa a Quaresma a um período (quarenta dias) onde vão acontecendo vários eventos: as procissões dos passos, as procissões do enterro, as vias-sacras, as práticas tradicionais do jejum e uma atitude de caridade mais intensa. Já quando se fala em Páscoa o que vem à mente das pessoas é somente o domingo de Páscoa, mas segundo o Diácono isso não deveria acontecer. A Páscoa também é um período de festa que deve ser marcado por celebrações, esse foi o propósito da revitalização dos festejos, o preenchimento deste período Pascal:

“Se a Quaresma foram quarenta dias [de] caminhar penitencial, a Páscoa são cinquenta dias de festa. (…) E isto às vezes escapa[-nos] (…). O tempo Pascal vai do domingo de Páscoa durante sete semanas, oito domingos, até ao domingo do Pentecostes, que é o domingo do Espírito Santo por excelência. E portanto, (…) uma das coisas que se procurou (…) com as festas do Espírito Santo foi preencher um tempo que estava habitualmente vazio. A Quaresma que era a preparação estava muito cheia, depois a Páscoa que era a festa [estava vazia], havia aqui um contrassenso. (…) A ideia é preencher este tempo com festa, com vida em abundância, todo este tom que às vezes falta ao período Pascal. Por isso as festas arrancam no domingo de Páscoa, pautam todos os domingos subsequentes, até chegar como a um cume, a um momento culminante no domingo do Pentecostes, cinquenta dias depois (…)” (Diácono Duarte João, 2022).

O segundo pilar das festas é a ação social e a solidariedade enquanto ação do Espírito Santo. “Como já disse antes, essa era a grande preocupação do coração da Rainha Santa, e continua a ser a nossa preocupação”, continua o Diácono explicando que, sobre este aspeto, diferentes iniciativas foram promovidas ao longo dos últimos 15 anos. No início destacaram práticas de “bem-fazer” das coletividades, associativismo, escolas, outras instituições e indivíduos do concelho (enquanto obras inspiradas na ação e nos “dons” do Espírito Santo). “Ultimamente, e (…) este ano vai ser de novo assim, esta solidariedade vai concretizar-se sobretudo numa partilha, com os mais pobres e os mais carenciados (…). As comunidades são convidadas a trazer daquilo que é seu, dos seus bens, alimentares e outros, vestuário, etc., e depois a Ação Social da Câmara Municipal encarrega-se de fazer chegar [esses bens] aos mais carenciados”.

Por fim, como terceiro pilar, o Diácono refere a concretização efetiva das festas: as missas, as procissões e o bodo. “Elementos que não podem faltar. E mesmo hoje, quando estes cinquenta dias do tempo pascal, e os domingos que o integram, estão preenchidos com as festas que se realizam nas várias localidades do concelho, estes elementos estão lá”.

Ainda sobre os primeiros anos da revitalização dos festejos o historiador Filipe Rogeiro (2022) acrescenta que, ao contactarem com confrarias e pessoas ligadas às capelas do Espírito Santo das diversas localidades, encontraram um vasto património ligado ao culto e às festas no concelho de Alenquer – coroas, imagens da Rainha Santa, bandeiras, etc. “Até recuperámos em casas particulares, uma coroa que sendo do povo estava ali guardada… talvez há 100 anos [referindo-se à coroa do Paiol].” Esta abordagem às comunidades locais realizou-se inicialmente com o objetivo de sensibilizar e suscitar interesse pela revitalização das festas. Assim, nos primeiros anos, em cada um dos domingos, a Comissão das FIDES de Alenquer organizou palestras explicando em cada localidade a génese do culto e dos festejos e citando as referências que sabiam haver daquela terra nesse processo. As comunidades foram ainda convidadas a participar nos festejos da vila de Alenquer “e portanto, tomaram-lhe o gosto”, refere o Diácono Duarte João acrescentando que com essa iniciativa as pessoas ficaram sensibilizadas e motivadas para participar na organização das celebrações nas suas próprias terras e, mais recentemente, o Carregado, que não tinha registo desta tradição, decidiu juntar-se aos festejos:

“Foi muito curioso, porque depois começaram a ir às gavetas das sacristias, aos baús, às vezes até de famílias particulares, onde começaram a descobrir: ‘Olha está aqui a nossa coroa! Olha está aqui a nossa bandeira! Olha está aqui o nosso galhardete!’. E portanto esse espólio foi sendo recuperado e foi-se gerando um movimento natural. Isso é que é importante nestas coisas. É não irem de ‘cima para baixo’, mas brotarem espontaneamente da alma do povo (…).

E hoje todas estas terras, de facto, já seguem um modelo sobre o ponto de vista da procissão, bodo, missa, etc., semelhante ao que terá sido aqui em Alenquer, e ao que terá sido no passado. E, mais ainda, uma outra terra que não tendo essa tradição no passado bebeu da ideia e juntou-se também, e agora faz as festas como realidade recente, atual, o Carregado.

