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                                     Pentecostes em baixo-relevo, séc. XV – XVI, Igreja do Espírito Santo de Atalaia (2022).

 

Contexto Histórico

 

Séculos XIII e XIV
 

Sendo evidente a referência a Alenquer pela maioria dos estudiosos que realizam ou realizaram pesquisas sobre as confrarias, o culto e as festas do Espírito Santo, especialmente quando enunciam as várias narrativas das suas origens (por exemplo, D. Rodrigo da Cunha, 1642; Frei Manuel da Esperança, 1656; Frei Francisco Brandão, 1672; D. Fernando Correia de Lacerda, 1680; Padre Manoel Fernandes, 1690; Azevedo, 1963; Cortesão, 1980; Lourenço, 2001; Leal, 2017, entre outros), não se conhece porém uma data precisa para a fundação da confraria da igreja do Espírito Santo de Alenquer ou das festas. Existem, contudo, documentos que sugerem a sua existência já no século XIII.

Segundo Lourenço (2001) a albergaria do Espírito Santo de Alenquer “existia, pelo menos, desde o tempo de D. Sancha, filha de D. Sancho I [senhora de Alenquer, falecida em 1229], que criaria no edifício dos Paços da Família Real um albergue para enfermos pobres e peregrinos” (p. 653). A instalação desse hospital nos Paços Reais substituiria as instalações que D. Sancha doou aos frades menores e onde se edificaria mais tarde o Convento de São Francisco (Vale & Ferreira, 1999).

Continuando as referências ao século XIII, é forçoso abordar o artigo que o historiador Rui Pinto Azevedo (1963) redigiu sobre compromissos de confrarias, onde conclui que o “Compromisso da Confraria do Espírito Santo de Benavente”, redigido em latim, é anterior a 1234, e por isso o mais antigo que se conhece. Mas no mesmo artigo o autor refere que “há fortes motivos para supor que as confrarias do Espírito Santo se regularam todas pelos mesmos estatutos” (p. 9) e, citando um texto de Braancamp Freire (1903), fala-nos da notícia de compromissos mais antigos, entre eles o de Santa Maria de Sintra, cujo documento original teria sido exarado em Alenquer em 1217:

“A. BRAAMCAMP FREIRE, Archivo Histórico Portuguez, vol. I (Lisboa,1903) pp. 349−355, dá-nos notícia dos mais antigos compromissos de confrarias de que teve conhecimento:  o de Santa Maria de Sintra, existente em mau traslado no cartório dessa igreja, do qual consta ter o documento original sido exarado em Alenquer no mês de Março da Era de 1255 (ano de Cristo, 1217)” (Azevedo, 1963, pp.10−11).

Ou seja, Alenquer surge mais uma vez como a referência mais antiga da confraria e Rui Pinto Azevedo crê mesmo que, se o compromisso de Santa Maria de Sintra é anterior ao de Benavente e foi lavrado em Alenquer, foi nesta povoação que foi “fundada em data mais remota a confraria do Espírito Santo com estatutos semelhantes aos de Benavente”. Referindo-se depois às festas, acrescenta: “tanto mais que já aí existia ermida da mesma invocação, onde, depois de sofrer obras e ampliações, se celebraram com grande pompa as festas imperiais do Espírito Santo” (1963, p.11).

 

A narrativa de origem “franciscana”

 

Sobre a origem das primeiras confrarias, Azevedo (1963) expõe brevemente duas pistas distintas. Por um lado, ao descrever o que consta nos primeiros compromissos, em particular os deveres caritativos dos confrades − apoiar os mais pobres nos momentos de dificuldade, doença e morte −, enquadra as confrarias na narrativa de origem dita “franciscana”:

“(…) no tipo das confrarias de caridade e socorro mútuo criadas por leigos, que proliferaram na Península Ibérica durante a referida centúria (6), as quais quanto a fins e práticas de beneficência revelam grandes semelhanças com a Ordem Terceira de S. Francisco” (p.9).

Por outro lado, em nota de rodapé o mesmo autor aborda a influência dos colonos francos que se fixaram na região de Lisboa, no reinado de D. Sancho I:

“(…) se atentarmos em que Alenquer e Benavente se situam na zona do país onde, no reinado de D. Sancho I, se fixaram importantes núcleos de colonos francos (os de Azambuja e Montalvo de Sor, ambos nas margens do Tejo), talvez não seja arrojado supor haverem sido esses colonos os introdutores em Portugal das confrarias do Espírito Santo” (Azevedo, 1963, pp.11−12).

Citando a entrada “Saint Esprit” do Dictionnaire des Sciences (Bruillet), Azevedo “diz ter havido em França, sob a invocação do Espírito Santo, uma ordem de religiosos hospitaleiros, fundada no século XII e aprovada em 1198” (1963, p. 12).

De referir que a teoria da importância dos colonos francos nas origens do culto do Espírito Santo é bastante residual na literatura produzida sobre o tema, o que já não acontece com a teoria da origem baseada na ação da Ordem Franciscana. Particularmente em relação ao culto em Alenquer, esta segunda hipótese é bastante apoiada na medida em que, em Portugal, foi neste concelho que as Ordens Mendicantes foram primeiramente acolhidas. Entre 1212−1218, Frei Zacarias, protegido da Infanta D. Sancha, chega a Alenquer para fundar o convento Franciscano.[1]

 

Sala anexa à nave da Capela do Espírito Santo de Aldeia Galega que serviria de abrigo-hospital para o tratamento de enfermos (2022).

 

A narrativa “franciscana” da origem das festas do Espírito Santo é amplamente defendida pelo historiador Jaime Cortesão (1980), reforçando em particular a importância dos “franciscanos de tendência espiritual” (p. 262) por influência dos escritos do abade Joaquim di Fiore[2] que proclamavam profeticamente a chegada da Terceira Idade, a “Idade do Espírito Santo”, que depois da “Idade do Pai” e da “Idade do Filho”, menos bem sucedidas, viria finalmente a consagrar a igualdade social e promover a abundância (Leal, 2017).

