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Descrição

A Uvada é um doce preparado com o mosto de uva fervido, o chamado arrobe, ao qual se junta fruta cortada em pedaços, mais frequentemente maçãs.[1] Confecionada sem açúcar, junta usualmente 3 ingredientes - o sumo da uva madura (se possível de maior grau), as maçãs de espécie variada e a canela (em pau durante a cozedura e/ou em pó no final, para dar sabor e decorar).

A confeção da uvada, produzida em grandes quantidades no Outono, pelas vindimas, pode demorar vários dias. Começa com a apanha da uva seguindo-se o esmagamento e extração do mosto, a produção do arrobe (durante a qual se vai retirando a espuma de resíduos com uma escumadeira), a junção das frutas e, num processo lento e acompanhado, a cozedura até atingir a cor castanha escura ou negra e o “ponto estrada”. Tradicionalmente, verifica-se o “ponto estrada” com uma colher, traçando uma linha numa amostra do doce retirada para um prato. Se essa “estrada” se mantiver, o doce está pronto.

A uvada é um doce que se conserva de um ano para o outro e é, usualmente, consumida no pão ou com frutos secos. Na Região Oeste, o Natal é uma das épocas do ano em que muitas famílias colocam a uvada nas suas mesas.

 

Vários testemunhos referem que, há algumas décadas, o mosto era feito de uvas apanhadas em vindimas próprias ou dos “rabiscos” (os cachos de uva que depois das vindimas ficavam nas cepas e podiam ser apanhados por quem quisesse).  Hoje, usa-se mosto das próprias vinhas ou compra-se mosto a outros produtores. O objetivo é utilizar o mosto fresco, não fermentado. O tipo de casta varia conforme a disponibilidade e o gosto de cada um, sendo frequentes as castas Fernão Pires e Santarém.

Algumas memórias registadas referem que, na zona de Torres Vedras, o pero “focinho de coelho”, o pero “ferro” e a maçã “azeda” eram as espécies mais utilizadas para juntar ao concentrado de mosto e fazer a uvada. Hoje, porque não se encontram ou identificam facilmente estes frutos, utilizam-se as maçãs disponíveis na altura das vindimas, por exemplo, Bravo de Esmolfe, Fugi, Reineta, Granny Smith, Royal Gala e Golden (só ou misturadas).

A atual prática mostra que a percentagem da redução do mosto em arrobe é bastante variável, dependendo do gosto de quem cozinha. Há quem reduza o mosto para 2/3, outros para metade, 1/3 ou 1/4, ganhando uma consistência tipo xarope.

Em Portugal, a prática tradicional do fabrico do arrobe regista-se em todo o país (especialmente nas regiões vitivinícolas) tendo sido muitas vezes utilizado como substituto do açúcar a juntar a vários pratos, por exemplo às papas de milho ou às papas de abóbora. Designa, ainda, uma receita usada ao longo dos tempos (até aos dias de hoje) como forma de conservar a fruta, forma de temperar diversos pratos, para adoçar o vinho ou até para fins terapêuticos.

Já a uvada está particularmente documentada[2] e associada aos concelhos da Região Oeste, em particular a Torres Vedras, Alenquer, Arruda dos Vinhos, Cadaval, Bombarral e Sobral de Monte Agraço, mas também à Lourinhã, Alcobaça, Caldas da Rainha, Nazaré, Óbidos e Peniche. Sendo previsível a sua confeção noutras regiões vitivinícolas do país, não se encontram registos escritos ou orais tão regulares como acontece em relação ao Oeste de Portugal.

 

© Memória Imaterial

 

[1] Não considerando os fundamentos botânicos desta distinção, na Região Oeste, em Lisboa e noutras regiões de Portugal distingue-se a “maçã” e o “pero” no seu formato, cor e paladar. Em relação à qualidade de fruta utilizada na uvada, os produtores referiram com frequência o “pero”. Em termos botânicos existe a espécie “maçã” com inúmeras variedades. No Norte a todas essas variedades dá-se o nome de “maçã”, noutras regiões, a algumas variedades, dá-se o nome de “pero”.