Sobre o envolvimento da Câmara Municipal de Alenquer na promoção e salvaguarda das Festas, Rui Costa (2022),[4] Vereador da Cultura, realça o papel do Congresso Internacional do Espírito Santo organizado em 2016. Refere que “depois de dois anos de intenso trabalho a Câmara Municipal de Alenquer, como resultado de um estreito trabalho de parceria com a Confraria da Rainha Santa Isabel de Coimbra e várias instituições científicas nacionais e internacionais, organizou durante sete dias em Coimbra, Lisboa e Alenquer o Congresso Internacional do Espírito Santo, um momento de extrema importância para o concelho e que se revelou um espaço de encontro fraterno e de partilha”. De acordo com o autarca, este evento permitiu promover a pesquisa e a investigação em torno do culto e das Festas do Espírito Santo e “deu a conhecer ao mundo ‘Alenquer’ enquanto berço das referidas festividades e, do ponto de vista da cultura popular, como se vivem e se recriam as tradições do Espírito Santo, nas comunidades nacionais e internacionais da diáspora portuguesa”.

Para Rui Costa o Congresso marcou um ponto de viragem nas festividades locais retomadas nove anos antes, em 2007, “fruto da visibilidade que as nossas festas tiveram junto de congressistas de todo o mundo que levaram esta mensagem consigo para todo o lado, e com esta afirmação territorial do concelho até aos dias de hoje, as Festas têm-se reinventado e reaproximado de inúmeras outras localidades portuguesas e estrangeiras que as mantiveram sempre bem vivas ao longo dos tempos”. Foi a partir desta iniciativa que se estabeleceram importantes relações e contactos com outras comunidades festivas, como por exemplo: uma geminação com o Município de Angra do Heroísmo, um protocolo de cooperação cultural com o Município de Ponta Delgada e diversos contatos com outros concelhos do país, como Fundão, Santa Cruz das Flores, Santa Cruz da Graciosa, Horta, Tomar, Torres Novas, Vagos e com outras comunidades dos Estados Unidos, Canadá, Brasil e Cabo Verde. “Destes contatos têm os programas culturais e recreativos das festas do Espírito Santo de Alenquer beneficiado de inúmeras manifestações de cultura popular e erudita, vindas dessas outras periferias do globo”, concluí Rui Costa.

O autarca refere que à parte “dos pilares das festividades do Espírito Santo de Alenquer, assentes na sua componente religiosa através das missas, procissões, bodos e espírito solidário, decidiu a Comissão Organizadora das Festas atribuir ao Município de Alenquer, um papel de ‘quase’ mordomo das festas”, financiando a sua organização e desenvolvendo em paralelo um extenso programa cultural e recreativo. Para Rui Costa este programa “tem como missão promover a reunião das pessoas e facilitar-lhes a congregação de vontades em torno de um ideal comum, o do encontro e da concórdia, o da fraternidade e da partilha, o da harmonia, justiça e paz, valores que nos permitem todos os dias sonhar com a esperança na possibilidade da construção de um futuro mais justo e mais fraterno na nossa casa comum que é o planeta terra”.

Rui Costa fala da “premissa de reinvenção e modernização das festas numa vertente mais cultural e mais atrativa para a população mais jovem e/ou mais afastada das festividades religiosas, como estas são entendidas, ainda que em muito ultrapassem esse desígnio na sua vertente mais humanista e espiritualista” e destaca o projeto da Câmara Municipal desenvolvido pelos seus colaboradores Cláudia Luís e Pedro Fortuna que, devido a uma “dedicação e compromisso inigualáveis”, ajudaram a devolver as festas a todos os munícipes e a promover o seu envolvimento na organização das mesmas. Refere, por exemplo, que este projeto “conseguiu mobilizar centenas de alenquerenses, das mais pequenas aldeias à zona mais urbana, para iniciativas de embelezamento e enquadramento cenográfico da vila, com centenas de milhar de flores nos tetos do Caminho da Rainha Santa, com tapetes de flores naturais nas ruas da vila, com instalações artísticas diversas no percurso entre a Igreja do Espírito Santo e o Convento de São Francisco”.

Ainda sobre a transmissão e salvaguarda das festas do Espírito Santo de Alenquer, Rui Costa evidencia o trabalho realizado com e por diversos grupos da população, referindo que hoje as FIDES de Alenquer:

Também são as festas das crianças nas escolas que pintam e decoram as pombas e coroas; também são as festas dos lares e centros de dia dos idosos que fazem flores; também são as festas dos seniores que disponibilizam o seu tempo livre para fazer rendas e enfeitar o espaço público; são as festas dos voluntários que montam quadros, que penduram flores, que cozinham bodos, que servem sopas, como já não se via há muito tempo, há muitos anos. São as festas de todos… num clima de paridade, de indistinção de etnias, nações e estatutos sociais, representando mais uma tentativa de concretização da utopia da fraternidade universal, atualizando a esperança e afrontando a crise global que vivemos numa busca incessante de encontrar caminhos de superação e de progresso em favor do melhoramento da vida humana.

(…) Hoje em 2022, as Festas do Espírito Santo de Alenquer são uma oportunidade única para cada um de nós reatar os fios perdidos de uma herança de séculos que tem um encanto e grandeza incomparáveis e um alto valor espiritual. São a oportunidade única para comungar da partilha do pão, da carne e do vinho, num claro anúncio de um reino de igualdade, de amor, de liberdade, de generosidade e de abundância justamente repartida entre todos, à simples distância de um gesto ou de uma ação.

 

[1]Em Casais Brancos, Vale Benfeito e Paiol com igrejas recentemente contruídas.
[2]Em entrevista realizada no âmbito desta pesquisa. Também membro da Comissão das FIDES de Alenquer enquanto representante da Câmara Municipal de Alenquer.
[3] Em entrevista realizada no âmbito desta pesquisa. Atual Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Alenquer.

[4] Em entrevista realizada no âmbito desta pesquisa.