Ainda sobre as menções ao culto do Espírito Santo em Alenquer no século XIII, conforme refere Folgado (2010), “conjeturas à parte”, o primeiro documento que positivamente se refere ao Espírito Santo é uma carta datada de 18 de setembro de 1279, onde a rainha regente D. Beatriz enuncia tomar “em sua guarda e defesa” a Albergaria do Espírito Santo (Costa, 2014; Folgado, 2010; Lourenço, 2001; Vale & Ferreira, 1999). Esta carta mostra-nos que àquela data “a confraria já tinha agregada uma albergaria, como aconteceu em grande número de terras, e [era] merecedora da proteção real” (Folgado, 2010, p. 39).

 

 

Pormenor do Óleo da sala dos Capelos da Universidade de Coimbra com a representação da Rainha St. Isabel e D. Dinis.

 

A narrativa de origem “Isabelina”


Completamente enraizada na narrativa local está a teoria da fundação da Casa do Espírito Santo em Alenquer (igreja, confraria e festas) por iniciativa da Rainha Santa Isabel (1271−1336)[3] (Costa, 2014; Folgado, 2010). De referir que no discurso da maioria dos entrevistados que participaram nesta pesquisa, principalmente entre aqueles que organizam as festas nas várias localidades do concelho, continua a ser esta a versão mais citada, sempre envolta numa aura de devoção à Santa Isabel e orgulho por esta ter sido “senhora das Terras de Alenquer”, tal como orgulho na “estima” que a mesma teria por esta zona do país.

Muito contribuiu para a fundamentação deste argumento a existência no Arquivo Histórico Municipal de Alenquer de uma transcrição do “Princípio e fundamento da Casa do Espírito Santo da vila de Alenquer, dado pela Rainha Santa Isabel, mulher de El-Rei D. Dinis, no ano de 1321”. Documento que não provando a data da fundação da Casa do Espírito Santo, prova, contudo, a existência de uma Casa e das Festas, nesta data, em Alenquer.

Esse texto e outros relacionados com a Casa do Espírito Santo − entre eles o “Primeiro Compromisso da Casa do Espírito Santo…” de Alenquer − são amplamente analisados em Folgado (2010) e Costa (2014).[4] Usando estas duas publicações, baseadas nas pesquisas levadas a cabo pelo Arquivo Histórico Municipal de Alenquer, resumimos de seguida os seus conteúdos.

As transcrições que destacamos: o «Princípio e fundamento da Casa do Espírito Santo da Vila de Alenquer…»; o «Primeiro Compromisso da Casa do Espírito Santo que fizeram os Confrades» (s.d.); um «Milagre que aconteceu na Casa do Espírito Santo» e, ainda, um «Outro Milagre» relacionado com a Casa, são todas parte dum mesmo livro da Câmara de Alenquer, usado entre 1654 e 1672 e são da autoria de Brás de Araújo de Valadares, na altura escrivão da Câmara.

Nesse livro consta que estas transcrições foram feitas a 22 de dezembro de 1663, à vista de “um muito velho e antigo livro” então achado “em uma arca onde jazem os papeis e escrituras da vila de Alenquer”, “uma certidão e papéis antigos autênticos que estão no cartório da dita Santa Casa [do Espírito Santo] e no da Câmara desta dita vila”. No fim refere: “E não continham mais os ditos papéis, que todos aqui tresladei bem e fielmente, a que me reporto. Brás de Araújo de Valadares, escrivão da Câmara o escreveu por mandado e autoridade do juiz e vereadores para a todo o tempo constar todo o sobredito”. O treslado ocupa as folhas 85 a 92 do referido livro, encadernado a pergaminho.[5]

O «Princípio e fundamento…», é a escritura pública, com testemunhas, de uma versão do conhecido Milagre das Rosas onde, neste caso, a Santa converte as rosas em dobrões de ouro para pagar aos pedreiros e serventes envolvidos na construção de uma casa dedicada ao Espírito Santo. Casa esta que a Rainha já havia visto em sonhos e cujos alicerces achou já riscados no chão, milagrosamente, quando chegaram junto ao terreno onde seria edificada a igreja (Costa, 2014; Folgado, 2010). No documento consta: “E assim se acabou a dita Casa à custa da dita Senhora Rainha, e foi logo feito aquele altar grande e posto nele um painel-retábulo do Santo Espírito, e a dita Casa bem provida pelo dito Senhor Rei e Senhora Rainha de vestimentas, cálices e ornamentos em abastança”.

Recomendada a mesma Casa pelos reis a “cavaleiros, escudeiros e outra boa gente”, logo estes “se ajustaram e ordenaram entre si uma confraria […] fazendo de tudo um compromisso”, onde se preceituavam “missas na dita Casa pelo seu dia”, procissão, “um honrado bodo […] ordenando que para a dita festa ser mais perfeitamente obrada, que à sexta-feira se corressem toiros, que se chamasse sexta-feira das carnes”, e que “fosse aquela carne toda cozida, para se pôr em um paiol, a par de outro paiol de pão”, e “ordenaram que quando aí não houvesse imperadores prometidos por sua devoção, que então elegessem outros da dita vila e termo, dos mais abastados” (citações do documento em Costa, 2014, p.3).

Segundo Costa (2014) o texto do «Primeiro Compromisso da Casa do Espírito Santo que fizeram os confrades», sem data, mas idêntico ao de Benavente, inscreve os deveres dos confrades “no que diz respeito à doença, à morte, à pobreza, ao bodo – ‘os confrades, presentes uma vez em o ano, por dia do Espírito Santo, deem de comer aos pobres’ −, bem como as penas e multas por injúrias ou uso de violência em relação aos seus pares” (p.4).