[2] http://memoriamedia.net/index.php/5uvada

 

 

© Memória Imaterial

Origem e história

As descrições e registos remotos de reduções do mosto através da fervura, semelhantes ao arrobe, remetem para receitas da antiguidade clássica (Roma e Grécia) e da época Medieval. Columela, engenheiro agrónomo do século I a.C., estudioso da agricultura do Império Romano descreve a fabricação de defrutum:[1] o mosto de uva reduzido em 1/4 ou 1/3 (neste último caso também conhecido por caroenum). Um melaço espesso, concentrado e escuro produzido através de cozedura lenta e longa. Usado na confeção de pratos e condimentos doces, salgados e agridoces (Moncorgé & Graziani, s.d.).

Plínio, o Velho, naturalista romano, define, um século depois, a sapa como uma redução para a terceira parte da quantidade inicial. Um mosto de uva preta reduzido a 1/3, sem álcool, por fervura lenta e prolongada. A receita da sapa é parecida com a receita do mosto cotto, a diferença está no facto da redução do mosto cotto ser a 2/3. Ambas as reduções ainda são confecionadas em diferentes regiões de Itália - Emília-Romanha (Norte), Abruzos, Marcas (centro), região da Calábria e Apúlia (meridional, sul) e nas ilhas da Sardenha e Sicília (Moncorgé & Graziani, s.d.). Na Sardenha a sapa serve ainda como base para a produção de vinagre balsâmico.

Na Península Ibérica, os termos al rub ou rub da gastronomia do al-Andaluz designam o costume gastronómico praticado durante o período da dominação muçulmana na Idade Média (711–1492). No livro La Cuisine Andalouse, Un Art De Vivre XI° - XIII° Siècle, Lucie Bolens (1990) refere quatro receitas de rub.[2] As receitas medievais consideram a redução de 2/3 do mosto inicial e indicam que o rub já era utilizado para misturar com diferentes frutas (neste sentido, próximo da receita da uvada).

A expressão atual da confeção da uvada resulta, assim, da influência preponderante das civilizações antigas árabes, romanas e gregas e da manutenção dessa tradição pelos séculos, transmitida de geração em geração.

Em Portugal, António Maduro refere a prática do arrobe na fabricação do vinho pelos Frades Bernardos de Alcobaça, no século XII, conferindo-lhe mais graduação - “concentrado de mosto que se adicionava durante a fermentação vinária numa proporção de meio almude para um tonel de duas pipas” (2012: 42). Dentro do espaço dos mosteiros existiam adegas nas enfermarias onde, a partir do arrobe, se fabricavam xaropes para fins medicinais (Maduro, 2017).

No registo de Hipólito da Costa Cabaço (1939) refere-se que para fazer a uvada pode juntar-se ao “arrobe” os “pêros, pêras, abobora menina ou outros frutos, vai ao fôgo até ficar uma espécie de marmelada, junta-se-lhe cravos de cabecinha e canela em pau”.[3]

Vários relatos referem ainda que a uvada era confecionada em dois contextos diferentes: no final das vindimas na casa do patrão, quando algumas trabalhadoras deixavam o campo e eram destacadas para a cozinha para fazer a uvada; durante a vindima na casa das famílias com menos possibilidades, depois da “jorna”, durante a noite, usualmente na rua ou no quintal onde era colocado o tacho de arame sobre uma trempe e o lume de lenha.

 

[1] Defervere, em latim, significa “resfriar, depois de ferver”.

[2] De referir que Lucie Bolens fala do rub como um produto alcoólico, neste caso a redução é menos concentrada (a 2/3) e segundo três cozimentos sucessivos com intervalos noturnos para provocar a fermentação.

[3] Registo realizado em 1939 em resposta a um pedido da Câmara Municipal de Alenquer – Documento do Arquivo Municipal de Alenquer.

 

© Memória Imaterial

A diversidade cultural e a Uvada no Mundo

Considerando a ligação óbvia da confeção do arrobe e da uvada ao cultivo da uva, é de esperar a existência de práticas equivalentes, mais ou menos preservadas, mais ou menos vivas, noutros pontos do mundo, nomeadamente entre países que partilham as mesmas raízes históricas.

Assim, fora das fronteiras nacionais, é possível encontrar receitas equivalentes ao arrobe em Espanha (arrope), França (raisiné), Itália (sapa e mosto cotto), Suíça (vin cuit), Irão (shire angoor), Turquia (pekmez), Chipre (épsima) ou América latina (por exemplo, o arrope no Chile, na Argentina ou na Bolívia).

