Laje de 1567 da Igreja do Espírito Santo da Ota, com inscrição sobre doações ao culto (2022).
Do séc. XV ao séc. XIX – do auge à extinção
Percorrendo a evolução do culto e das festas em Alenquer desde o séc. XV até ao séc. XIX, começamos por analisar os dois documentos transcritos por Brás de Araújo de Valadares, já aqui referidos, e que relatam milagres relacionados com a Casa do Espírito Santo.
Primeiro abordamos a transcrição do milagre que, segundo a crença, se deu no séc. XV, no reinado de D. Duarte (1433−1438) e que atesta o imenso prestígio e a vasta dimensão das festas nessa época (Costa, 2014). Este texto começa por evocar a magnificência das festas sublinhando as habituais participações reais e as grandes dádivas alimentares no bodo (dez a doze bois se o rei estava presente, sete bois por norma). O milagre relata a forma como toda esta carne era cozida com água lançada “por uma só vez”, algo impossível de acontecer, a não ser por obra divina. O texto refere que D. Duarte para atestar esta proeza enviou o seu cozinheiro-mor Martim Gonçalves e mais dois ou três cozinheiros em quem este confiava para verem o tempero e o “cozer da dita carne do Espírito Santo” recomendando que não se distraíssem, nem dormissem durante todo o processo. Segundo o relato, eles assim o fizeram acabando por confirmar o milagre. Durante toda a cozedura não havia sido lançada “água nem vinagre mais que uma só vez”:
“Vindo El-Rei Dom Duarte em romaria a esta Santa Casa do Santo Espírito, para assistir à sua festa, por ser costume dos reis virem a ela, se lhe contou em como todos os touros que se matavam, que sendo costume matar-se sete, quando vinham os reis dez e doze, por razão da muita gente, se coziam todos com uma água e vinagre que por uma só vez se lhes lança”.
“El-Rei, como cristianíssimo, nem por duvidar do milagre, mas porque falando ele no dito milagre muitos duvidaram, e também Martim Gonçalves, seu cozinheiro-mor, que dizia que tanta carne se não podia cozer sem que lhe deitasse muitas vezes água, assim como ele fazia em sua cozinha, que uma panela, nela só, deitava duas e três vezes água, mandou ao dito Martim Gonçalves tomasse dois ou três cozinheiros em quem mais se fiasse, e fossem a ver o tempero das caldeiras e ao cozer da dita carne do Santo Espírito, e que avisasse que não dormisse ele nem os outros, e que visse como tudo se faria até a carne ser toda cozida. E ele e os outros assim o fizeram, e toda a noite nunca dormiram até toda a carne ser cozida, e então se foi a El-Rei e lhe contou tudo, e como lhe não lançaram água nem vinagre mais que uma só vez. E as caldeiras ficaram em aquele ponto em que a primeira vez as puseram, com tanto caldo, afirmando o dito Martim Gonçalves ao dito Senhor que era grande milagre”.
Descrições antigas falam de outros eventos que demonstravam a fama das festividades da época: danças e folias, toiradas, jogos de destreza, cavalhadas, entre outros. Sobre a cerimónia religiosa encontram-se nas Memórias Paroquiais descrições sobre a saída “de uma função” da Igreja do Espírito Santo até à Igreja do Convento de São Francisco composta pela bandeira da Confraria, músicos, crianças, damas, pessoas nobres, capelão e as insígnias da coroa e da pomba. É ainda descrito um outro festejo que se realizava no “sábado, véspera do dia do Espírito Santo”. Devido à riqueza dos pormenores transcreve-se de seguida a descrição dos elementos e rituais dessas cerimónias (transcrição completa do documento no anexo 2):[1]
“Por costume antiquíssimo e acórdãos da dita Confraria, se fazia na dita Casa, em todos os domingos desde o de Páscoa até o do Espírito Santo, uma função chamada Império, que saía da dita igreja, em que ia diante a bandeira da Confraria, acompanhada com trombetas, com duas pelas bailando aos ombros de homens, por serem meninas de pouca idade. Logo uma dança das antigas do reino, depois muitas pessoas nobres, a que se seguiam duas moças donzelas toucadas e bem vestidas em corpo, a que chamam damas, e, entre elas, um menino nobre, que leva nas mãos uma espada larga sem copos com cruz e punhos dourados e bainha de veludo, chamada estoque, e dizem que fora do dito Rei Dom Dinis, servindo assim o dito menino de pajem do imperador, que é um homem nobre, que vai logo detrás, e ultimamente um capelão, com um prato grande de prata dourado, e nele uma coroa imperial da mesma matéria, com uma pombinha, figura do Espírito Santo; e se encaminhava toda esta comitiva até à igreja do Convento de São Francisco, onde bailavam as ditas damas, antigamente