Os outros dois textos remetem para reinados posteriores ao de D. Dinis e da Rainha Santa Isabel, por isso voltaremos a eles mais adiante. O que salientamos agora é como, localmente, a existência do texto de 1321 vai contribuir para a difusão da teoria da origem do culto por iniciativa da Rainha Santa Isabel, quando tudo aponta para a sua existência anterior ao seu reinado, já no século XIII. Este texto, de conteúdo miraculoso, reforça o carisma e a devoção na Rainha e, perante outras teorias da origem do culto, a generalidade das pessoas, por motivos religiosos ou pela curiosidade dos relatos, prefere replicar esta história.

Como refere Folgado (2010), “em Alenquer não é caso único. A tradição local atribui-lhe também [à Rainha Santa Isabel] a fundação da Igreja de Santa Maria de Triana, mas o facto é que esta já era paróquia em 1239” (p. 40).

À narrativa que vincula a origem do culto à Rainha Santa Isabel e a Alenquer o antropólogo João Leal (2017) chama de “narrativa Isabelina”, e já no século XVII vários autores referem-se a ela, entre eles: D. Rodrigo da Cunha (1642), Frei Manuel da Esperança (1656), Frei Francisco Brandão (1672), D. Fernando Correia de Lacerda (1680) e Padre Manoel Fernandes (1690) (Costa, 2014; Leal 2017).

D. Rodrigo da Cunha na obra História Eclesiástica de Lisboa (1642) e D. Fernando Correia de Lacerda no volume hagiográfico (1680) referem-se ao milagre reportado no documento de 1321 − à edificação dos fundamentos da igreja no local em que a rainha tinha sonhado, em Alenquer. Por exemplo, o primeiro descreve: “(…) andando com pensamentos de fundar nela uma igreja sumptuosa ao Espírito Santo, achou pela manhã lançados os fundamentos por mãos de Anjos e a obra em altura que já se podia nela ver a mesma traça pela qual a santa Rainha a determinava edificar”, completa ainda em relação às festas: “ela [a Santa Isabel] e el-rei D. Dinis, seu marido, foram os autores da festa que se chama do Espírito Santo, cuja solenidade foi tão célebre por todo o reino, e mais nos maiores e mais populosos lugares dele, como ouvimos contar aos antigos” (Cunha, 1642, p.22).

Muito mais tarde, no final do século XIX, as referências que Adolfo Coelho (1880) e Teófilo de Braga (1885) fazem às obras de Lacerda e Esperança nos seus textos vão fortalecer a “narrativa Isabelina”, tornando-se esta a mais difundida explicação da origem do culto e das festas do Espírito Santo (Leal, 2017).

De Alenquer, as festas rapidamente foram difundidas pelas outras terras das quais a Rainha era “senhora”. Jaime Cortesão (1964) descreve o esplendor com que se realizavam em Leiria, Porto de Mós, Óbidos, Torres Novas e Sintra.

A grande aceitação popular do culto e das festas em Portugal e especificamente em Alenquer é testemunhada pelo “número significativo de igrejas, conventos, capelas e confrarias com essa invocação”. Daí o ditado popular, ainda hoje usado no concelho de Alenquer: “A cada canto seu Espírito Santo” (Melo, Guapo & Martins, 1991).

As festas serão depois celebradas de forma bastante significativa, não só em Portugal Continental, como nas ilhas, especialmente nos Açores. “Viajando” para o Brasil e América do Norte, em particular para os Estados Unidos e Canadá. Havendo ainda o seu registo pontual em Angola, Cabo Verde e Índia (Leal, 2017).

 



[1] Mais tarde, em 1540, D. Pedro de Noronha fundou, neste mesmo concelho, em Vila Verde de Francos, um convento Franciscano na encosta de Montejunto.
[2] Uma terceira narrativa da origem do culto do Espírito Santo referida por Leal (2017) é exatamente a narrativa “joaquimita” elaborada por Agostinho da Silva (1988), genro de Jaime Cortesão, onde as festas do Espírito Santo representam um pronúncio da chegada dessa Terceira Idade onde as crianças, “seres puros”, coroadas, exerceriam o seu poder, tal como Cristo teria advogado.
[3] Canonizada em 1742.
[4] Na altura das publicações, Presidente e Vereador da Câmara Municipal de Alenquer respetivamente.
[5] Documentos publicados por Luciano Ribeiro sob o título A Casa do Espírito Santo em Alenquer nos números 2 e 3 da revista Damianus A Goes, editada pelo Grupo Amigos de Alenquer, anos de 1941 e 1942.

 


                              Laje de 1567 da Igreja do Espírito Santo da Ota, com inscrição sobre doações ao culto (2022).

 

Do séc. XV ao séc. XIX – do auge à extinção

 

Percorrendo a evolução do culto e das festas em Alenquer desde o séc. XV até ao séc. XIX, começamos por analisar os dois documentos transcritos por Brás de Araújo de Valadares, já aqui referidos, e que relatam milagres relacionados com a Casa do Espírito Santo.

Primeiro abordamos a transcrição do milagre que, segundo a crença, se deu no séc. XV, no reinado de D. Duarte (1433−1438) e que atesta o imenso prestígio e a vasta dimensão das festas nessa época (Costa, 2014). Este texto começa por evocar a magnificência das festas sublinhando as habituais participações reais e as grandes dádivas alimentares no bodo (dez a doze bois se o rei estava presente, sete bois por norma). O milagre relata a forma como toda esta carne era cozida com água lançada “por uma só vez”, algo impossível de acontecer, a não ser por obra divina. O texto refere que D. Duarte para atestar esta proeza enviou o seu cozinheiro-mor Martim Gonçalves e mais dois ou três cozinheiros em quem este confiava para verem o tempero e o “cozer da dita carne do Espírito Santo” recomendando que não se distraíssem, nem dormissem durante todo o processo. Segundo o relato, eles assim o fizeram acabando por confirmar o milagre. Durante toda a cozedura não havia sido lançada “água nem vinagre mais que uma só vez”:

“Vindo El-Rei Dom Duarte em romaria a esta Santa Casa do Santo Espírito, para assistir à sua festa, por ser costume dos reis virem a ela, se lhe contou em como todos os touros que se matavam, que sendo costume matar-se sete, quando vinham os reis dez e doze, por razão da muita gente, se coziam todos com uma água e vinagre que por uma só vez se lhes lança”.