Já em relação à uvada é mais difícil encontrar receitas iguais às confecionadas na Região Oeste de Portugal. Contudo, para além de distintas, é de referir receitas idênticas que são cozinhadas em três países específicos –  em Espanha (arrope com adição de frutas), na Suíça (coignarde) e em França (raisiné com adição de frutas). Receitas equivalentes à uvada se tivermos em conta:

a) o conceito abrangente da redução de sumo de frutas (especialmente de uva), sem álcool e sem adição de açúcar, mas com adição de frutas;
b) as características do processo de cozedura (lenta e longa), modos de preparar e utensílios;
c) o produto final (cor mais ou menos escura, textura espessa ou viscosa) e uma grande concentração de açúcar natural;
d) as diferentes aplicações do produto.

Em particular sobre o arrobe, o mosto ou sumo de uva reduzido assumiu diferentes nomes conforme os países. Foi sofrendo alterações nas receitas e compreendendo variantes que demonstram a riqueza e diversidade cultural desta prática: pode ser feito com sumo de uva ou de outros frutos ou com ambos; pode ser alcoólico ou não; [1] mais espesso ou mais líquido; mais escuro ou mais claro.[2]  

Especificando sobre as receitas equivalentes à uvada é de referir que, em Espanha, ao arrope reduzido até 1/4 ou 1/5 do mosto de uva inicial adicionam-se pedaços de fruta - abóbora, melão, melancia, pêssego, figo, figos da Índia e marmelo. Por exemplo, na Andaluzia junta-se a abóbora ao mosto da uva e aromatiza-se com camomila. A algumas receitas de arrope adiciona-se cal (depois filtrada) para limpar e neutralizar a acidez do mosto. O arrope é produzido na Andaluzia, Castela-Mancha, Valência, Múrcia, Estremadura e Catalunha – mas também se encontram referências da sua produção no Chile, Peru, Bolívia e Argentina. Contudo, nestes últimos países o arrope nem sempre é feito de mosto de uva. Por exemplo, o arrope do fruto chañar (em Atacama – Chile) ou o arrope de tuna (figo da Índia) (na Província de Córdova - Argentina).

Na Suíça o coignarde corresponde à junção de pera, marmelo ou abóbora ao chamado vin cuit, a redução do sumo de uvas ou, até mais frequentemente, a redução do sumo de peras ou maçãs, aromatizado com canela e anis estrelado, sem adição de açúcar. O vin cuit é produzido com ligeiras diferenças de receita e diferentes denominações por região: vin cuit (Suíça francesa, no cantão de Friburgo), raisinée, raisiné, résiné (na Suíça, no cantão Vaud, em la Côte) ou cougnarde, cugnarde, biresaasa (no Friburgo alemão).[3] Actualmente o vin cuit é bastante apreciado pelos consumidores (na doçaria, em sobremesas, bolos, tartes e acompanha gelados e crepes) é cada vez mais utilizado pelos chefes de cozinha (Pugin, 2004).

Em França o raisiné é o sumo de uva, cozido e reduzido, sem adição de açúcar, à qual se junta, por vezes, peras, marmelos, mas também outros frutos doces, como o melão, figos ou ameixas. É uma especialidade feita a partir do sumo da uva tinta proveniente de terrenos soalheiros. O raisiné tem expressão na região de Borgonha-Franco-Condado e em Charente na região da Nova Aquitânia).[4]

 

[1] De referir que Lucie Bolens fala do rubcomo um produto alcoólico, neste caso a redução é menos concentrada (a 2/3) e segundo três cozimentos sucessivos com intervalos noturnos para provocar a fermentação.

[2] No Médio Oriente o shire angoor é similar ao arrobe, contudo é usual juntar-se cal ou argila (depois filtrada) para purificar e diminuir a acidez do mosto. Também a uva pode passar por um processo de secagem. A produção do shire angoor tem maior expressão no Irão. Na Turquia – Anatólia, produz-se o pekmez a partir da redução de sumo de fruta, sobretudo da uva, mas também de cerejas, ameixas, figos, alfarroba, romã e tâmaras. Tal como na elaboração do shire angoor, junta-se o toprak (terra local que contém argila e cal) e depois da primeira fervura de várias horas o sedimento é filtrado num saco de juta. O xarope é fervido uma segunda vez para aumentar a concentração. Também idêntica ao arrobe, a épsima (o equivalente grego à sapa de origem romana) tem expressão em Chipre. Embora o termo seja de origem grega, não foram encontradas referências atuais desta receita artesanal na Grécia. De referir ainda que, não sendo feito do sumo de uvas, o sirop d’ érable (xarope da ácer) também é uma redução para obter concentração de açúcar natural, mas neste caso a partir da seiva da árvore ácer, original dos povos ameríndios, muito popular e bastante enraizada na América do Norte e sobretudo no Canadá (Ontário, Quebec).