ao som da gaita e tamboril, e modernamente com um homem que juntamente tocava viola, e depois, pondo-se o dito imperador de joelhos nas escadas do altar-mor, era coroado com a dita coroa por um padre do dito convento, revestido de capa de asperges, e voltava toda a dita comitiva pela praça, e outras ruas da vila, até à dita Igreja do Espírito Santo, onde um capelão revestido, depois de dar a beijar ao imperador uma cruz com o Santo Lenho, lha tira da cabeça e, nas suas mãos, a beijam todos os circunstantes. E depois saíam todos para a varanda de baixo, onde o imperador se sentava debaixo de um rico dossel de brocado, e as ditas damas e menino do estoque aos seus pés, e logo quatro pessoas, das mais autorizadas que ali se achavam, lhe iam oferecer frutos e vinho, com as mesmas reverências que se fazem a majestade, e repetia então a mesma dança o homem da viola, com as ditas damas, e de novo tornavam os mesmos homens nobres, ou fidalgos, a ir oferecer doce e águas ao dito imperador, com as mesmas cerimónias, e nelas dava fim esta função (…)”
“(…) No sábado, véspera do dia do Espírito Santo, de tarde, há também outra função, que por tradição já escrita em livros antigos se diz que principiara por um voto, que em tempo do Rei Dom Afonso II [reinou entre 1211 e 1223] fizera esta vila à Senhora da Assumpção, que se venera na Igreja Paroquial de Triana da mesma vila, se esta, por interceção da mesma Senhora, se livrasse da peste que então houve neste reino. Principalmente se prende um rolo de cera bento, a que chamam candeia, em o altar-mor da Igreja de São Francisco e daí se vai continuando a estender, preso nas paredes, pelas ruas da dita vila, até o altar-mor da dita Igreja da Senhora de Triana. Logo se ajuntam na dita Igreja de São Francisco todo o clero secular e regular, nobreza, justiças e senado da Câmara desta vila, com as suas insígnias, e também o dito imperador, com dois homens dos principais delas para fazerem a figura de reis, e, ajoelhando todos no altar-mor, são todos três coroados por um padre revestido com capa de asperges, o imperador com a dita coroa imperial e, aos seus lados, os dois reis com coroas de prata abertas, todas com a pombinha figura do Espírito Santo, e depois sai todo este ajuntamento em procissão, precedendo a bandeira da dita Confraria acompanhada de pelas e trombetas, e no fim vai o dito imperador, entre os dois reis, levando diante as ditas damas e pajem, com o estoque. E discorrendo pelas ruas da vila, rodeadas do dito rolo ou candeia, entram na sobredita Igreja de Triana onde fazem oração (…)”.
Considerando a pesquisa realizada pelo Arquivo Histórico do Município de Alenquer, vários documentos atestam o contínuo apoio da realeza à Casa do Espírito Santo de Alenquer durante o séc. XV (anexo 4):
“O rei D. Duarte, por volta de 1435, deu licença aos mordomos para trazerem das matas da Ota a lenha e qualquer madeira necessária para o bodo. Sua mulher, D. Leonor de Aragão, pela mesma altura, encontrando-se em Alenquer, outorgou à Albergaria uma carta de privilégio. Afonso V confirmou, em 1450, a licença dada por D. Duarte relativa à lenha para o bodo e, em 1462, ratificou a carta de sua bisavó, D. Beatriz, tomando «em sua ajuda e defesa a albergaria dessa Confraria com seus homens, herdades e gados»” (Folgado, 2010, p.41).
Já o texto denominado «Milagre que aconteceu na Casa do Espírito Santo», remete para um suposto milagre que aconteceu mais tarde, no séc. XVI. Relata um juramento assinado por testemunhas, provedor, mordomo e escrivão da mesma Casa, a 5 de maio de 1543. Este juramento refere-se ao dia em que, depois da limpeza das caldeiras da cozedura dos touros do bodo, deu-se um milagre − aqueles que executaram essa tarefa viram línguas de fogo a sair por debaixo das caldeiras, sem que nada o justificasse, pelo contrário, tudo estava húmido e nada poderia alimentar aquele fogo a não ser a graça do Espírito Santo:
“Andando como é costume um Pedro Garcia, hospitaleiro da Casa, e Isabel Martins, moradora na Silveira, termo desta vila de Alenquer, limpando a cova debaixo das caldeiras em que se cozem os touros para o bodo, depois de a terem limpa, e querendo ir buscar fogo para acenderem a fornalha, viram, debaixo das caldeiras, grande claridade, e, olhando o que era, viram sair do chão línguas de fogo, sem dentro, na fornalha, haver coisa em que pudesse estar, nem na casa havia fogo, nem em parte de onde ali pudesse vir, antes a parte de onde apareceu estava muito húmida, pelo que averiguaram ser manifesto milagre”.