“El-Rei, como cristianíssimo, nem por duvidar do milagre, mas porque falando ele no dito milagre muitos duvidaram, e também Martim Gonçalves, seu cozinheiro-mor, que dizia que tanta carne se não podia cozer sem que lhe deitasse muitas vezes água, assim como ele fazia em sua cozinha, que uma panela, nela só, deitava duas e três vezes água, mandou ao dito Martim Gonçalves tomasse dois ou três cozinheiros em quem mais se fiasse, e fossem a ver o tempero das caldeiras e ao cozer da dita carne do Santo Espírito, e que avisasse que não dormisse ele nem os outros, e que visse como tudo se faria até a carne ser toda cozida. E ele e os outros assim o fizeram, e toda a noite nunca dormiram até toda a carne ser cozida, e então se foi a El-Rei e lhe contou tudo, e como lhe não lançaram água nem vinagre mais que uma só vez. E as caldeiras ficaram em aquele ponto em que a primeira vez as puseram, com tanto caldo, afirmando o dito Martim Gonçalves ao dito Senhor que era grande milagre”.

Descrições antigas falam de outros eventos que demonstravam a fama das festividades da época: danças e folias, toiradas, jogos de destreza, cavalhadas, entre outros. Sobre a cerimónia religiosa encontram-se nas Memórias Paroquiais descrições sobre a saída “de uma função” da Igreja do Espírito Santo até à Igreja do Convento de São Francisco composta pela bandeira da Confraria, músicos, crianças, damas, pessoas nobres, capelão e as insígnias da coroa e da pomba. É ainda descrito um outro festejo que se realizava no “sábado, véspera do dia do Espírito Santo”. Devido à riqueza dos pormenores transcreve-se de seguida a descrição dos elementos e rituais dessas cerimónias (transcrição completa do documento no anexo 2):[1]

“Por costume antiquíssimo e acórdãos da dita Confraria, se fazia na dita Casa, em todos os domin­gos desde o de Páscoa até o do Espírito Santo, uma função chamada Império, que saía da dita igreja, em que ia diante a bandeira da Confraria, acompa­nhada com trombetas, com duas pelas bailando aos ombros de homens, por serem meninas de pouca idade. Logo uma dança das antigas do reino, de­pois muitas pessoas nobres, a que se seguiam duas moças donzelas toucadas e bem vestidas em corpo, a que chamam damas, e, entre elas, um menino nobre, que leva nas mãos uma espada larga sem copos com cruz e punhos dourados e bainha de veludo, chamada estoque, e dizem que fora do dito Rei Dom Dinis, servindo assim o dito menino de pajem do imperador, que é um homem nobre, que vai logo detrás, e ultimamente um capelão, com um prato grande de prata dourado, e nele uma coroa imperial da mesma matéria, com uma pombinha, figura do Espírito Santo; e se encaminhava toda esta comitiva até à igreja do Convento de São Fran­cisco, onde bailavam as ditas damas, antigamente ao som da gaita e tamboril, e modernamente com um homem que juntamente tocava viola, e depois, pondo-se o dito imperador de joelhos nas escadas do altar-mor, era coroado com a dita coroa por um padre do dito convento, revestido de capa de asper­ges, e voltava toda a dita comitiva pela praça, e ou­tras ruas da vila, até à dita Igreja do Espírito Santo, onde um capelão revestido, depois de dar a beijar ao imperador uma cruz com o Santo Lenho, lha tira da cabeça e, nas suas mãos, a beijam todos os cir­cunstantes. E depois saíam todos para a varanda de baixo, onde o imperador se sentava debaixo de um rico dossel de brocado, e as ditas damas e menino do estoque aos seus pés, e logo quatro pessoas, das mais autorizadas que ali se achavam, lhe iam ofere­cer frutos e vinho, com as mesmas reverências que se fazem a majestade, e repetia então a mesma dan­ça o homem da viola, com as ditas damas, e de novo tornavam os mesmos homens nobres, ou fidalgos, a ir oferecer doce e águas ao dito imperador, com as mesmas cerimónias, e nelas dava fim esta fun­ção (…)”

“(…) No sábado, véspera do dia do Espírito Santo, de tarde, há também outra função, que por tradição já escrita em livros antigos se diz que principiara por um voto, que em tempo do Rei Dom Afonso II [reinou entre 1211 e 1223] fizera esta vila à Senhora da Assumpção, que se venera na Igreja Paroquial de Triana da mesma vila, se esta, por interceção da mesma Senhora, se livrasse da pes­te que então houve neste reino. Principalmente se prende um rolo de cera bento, a que chamam can­deia, em o altar-mor da Igreja de São Francisco e daí se vai continuando a estender, preso nas paredes, pelas ruas da dita vila, até o altar-mor da dita Igreja da Senhora de Triana. Logo se ajuntam na dita Igreja de São Francisco todo o clero secular e regular, no­breza, justiças e senado da Câmara desta vila, com as suas insígnias, e também o dito imperador, com dois homens dos principais delas para fazerem a fi­gura de reis, e, ajoelhando todos no altar-mor, são todos três coroados por um padre revestido com capa de asperges, o imperador com a dita coroa im­perial e, aos seus lados, os dois reis com coroas de prata abertas, todas com a pombinha figura do Es­pírito Santo, e depois sai todo este ajuntamento em procissão, precedendo a bandeira da dita Confraria acompanhada de pelas e trombetas, e no fim vai o dito imperador, entre os dois reis, levando diante as ditas damas e pajem, com o estoque. E discorrendo pelas ruas da vila, rodeadas do dito rolo ou candeia, entram na sobredita Igreja de Triana onde fazem oração (…)”.