[3] Do vin cuit é produzida a mostarda de Bénichon (do cantão de Friburgo).

[4] https://fr.wiktionary.org/wiki/raisiné e https://fr.wikipedia.org/wiki/Raisiné

 

 

© C.M.Torres Vedras

A Salvaguarda e o Futuro da Uvada em Torres Vedras

Em Torres Vedras, por iniciativa da Câmara Municipal, várias atividades têm sido promovidas de forma a valorizar e salvaguardar as tradições associadas à confeção da uvada. Nomeadamente, a divulgação do doce junto de produtores e a promoção de mostras e vendas. Iniciativas que têm resultado no desenvolvimento de várias marcas de uvada que chegam hoje ao mercado através de sistemas de produção inspirados na receita e procedimentos tradicionais.

Em prática e em agenda estão ainda ações como:

- a inventariação e pesquisa do processo da confeção da uvada, a sua origem histórica e recuperação do património oral desta tradição;
- a partilha de informação entre produtores de uvada, enólogos, chefes de cozinha e escolas com cursos de cozinha e pastelaria;
- a dinamização de workshops de confeção;
- a divulgação de estudos científicos sobre a uvada.

Em relação à investigação científica, destaca-se o trabalho iniciado em 1991 por Pedro Belchior e Ilda Caldeira sobre a recuperação da uvada, no Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária, em Dois Portos. Estes estudos estabeleceram “algumas características fisico-químicas, texturais e organolépticas da uvada” e “permitiram a optimização da formulação da uvada, bem como a avaliação da sua estabilidade microbiológica e a sua aceitabilidade junto do consumidor. Foi ainda avaliada a diversificação do doce com recurso à utilização de diferentes variedades de maçã e à utilização de mostos [de] diferentes castas.” (Belchior & Caldeira, 2007: 50).

Sobre os processos de transmissão do saber-fazer, nos últimos anos, devido ao aumento do interesse pela uvada, verifica-se, por um lado, a recuperação da prática em certos contextos familiares e sociais. Por outro lado, as escolas são incentivadas a desenvolver atividades que valorizem e promovam os conhecimentos tradicionais junto dos mais novos. Como exemplo do trabalho efetivo sobre a uvada destacam-se as ações desenvolvidas pela Escola 4G de Campelos.

Uvada em Torres Vedras
Terra de Vinho e de Gente / Uvada do Oeste

 

Participantes
 Pesquisa e Inventariação

Produtores (ordem alfabética)

Ana Rosa - Moinhos da Capucha

Eusébio Marques - EUMA – Tradição no Sabor

Joaquim Gomes - Terras de Dinossauros

Maria da Conceição Gomes - Doces da Ribeira

Paula Sarreira - Conservas a Oeste

Memória Imaterial

Filomena Sousa

José Barbieri

Alexandra Araújo

Consultoria

IELT-FCSH/NOVA

Escola 4G de Campelos

ATL e Grupos de Jovens, Adultos e Seniores

Carla Neto

Fernanda Caldeira

Gertrudes Machado

João Antunes

Jorge Ventura

Maria Ventura

Mariana Caldeira

Yasmin Coimbra

Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária, Dois Portos

Ilda Caldeira

Pedro Belchior

Câmara Municipal de Torres Vedras

Vereadora Laura Maria Jesus Rodrigues

Edição e montagem

Memória Imaterial

José Barbieri

Filomena Sousa

Vídeo e Fotografia

Memória Imaterial

Câmara Municipal de Torres Vedras

Moinhos da Capucha

EUMA – Tradição no Sabor

Terras de Dinossauros

Doces da Ribeira

Conservas a Oeste

Música

Flickering

VYEN

Coordenação e Produção

Isabel Ferreira da Silva

Câmara Municipal de Torres Vedras

José Barbieri

Memória Imaterial CRL

   
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