De referir que estes episódios milagrosos amplamente divulgados, junto com a proteção dos monarcas, as doações e a importância social dos confrades justificavam o “prestígio e riqueza de que [a Casa] então gozava” (Folgado, 2010, p. 41). Os registos históricos apontam, assim, para festejos de grande esplendor durante quatro séculos – entre o séc. XIV e o séc. XVII. Em relação aos confrades, uma lista realizada pelo Arquivo Histórico Municipal (anexo 3) atesta a notoriedade das personalidades que estavam à frente da Confraria do Espírito Santo de Alenquer. Entre eles, Afonso de Albuquerque e Damião de Góis:
“Um dos confrades, inscrito no ano de 1500, foi Afonso de Albuquerque, mais tarde célebre como governador da Índia, que era de Vila Verde dos Francos, antiga sede de um pequeno município. Outro foi Damião de Góis, o mais notável alenquerense de todos os tempos, que era irmão de Francisco de Macedo, provedor da Casa (…). Damião de Góis terá com a Casa do Espírito Santo de Alenquer uma relação estreita. Confrade desde 1521, quando tinha 19 anos, ali viria a inscrever, em 1549, a mulher, D. Joana de Argem, e os filhos, Manuel, Ambrósio, Rui e Catarina. Preso pela Inquisição em 1571−72, virá a declarar que, quando estava em Alenquer, ia ouvir missa à Ermida do Espírito Santo, a cuja Casa fez várias ofertas” (Folgado, 2010, p. 41).
Folgado (2010) refere mesmo que terá sido o prestígio dos confrades e a riqueza da Casa de Alenquer que a pouparam “da primeira reforma da assistência pública em Portugal, que teve como consequências, entre outras, a centralização hospitalar e o incentivo à fundação de confrarias de Misericórdia”. Isto no reinado de D. Manuel I, entre os séculos XV para XVI, altura em que muitas das Casas do Espírito Santo foram transformadas em Misericórdias. Contudo, tendo escapado à transformação, a Casa de Alenquer não deixou de ser atingida pela reforma com o Rei D. Manuel a ordenar “que a Casa fosse dirigida por um provedor, escrivão e mordomos. O provedor então escolhido foi Francisco de Macedo, em cuja descendência se manterá a provedoria até à extinção da Confraria” (p.41).
É no séc. XVIII que os registos denunciam o declínio do culto, da casa, da igreja e das festas do Espírito Santo em Alenquer. Com grandes perdas de rendimentos, tanto o funcionamento da Casa como a conservação do património da Confraria ficam em risco, nomeadamente o património edificado. Em 1705, a Rainha D. Catarina envia para a Câmara de Alenquer uma carta que enuncia a decadência do edifício do hospital, sendo “necessário realojar os enfermos pobres, pondo-se então, como hipóteses, transferi-los para o da Misericórdia ou criar um hospital novo. Por 1730 é a igreja que ameaça ruína, sendo então reedificada” (Folgado 2021, p.41). Guilherme Henriques, historiador local, refere que em 1750 as festas já tinham perdido a sua glória primitiva [(1873) (1902) 2002]. Entre outubro e novembro de 1810, a invasão francesa precipita o fim da Casa. “A igreja sofreu bastante dano e as casas contíguas foram incendiadas e quase reduzidas a ruínas, perdendo-se o arquivo” (Costa 2014, p.1). Por fim, a Casa é oficialmente extinta em 1834, sendo os seus bens e rendimentos anexados à Santa Casa da Misericórdia de Alenquer (Folgado 2010, Costa 2014).
[1]Descrição realizada posteriormente, já no século XVIII, quando as festas já teriam perdido muito do seu esplendor. Texto de Pedro da Silveira, Prior da Freguesia de São Pedro da Vila de Alenquer, a 15 de abril de 1758. (A.N.T.T., Memórias Paroquiais, vol. 2, n. º46-a, pp. 367-377).