Considerando a pesquisa realizada pelo Arquivo Histórico do Município de Alenquer, vários documentos atestam o contínuo apoio da realeza à Casa do Espírito Santo de Alenquer durante o séc. XV (anexo 4):

“O rei D. Duarte, por volta de 1435, deu licença aos mordomos para trazerem das matas da Ota a lenha e qualquer madeira necessária para o bodo. Sua mulher, D. Leonor de Aragão, pela mesma altura, encontrando-se em Alenquer, outorgou à Albergaria uma carta de privilégio. Afonso V confirmou, em 1450, a licença dada por D. Duarte relativa à lenha para o bodo e, em 1462, ratificou a carta de sua bisavó, D. Beatriz, tomando «em sua ajuda e defesa a albergaria dessa Confraria com seus homens, herdades e gados»” (Folgado, 2010, p.41).

Já o texto denominado «Milagre que aconteceu na Casa do Espírito Santo», remete para um suposto milagre que aconteceu mais tarde, no séc. XVI. Relata um juramento assinado por testemunhas, provedor, mordomo e escrivão da mesma Casa, a 5 de maio de 1543. Este juramento refere-se ao dia em que, depois da limpeza das caldeiras da cozedura dos touros do bodo, deu-se um milagre − aqueles que executaram essa tarefa viram línguas de fogo a sair por debaixo das caldeiras, sem que nada o justificasse, pelo contrário, tudo estava húmido e nada poderia alimentar aquele fogo a não ser a graça do Espírito Santo:

“Andando como é costume um Pedro Garcia, hospitaleiro da Casa, e Isabel Martins, moradora na Silveira, termo desta vila de Alenquer, limpando a cova debaixo das caldeiras em que se cozem os touros para o bodo, depois de a terem limpa, e querendo ir buscar fogo para acenderem a fornalha, viram, debaixo das caldeiras, grande claridade, e, olhando o que era, viram sair do chão línguas de fogo, sem dentro, na fornalha, haver coisa em que pudesse estar, nem na casa havia fogo, nem em parte de onde ali pudesse vir, antes a parte de onde apareceu estava muito húmida, pelo que averiguaram ser manifesto milagre”.

De referir que estes episódios milagrosos amplamente divulgados, junto com a proteção dos monarcas, as doações e a importância social dos confrades justificavam o “prestígio e riqueza de que [a Casa] então gozava” (Folgado, 2010, p. 41). Os registos históricos apontam, assim, para festejos de grande esplendor durante quatro séculos – entre o séc. XIV e o séc. XVII. Em relação aos confrades, uma lista realizada pelo Arquivo Histórico Municipal (anexo 3) atesta a notoriedade das personalidades que estavam à frente da Confraria do Espírito Santo de Alenquer. Entre eles, Afonso de Albuquerque e Damião de Góis:

“Um dos confrades, inscrito no ano de 1500, foi Afonso de Albuquerque, mais tarde célebre como governador da Índia, que era de Vila Verde dos Francos, antiga sede de um pequeno município. Outro foi Damião de Góis, o mais notável alenquerense de todos os tempos, que era irmão de Francisco de Macedo, provedor da Casa (…). Damião de Góis terá com a Casa do Espírito Santo de Alenquer uma relação estreita. Confrade desde 1521, quando tinha 19 anos, ali viria a inscrever, em 1549, a mulher, D. Joana de Argem, e os filhos, Manuel, Ambrósio, Rui e Catarina. Preso pela Inquisição em 1571−72, virá a declarar que, quando estava em Alenquer, ia ouvir missa à Ermida do Espírito Santo, a cuja Casa fez várias ofertas” (Folgado, 2010, p. 41).

Folgado (2010) refere mesmo que terá sido o prestígio dos confrades e a riqueza da Casa de Alenquer que a pouparam “da primeira reforma da assistência pública em Portugal, que teve como consequências, entre outras, a centralização hospitalar e o incentivo à fundação de confrarias de Misericórdia”. Isto no reinado de D. Manuel I, entre os séculos XV para XVI, altura em que muitas das Casas do Espírito Santo foram transformadas em Misericórdias. Contudo, tendo escapado à transformação, a Casa de Alenquer não deixou de ser atingida pela reforma com o Rei D. Manuel a ordenar “que a Casa fosse dirigida por um provedor, escrivão e mordomos. O provedor então escolhido foi Francisco de Macedo, em cuja descendência se manterá a provedoria até à extinção da Confraria” (p.41).

É no séc. XVIII que os registos denunciam o declínio do culto, da casa, da igreja e das festas do Espírito Santo em Alenquer. Com grandes perdas de rendimentos, tanto o funcionamento da Casa como a conservação do património da Confraria ficam em risco, nomeadamente o património edificado. Em 1705, a Rainha D. Catarina envia para a Câmara de Alenquer uma carta que enuncia a decadência do edifício do hospital, sendo “necessário realojar os enfermos pobres, pondo-se então, como hipóteses, transferi-los para o da Misericórdia ou criar um hospital novo. Por 1730 é a igreja que ameaça ruína, sendo então reedificada” (Folgado 2021, p.41). Guilherme Henriques, historiador local, refere que em 1750 as festas já tinham perdido a sua glória primitiva [(1873) (1902) 2002]. Entre outubro e novembro de 1810, a invasão francesa precipita o fim da Casa. “A igreja sofreu bastante dano e as casas contíguas foram incendiadas e quase reduzidas a ruínas, perdendo-se o arquivo” (Costa 2014, p.1). Por fim, a Casa é oficialmente extinta em 1834, sendo os seus bens e rendimentos anexados à Santa Casa da Misericórdia de Alenquer (Folgado 2010, Costa 2014).



[1]Descrição realizada posteriormente, já no século XVIII, quando as festas já teriam perdido muito do seu esplendor. Texto de Pedro da Silveira, Prior da Freguesia de São Pedro da Vila de Alenquer, a 15 de abril de 1758. (A.N.T.T., Memórias Paroquiais, vol. 2, n. º46-a, pp. 367-377).


 

                                      Preparativos para a Procissão do Espírito Santo de Pereiro de Palhacana (2022).

 

A atualidade − a revitalização das festas

 

Durante todo o séc. XX, e após mais de 150 anos de interrupção, existe ainda o registo da celebração das festas do Espírito Santo na vila de Alenquer a 19 de maio de 1945. Segundo Francisco Câncio (1956), por iniciativa da Junta da Província da Estremadura organizou-se naquela data uma “recriação” dos festejos à imagem do que teriam sido no séc. XVII (pp. 221–222), uma espécie de “cortejo”, ou “recriação histórica” das celebrações.

Isto não quer dizer que o culto não se tenha realizado de forma mais discreta em várias localidades do concelho, como veremos mais adiante que aconteceu, por exemplo, na Ota ou em várias aldeias da freguesia de Aldeia Galega da Merceana (onde existem testemunhos das festas nos anos 30 e até mais recentemente, após o 25 de abril de 1974, em Casais Brancos). Mesmo na vila de Alenquer a celebração do Pentecostes, dia por excelência do Espírito Santo, foi sempre uma data muito celebrada.

Para além do esplendor das FIDES na vila de Alenquer, são evidentes vestígios da presença de confrarias e casas do Espírito Santo em diversas terras do concelho, nomeadamente os antigos locais de culto como, por exemplo: as capelas do Espírito Santo de Aldeia Gavinha, Aldeia Galega, Arneiro, Atalaia, Paúla, Pereiro de Palhacana e a Igreja do Divino Espírito Santo da Ota.[1]

É, contudo, no início do séc. XXI que se inaugura, no concelho, um processo de revitalização das festas do Espírito Santo de Alenquer. Conforme refere o historiador Filipe Rogeiro (2022),[2] a recuperação das celebrações era um assunto recorrente entre representantes de várias entidades locais e entre diversos curiosos da história local – membros de associações, de paróquias, políticos, Câmara Municipal, Misericórdia, entre outros. Mas terá sido em 2000, quando o Cardeal D. Manuel Clemente (então Bispo Auxiliar de Lisboa) assumiu a responsabilidade pastoral pela região onde Alenquer se insere, que essa vontade foi veemente defendida, tendo sido decisivo quer o incentivo do Cardeal junto do pároco de Alenquer − o Padre José Eduardo Martins −, quer o entusiasmo do próprio pároco (que na altura era também o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Alenquer). Importante foi ainda o interesse e a disponibilidade do então vereador da Câmara Municipal de Alenquer, Luís Rema, (2022)[3] para consubstanciar esse processo.

Sobre a revitalização das festas o Diácono Duarte João d’Oliveira (2022), atual membro da Comissão das FIDES de Alenquer (em representação da Paróquia de Alenquer), refere:

“O Padre José Eduardo Martins, já falecido, (…) era um interessado [pela história local], aliás tem várias publicações sobre a história do concelho de Alenquer, e portanto foi muito fácil o D. Manuel Clemente, deixe passar a expressão, “picar” o pároco para restaurar as festas. Porque era um bocadinho esta a convicção: (…) são festas que alma do povo bebeu e apreciou e, portanto nesse sentido, (…) bastaria soprar as brasas (…) dessa festa para o lume surgir de novo com todo o seu vigor”.

Havia, porém, uma questão importante a resolver antes de se poder “pensar” na revitalização das festas. Segundo Luís Rema (2022), a Igreja do Divino Espírito Santo, propriedade da Misericórdia, “estava encerrada para obras há alguns anos. As obras tinham alguma complexidade, não havia dinheiro (…), talvez [esse] fosse o problema maior para que as obras não se fizessem de uma forma célere. E de facto essas obras decorreram durante alguns anos [da Igreja e da albergaria]”. No entanto, Luís Rema e o Padre José Eduardo Martins acordaram que reiniciariam o projeto de revitalização das festas assim que “a Igreja estivesse plena do seu virtuosismo, (…) pronta para ser inaugurada e para ser usada ao culto”. “E assim aconteceu”, conclui Rema, “esta conversa deve ter acontecido em 2004−2005 e depois, em 2007, proporcionou-se o regresso das festas”.

O Diácono Duarte João (2022) acrescenta que o facto de o Padre José Eduardo Martins ser simultaneamente o prior e o provedor da Misericórdia, entidade sucedânea da Casa do Espírito Santo, proprietária dos imóveis que careciam de obras, facilitou a conjugação de tudo, a concretização do restauro e o reinício das festas.

Entretanto, neste meio tempo, entre a finalização das obras e o reinício dos festejos, definiu-se a composição da então nomeada Comissão das Festas do Império do Divino Espírito Santo de Alenquer − as Paróquias, a Santa Casa da Misericórdia e a Câmara Municipal de Alenquer.

Assumindo a Comissão que esta iniciativa partiu de parcerias institucionais em 2007, hoje, 15 anos depois, o envolvimento de dezenas de praticantes/organizadores nas diversas localidades do concelho e de milhares de participantes nos diversos eventos das festas, leva-os a acreditar na convicção descrita anteriormente pelo Diácono: “bastaria soprar as brasas (…) para o lume surgir de novo com todo o seu vigor”.

É ainda o Diácono que descreve detalhadamente os princípios que estiveram na base da revitalização das celebrações, assumindo de modo inequívoco a influência da “narrativa Isabelina” e a devoção à Rainha Santa. Explica que a Comissão podia ter seguido duas formas de concretizar os festejos: ou “fazíamos uma espécie de arqueologia – íamos à ‘poeira’ de 700 anos atrás buscar as festas no modelo em que a Rainha Santa as concretizou e reproduzíamos a coisa tal e qual”; ou tentavam imaginar o que a Rainha Santa Isabel teria em mente quando instaurou as festas mantendo “o objetivo que ela queria atingir”, esclarece. Optaram pela segunda hipótese. Pensando na Rainha como uma “alma caridosa”, “angustiada” com “o sofrimento dos mais fragilizados e dos pobres, uma pessoa plena de caridade, cheia de vontade de ajudar, uma construtora da paz”, decidiram que o mais importante era replicar e promover os valores da Rainha e o espírito das festas, dinamizando um modelo que permitisse, nos dias de hoje, “difundir a paz, a fraternidade e a solidariedade”. Assim, mantendo elementos básicos da tradição − as celebrações religiosas (missas e procissões) e o bodo − adaptaram os festejos ao séc. XXI e àquilo que as comunidades consideraram razoável e pertinente realizar nos dias de hoje. Modelo em que “o detalhe da concretização tem-se vindo a afinar ano após ano e hoje, 15 anos depois, não é exatamente a mesma coisa que fizemos [no início], o espírito é que é o mesmo”, conclui o Diácono.

Pormenorizando o modelo adotado Duarte João explica que “as festas assentam num tripé”. Em primeiro lugar, na perspetiva religiosa, são festas Pascais. No seu entender, a maioria das pessoas associa a Quaresma a um período (quarenta dias) onde vão acontecendo vários eventos: as procissões dos passos, as procissões do enterro, as vias-sacras, as práticas tradicionais do jejum e uma atitude de caridade mais intensa. Já quando se fala em Páscoa o que vem à mente das pessoas é somente o domingo de Páscoa, mas segundo o Diácono isso não deveria acontecer. A Páscoa também é um período de festa que deve ser marcado por celebrações, esse foi o propósito da revitalização dos festejos, o preenchimento deste período Pascal:

“Se a Quaresma foram quarenta dias [de] caminhar penitencial, a Páscoa são cinquenta dias de festa. (…) E isto às vezes escapa[-nos] (…). O tempo Pascal vai do domingo de Páscoa durante sete semanas, oito domingos, até ao domingo do Pentecostes, que é o domingo do Espírito Santo por excelência. E portanto, (…) uma das coisas que se procurou (…) com as festas do Espírito Santo foi preencher um tempo que estava habitualmente vazio. A Quaresma que era a preparação estava muito cheia, depois a Páscoa que era a festa [estava vazia], havia aqui um contrassenso. (…) A ideia é preencher este tempo com festa, com vida em abundância, todo este tom que às vezes falta ao período Pascal. Por isso as festas arrancam no domingo de Páscoa, pautam todos os domingos subsequentes, até chegar como a um cume, a um momento culminante no domingo do Pentecostes, cinquenta dias depois (…)” (Diácono Duarte João, 2022).

O segundo pilar das festas é a ação social e a solidariedade enquanto ação do Espírito Santo. “Como já disse antes, essa era a grande preocupação do coração da Rainha Santa, e continua a ser a nossa preocupação”, continua o Diácono explicando que, sobre este aspeto, diferentes iniciativas foram promovidas ao longo dos últimos 15 anos. No início destacaram práticas de “bem-fazer” das coletividades, associativismo, escolas, outras instituições e indivíduos do concelho (enquanto obras inspiradas na ação e nos “dons” do Espírito Santo). “Ultimamente, e (…) este ano vai ser de novo assim, esta solidariedade vai concretizar-se sobretudo numa partilha, com os mais pobres e os mais carenciados (…). As comunidades são convidadas a trazer daquilo que é seu, dos seus bens, alimentares e outros, vestuário, etc., e depois a Ação Social da Câmara Municipal encarrega-se de fazer chegar [esses bens] aos mais carenciados”.

Por fim, como terceiro pilar, o Diácono refere a concretização efetiva das festas: as missas, as procissões e o bodo. “Elementos que não podem faltar. E mesmo hoje, quando estes cinquenta dias do tempo pascal, e os domingos que o integram, estão preenchidos com as festas que se realizam nas várias localidades do concelho, estes elementos estão lá”.

Ainda sobre os primeiros anos da revitalização dos festejos o historiador Filipe Rogeiro (2022) acrescenta que, ao contactarem com confrarias e pessoas ligadas às capelas do Espírito Santo das diversas localidades, encontraram um vasto património ligado ao culto e às festas no concelho de Alenquer – coroas, imagens da Rainha Santa, bandeiras, etc. “Até recuperámos em casas particulares, uma coroa que sendo do povo estava ali guardada… talvez há 100 anos [referindo-se à coroa do Paiol].” Esta abordagem às comunidades locais realizou-se inicialmente com o objetivo de sensibilizar e suscitar interesse pela revitalização das festas. Assim, nos primeiros anos, em cada um dos domingos, a Comissão das FIDES de Alenquer organizou palestras explicando em cada localidade a génese do culto e dos festejos e citando as referências que sabiam haver daquela terra nesse processo. As comunidades foram ainda convidadas a participar nos festejos da vila de Alenquer “e portanto, tomaram-lhe o gosto”, refere o Diácono Duarte João acrescentando que com essa iniciativa as pessoas ficaram sensibilizadas e motivadas para participar na organização das celebrações nas suas próprias terras e, mais recentemente, o Carregado, que não tinha registo desta tradição, decidiu juntar-se aos festejos:

“Foi muito curioso, porque depois começaram a ir às gavetas das sacristias, aos baús, às vezes até de famílias particulares, onde começaram a descobrir: ‘Olha está aqui a nossa coroa! Olha está aqui a nossa bandeira! Olha está aqui o nosso galhardete!’. E portanto esse espólio foi sendo recuperado e foi-se gerando um movimento natural. Isso é que é importante nestas coisas. É não irem de ‘cima para baixo’, mas brotarem espontaneamente da alma do povo (…).

E hoje todas estas terras, de facto, já seguem um modelo sobre o ponto de vista da procissão, bodo, missa, etc., semelhante ao que terá sido aqui em Alenquer, e ao que terá sido no passado. E, mais ainda, uma outra terra que não tendo essa tradição no passado bebeu da ideia e juntou-se também, e agora faz as festas como realidade recente, atual, o Carregado.

Sobre o envolvimento da Câmara Municipal de Alenquer na promoção e salvaguarda das Festas, Rui Costa (2022),[4] Vereador da Cultura, realça o papel do Congresso Internacional do Espírito Santo organizado em 2016. Refere que “depois de dois anos de intenso trabalho a Câmara Municipal de Alenquer, como resultado de um estreito trabalho de parceria com a Confraria da Rainha Santa Isabel de Coimbra e várias instituições científicas nacionais e internacionais, organizou durante sete dias em Coimbra, Lisboa e Alenquer o Congresso Internacional do Espírito Santo, um momento de extrema importância para o concelho e que se revelou um espaço de encontro fraterno e de partilha”. De acordo com o autarca, este evento permitiu promover a pesquisa e a investigação em torno do culto e das Festas do Espírito Santo e “deu a conhecer ao mundo ‘Alenquer’ enquanto berço das referidas festividades e, do ponto de vista da cultura popular, como se vivem e se recriam as tradições do Espírito Santo, nas comunidades nacionais e internacionais da diáspora portuguesa”.

Para Rui Costa o Congresso marcou um ponto de viragem nas festividades locais retomadas nove anos antes, em 2007, “fruto da visibilidade que as nossas festas tiveram junto de congressistas de todo o mundo que levaram esta mensagem consigo para todo o lado, e com esta afirmação territorial do concelho até aos dias de hoje, as Festas têm-se reinventado e reaproximado de inúmeras outras localidades portuguesas e estrangeiras que as mantiveram sempre bem vivas ao longo dos tempos”. Foi a partir desta iniciativa que se estabeleceram importantes relações e contactos com outras comunidades festivas, como por exemplo: uma geminação com o Município de Angra do Heroísmo, um protocolo de cooperação cultural com o Município de Ponta Delgada e diversos contatos com outros concelhos do país, como Fundão, Santa Cruz das Flores, Santa Cruz da Graciosa, Horta, Tomar, Torres Novas, Vagos e com outras comunidades dos Estados Unidos, Canadá, Brasil e Cabo Verde. “Destes contatos têm os programas culturais e recreativos das festas do Espírito Santo de Alenquer beneficiado de inúmeras manifestações de cultura popular e erudita, vindas dessas outras periferias do globo”, concluí Rui Costa.

O autarca refere que à parte “dos pilares das festividades do Espírito Santo de Alenquer, assentes na sua componente religiosa através das missas, procissões, bodos e espírito solidário, decidiu a Comissão Organizadora das Festas atribuir ao Município de Alenquer, um papel de ‘quase’ mordomo das festas”, financiando a sua organização e desenvolvendo em paralelo um extenso programa cultural e recreativo. Para Rui Costa este programa “tem como missão promover a reunião das pessoas e facilitar-lhes a congregação de vontades em torno de um ideal comum, o do encontro e da concórdia, o da fraternidade e da partilha, o da harmonia, justiça e paz, valores que nos permitem todos os dias sonhar com a esperança na possibilidade da construção de um futuro mais justo e mais fraterno na nossa casa comum que é o planeta terra”.

Rui Costa fala da “premissa de reinvenção e modernização das festas numa vertente mais cultural e mais atrativa para a população mais jovem e/ou mais afastada das festividades religiosas, como estas são entendidas, ainda que em muito ultrapassem esse desígnio na sua vertente mais humanista e espiritualista” e destaca o projeto da Câmara Municipal desenvolvido pelos seus colaboradores Cláudia Luís e Pedro Fortuna que, devido a uma “dedicação e compromisso inigualáveis”, ajudaram a devolver as festas a todos os munícipes e a promover o seu envolvimento na organização das mesmas. Refere, por exemplo, que este projeto “conseguiu mobilizar centenas de alenquerenses, das mais pequenas aldeias à zona mais urbana, para iniciativas de embelezamento e enquadramento cenográfico da vila, com centenas de milhar de flores nos tetos do Caminho da Rainha Santa, com tapetes de flores naturais nas ruas da vila, com instalações artísticas diversas no percurso entre a Igreja do Espírito Santo e o Convento de São Francisco”.

Ainda sobre a transmissão e salvaguarda das festas do Espírito Santo de Alenquer, Rui Costa evidencia o trabalho realizado com e por diversos grupos da população, referindo que hoje as FIDES de Alenquer:

Também são as festas das crianças nas escolas que pintam e decoram as pombas e coroas; também são as festas dos lares e centros de dia dos idosos que fazem flores; também são as festas dos seniores que disponibilizam o seu tempo livre para fazer rendas e enfeitar o espaço público; são as festas dos voluntários que montam quadros, que penduram flores, que cozinham bodos, que servem sopas, como já não se via há muito tempo, há muitos anos. São as festas de todos… num clima de paridade, de indistinção de etnias, nações e estatutos sociais, representando mais uma tentativa de concretização da utopia da fraternidade universal, atualizando a esperança e afrontando a crise global que vivemos numa busca incessante de encontrar caminhos de superação e de progresso em favor do melhoramento da vida humana.

(…) Hoje em 2022, as Festas do Espírito Santo de Alenquer são uma oportunidade única para cada um de nós reatar os fios perdidos de uma herança de séculos que tem um encanto e grandeza incomparáveis e um alto valor espiritual. São a oportunidade única para comungar da partilha do pão, da carne e do vinho, num claro anúncio de um reino de igualdade, de amor, de liberdade, de generosidade e de abundância justamente repartida entre todos, à simples distância de um gesto ou de uma ação.

 

[1]Em Casais Brancos, Vale Benfeito e Paiol com igrejas recentemente contruídas.
[2]Em entrevista realizada no âmbito desta pesquisa. Também membro da Comissão das FIDES de Alenquer enquanto representante da Câmara Municipal de Alenquer.
[3] Em entrevista realizada no âmbito desta pesquisa. Atual Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Alenquer.

[4] Em entrevista realizada no âmbito desta pesquisa.